A Casa da Câmara, ou a memória agredida

 O texto que Armor Pires Mota publicou na edição de 8 de Novembro de 2006 do Jornal da Bairrada, a rebater o professor catedrático Pedro Dias, leva-me a tecer algumas considerações sobre a mais que provável demolição da Casa da Câmara. Começo por referir que sou a favor da preservação do edifício.

Quando a polémica irrompeu no Jornal da Bairrada remeti-me ao silêncio. Fi-lo, porque outros mais conhecedores do que verdadeiramente estava em causa – e com os quais aprendi alguma coisa – saíram a terreiro. Refiro-me a pessoas como o Dr. Carlos Conceição ou o arquitecto e professor universitário Walter Rossa, que a meu ver exibem argumentos mais consistentes que os seus opositores.

Ao invés, os adeptos da demolição centram-se mais no futuro que no passado. Querem a avenida rasgada, sem empecilhos para o trânsito, e a casa é para eles um estorvo. Alegam que nem tudo o que é antigo é património (e têm razão) procurando colar esse raciocínio aos que estão no outro lado da barricada. Proclamam que o edifício não tem valor arquitectónico. Continuam a ter razão. As discordâncias surgem quando consideram ser património o que tem suficiente valor representativo e não reconhecem tal valor à antiga Casa da Câmara.

É natural haver opiniões diferentes, pois não são pacíficas as definições de objecto patrimonial e de monumento histórico, nem consensuais as interferências entre valor histórico e valor artístico. Mas não é por estarem em campos opostos que uns e outros gostam menos da cidade ou do concelho. Importa, pois, que se discutam ideias e não pessoas, o que nem sempre acontece. Bom seria que a decisão final viesse a resultar de convicções profundas, mesmo que discutíveis, e não de mesquinhos ajustes de contas políticos, como às vezes parece suceder.

Tenho para mim que a Casa da Câmara é representativa de uma época e tem suficiente valor simbólico. Património não é só qualidade, é também memória. Não é só valor artístico, é também valor histórico. O mérito do edifício não reside apenas em ter albergado a câmara concelhia e a cadeia. Isso também outros edifícios do género – e bastante modestos como este – albergaram por esse país fora. O que nem todos eles foram é o que este foi: uma casa de Câmara Nobre e Cadeia forte.

Como foi já explicado em textos que este jornal publicou, isso fez Oliveira do Bairro ganhar o direito a contar com um juiz de fora. No início do século XIX pouco mais de um quinto dos municípios portugueses se poderia orgulhar de tal feito. Por isso a memória do que foi a Casa da Câmara do nosso concelho é que lhe confere um valor único e expressivo.

Vejamos: o ser provavelmente o edifício mais antigo do concelho não sensibiliza as pessoas? O ser um símbolo do municipalismo, a atestar a importância de Oliveira do Bairro em tempos recuados, também não? Que outros vestígios sinalizam essa importância, na cidade e no concelho? É de crer que se tivesse valor arquitectónico a avenida seria rasgada e haveria soluções alternativas que preservassem o imóvel. Não será então possível encontrar uma solução que não mexa tanto com os sentimentos e a sensibilidade? Ou só conta o progresso a qualquer preço? O progresso digno desse nome não destrói os valores do passado. Sempre que possível, o novo deve coabitar harmoniosamente com o antigo.

Foi com argumentos como o do desinteresse estético que se arrasaram os calabouços da Pide em Lisboa, para em seu lugar se construírem condomínios de luxo. Infelizmente, a memória não dá lucro. Assim se desrespeitou a memória das vítimas. As catacumbas romanas são inestéticas? Talvez. Mas sem elas o cristianismo não teria a memória das catacumbas e das perseguições.

Foi com o argumento de se rasgar uma nova avenida que em Aveiro, junto ao parque da cidade, se demoliu a casa de Homem Cristo, um valioso exemplar de Arte Nova desenhado pelo arquitecto Silva Rocha. As avenidas e as rotundas são a marca do progresso que temos. Pena é que esse progresso, sem atender à sensibilidade e à memória, tudo decape, à força de picareta e camartelo. Apetece perguntar se os pelourinhos, cruzeiros, coretos ou até pequenas capelas designadas por alminhas, que ainda temos, em muitos casos esteticamente irrelevantes, também devem ser destruídos.

Já nada nos espanta, quando sabemos que a casa onde Garrett passou os últimos dias de vida não foi poupada, por terem prevalecido os interesses privados do seu proprietário, o actual ministro da Economia. O património está em perigo, ameaçado cada vez mais pelo envelhecimento e a degradação, pela ignorância, pelo abandono, por restauros abusivos, ou até por uma exagerada sensibilidade de quem detém o poder político face às pressões económicas de cada momento.

A questão é simples: discordo que se continuem a quebrar os últimos elos de ligação às nossas origens, que em nome do progresso não se respeite o passado que nos identifica e ao qual devemos permanecer fiéis. Quando assim acontece, apagam-se os trilhos que dão sentido à existência. Não se trata de só ver defeitos em tudo o que é inovador, como acontece com os que passam a vida a tropeçar nas armadilhas da tradição e a tentar torcer o pescoço ao progresso. Nada disso.

Do que se trata é de não deixar banir o que a tradição tem de melhor, incorporando isso no novo espaço renovado. O que no caso particular da Casa da Câmara divide as opiniões é o facto de uns não verem forma de se criar o novo sem derrubar o antigo; e de haver outros para quem nem sempre o velho é empecilho do novo, podendo até constituir-se como um suporte de imaginação inovadora.

A Câmara Municipal apresta-se para demolir o edifício, apoiada num Parecer encomendado a um estudioso de reconhecidos méritos no domínio da História da Arte. É lá com ela. Bom seria que tivesse em conta que o argumento da autoridade nem sempre colhe. Ninguém é isento de erros ou insusceptível de crítica. Como mostrou Armor Pires Mota, o Parecer sobre a Casa da Câmara assemelha-se a um recife de corais, onde num buraco encontramos uma afirmação imprecisa; noutro, topamos com uma asserção menos verdadeira; noutro ainda, deparamos com dúvidas e conclusões erróneas que uma leitura atenta dos documentos (e a história faz-se com documentos) teria evitado.

A Câmara Municipal devia reconhecer o interesse em se protegerem áreas características da cidade, mormente as que constituem marcos visuais importantes e as que têm um significado especial e simbólico para os seus utilizadores. É uma triste ironia ver um símbolo do municipalismo morrer nas barbas dos oliveirenses e no regaço da indiferença do próprio poder municipal. Em vez de preservar os lugares de memória, a Câmara promove festejos em honra da deusa amnésia que definitivamente os rasura.


(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 15.11.2006, p. 17)