Achegas para uma estética do surripianço nacional

Piet MondrianNo país do faz de conta, em que ninguém escrutina nada, mas que para alguns é o país das maravilhas, tanto desaparecem armas em Tancos, como dinheiro dos bancos ou obras de arte em embaixadas, serviços públicos e gabinetes ministeriais. Pelo que se vê, estamos em presença de uma verdadeira estética do surripianço. Para certos comilões do que deveria ser de todos por a todos pertencer, não há oscilações do gosto: tanto se alambazam com armas que matam como se empanturram com o que é belo e tem valor seguro: pinturas, desenhos ou fotografias que ajudam a colorir a nossa vida.

Estamos a falar de 170 obras de arte que levaram sumiço – uma gota no alguidar de lacraus da roubalheira nacional – assinadas por nomes incontornáveis das artes plásticas portuguesas como Vieira da Silva, Júlio Pomar, Almada Negreiros, Paula Rego, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis e Mário Cesariny, entre outros. Pinturas, desenhos e gravuras que ganharam asas de desejo e voaram para lugar incerto. Como diz o povo, foi um ar que lhes deu. Dão-se alvíssaras a quem as encontrar.

Estas obras, penduradas nos gabinetes dos ministérios, ajudavam a aliviar o cinzentismo de quem pratica funções cinzentas. Quem lhes deu sumiço, optou por aliviar as paredes e não o cinzentismo. Estamos a falar de gente que se movimenta nos caminhos tortuosos de privilégios e sinecuras e se comporta como os áulicos que na corte de D. João V eram premiados pelo destempero e a corrupção.

Em Portugal até parece que tudo o que é sólido se dissolve no ar. Em Portugal desaparecem coisas. Só que, para compensar, também aparecem coisas. Ao contrário do chamado “triângulo das Bermudas”, cenário de vários desaparecimentos, em Portugal há um triângulo de aparições, com vértices em Fátima, Tomar e Ladeira do Pinheiro. Nem tudo é mau, portanto.

Na minha boa fé, creio que as obras não foram atraídas para mãos onde as coisas se pegam e custam a descolar, como a pele do bacalhau. E até arrisco uma hipótese: os gabinetes ministeriais não serão climatizados e o calor tem apertado tanto que as obras de arte bem podem ter derretido, ao ponto de se evaporarem. A vingar esta tese peregrina, teríamos nos nossos ministérios os verdadeiros precursores do artista Alper Dostal, que nos mostra a arte a derreter como forma de aviso para as graves consequências do aquecimento global no planeta que habitamos. O exemplo que aqui vos deixo, uma obra-prima de Piet Mondrian a derreter (Composição II em Vermelho, Azul e Amarelo) pode muito bem ajudar a explicar o misterioso desaparecimento das obras de arte do Estado português.

1Acredito nisto. Acredito na ideia de belo enquanto emanação do bom. Acredito que as obras derreteram e se evaporaram e que o calor tem costas largas. Acredito que toda a obra de arte é uma possibilidade de reincarnação. No caso –  improvável, repito – de terem sido furtadas, acredito piamente que um qualquer Tintim ou professor Girassol português as vai fazer regressar ao local de onde nunca deveriam ter saído, tal como o fizeram com As Jóias de Castafiori ou em A Orelha Quebrada.

Afinal, como bons portugueses que somos, encontramos sempre uma forma de nos salvar.