Aristides de Sousa Mendes: um católico, monárquico, conservador, no Estado Novo

“Mesmo que me destituam, só posso agir como cristão, como me dita a minha consciência; se estou a desobedecer a ordens, prefiro estar com Deus contra os homens do que com os homens contra Deus.”
– Aristides Sousa Mendes
“O Eterno (…) guiar-me-á nas veredas da justiça por amor do Seu Nome”
– Salmo de David sobre os justos

A recente consagração da memória de Aristides de Sousa Mendes no Panteão Nacional está longe de ser consensual. Uns aplaudem, outros aproveitam para achincalhar o diplomata, vincando a desobediência a Salazar e, pior do que isso, agravando a sua memória, ao insinuarem que terá passado vistos a troco de quantias avultadas. Digo insinuarem, porque nunca provaram nada. A esses – os mesmos que têm a lata de dizer que os judeus não corriam perigo de vida… – convém lembrar que é importante fundamentar a preferência que atribuímos a uma interpretação, relativamente a outras possíveis, pois a sua veracidade comprova-se com a dificuldade em e refutar.

Casa do Passal (Cabanas de Viriato)

Carreguemos nos pedais da memória.  Cavaco Silva recusou apoio governamental à recuperação da Casa do Passal porque o cônsul… desobedeceu! Abel Matos Santos, na altura vogal da comissão executiva do CDS-PP, entre referências elogiosas a Salazar, apelidou o cônsul de Portugal em Bordéus de ser “agiota dos judeus”, apesar de ele não ter salvo apenas judeus (entre muitos outros vistos, passados a refugiados não judeus, contam-se a família real Habsburgo, membros da família banqueira Rothschild e todo o governo belga no exílio). Mais não fez este cruzado democrata-cristão que dar voz a uma visão alternativa da História propagandeada pelos nostálgicos da velha portugalidade, que sustentam ter o cônsul passado vistos aos judeus a troco de dinheiro e o consideram um “traidor”, por ter quebrado a neutralidade imposta por Salazar ao seu corpo diplomático, equilibrando poderes entre sectores pró-germânicos e pró-britânicos da sua governação.

Nesta visão alternativa da História invocam-se, amiúde, pormenores irrelevantes – tão ao gosto das biografias de cariz positivista – manobras de diversão que apenas servem para deslocar o eixo central daquilo que é essencial num debate desta natureza. Dou apenas um exemplo desse tipo de manobras: alguém que convoca o avô materno, supostamente frequentador do palacete de Sousa Mendes na Casa do Passal, em Cabanas de Viriato, para dizer que a cidadã francesa com quem o cônsul casara em segundas núpcias, “após haver isolado seu marido da parentela que tinha na aldeia, trilhava-lhe os dedos nas portas de pau da casa, para o pressionar a vender as terras e os bens móveis do palacete e enviar o dinheiro para França”.[1] Como era de esperar, este tipo de argumentação – conhecido como falácia de relevância, uma vez que não acrescenta nada de essencial ao que se está a discutir – só podia ser rebatido no campo da ironia: “Coitado do homem que teve a coragem de salvar milhares de Judeus e, depois, foi tão despoticamente dominado à força de braços pela esposa!”.[2]

Do que li e do que sei em relação ao processo que lhe foi movido por ter salvo judeus sem a autorização de Salazar, recusando-se a cumprir a tristemente célebre “Circular 14”, que impunha que os vistos portugueses aos refugiados de guerra fossem suspensos, retenho o seguinte:

Salazar não perdoava aos que desafiavam a sua autoridade. Os vistos não eram legais? Claro que não! Mas será que devemos cumprir leis que em contextos específicos atentam contra princípios fundamentais da dignidade humana? Perante a situação trágica de seres humanos perseguidos como cães raivosos, só os burocratas da submissão cega a todas as ordens e hierarquias, a impressos e formulários, se predispõem à aplicação rigorosa e estrita de uma lei que, ao condenar cidadãos à morte, passa a ser vista como iníqua. O que choca, nisto tudo, é a vingança mesquinha como resposta à nobreza de gestos que salvaram a vida a tantos seres humanos. Como dizia Camus: uma vida nada vale, mas nada vale uma vida.

O intemerato cônsul não desconhecia os riscos que corria. Segundo depoimento do filho Sebastião Mendes, terá dito, na presença da mulher e dos filhos: “Não sei o que é que o futuro reserva para vossa mãe, para vocês e para mim mesmo. Materialmente, a vida não será tão boa para nós como tem sido até agora. Contudo, sejamos corajosos e tenhamos em mente que, ao dar a esses refugiados a possibilidade de viverem, teremos uma possibilidade mais de entrar no Reino dos Céus, porque, ao fazê-lo, não faremos mais do que praticar os mandamentos de Deus”.[3]

O drama económico que se abateu sobre Sousa Mendes (com 12 filhos vivos quando lhe foi reduzido o vencimento) nem é a questão central. Central é saber que o processo disciplinar não passou de uma farsa. Dois dias antes de ter mandado instaurar o processo disciplinar, Salazar envia telegrama a Armindo Monteiro onde diz o seguinte: “Vistos concedidos em Bordéus foram-no, em contravenção de instruções expressas do Ministério por cônsul que já afastei do serviço”.[4] Como se vê, primeiro a sentença, depois o julgamento. O processo disciplinar funcionou como mera formalidade administrativa, escamoteando o essencial de qualquer processo: apurar a verdade. Mas há mais. Pedro Tovar de Lemos[5] era o relator do processo, nomeado por Salazar. E era, também, membro do Conselho Disciplinar que julgava todos os processos. Portanto Tovar era, ao mesmo tempo – pasme-se! – acusador e juiz.

Muito mais haveria a dizer sobre o cinismo do regime e a hipocrisia de Salazar – “um indivíduo insuportável”, assim o classificou Churchill em 1943 – neste processo: depois de fazer o que fez a Sousa Mendes, não deixou de enviar um cartão de condolências à família, aquando do seu passamento. Nada de estranhar, se tivermos em conta que, apesar de fazer constar que tudo sacrificava à política de neutralidade perante a guerra, não hesitou – quando Hitler se suicida, em 30 de Abril de 1945 – em enviar telegramas de condolências e mandar colocar em Lisboa as bandeiras a meia-haste, durante dois dias. O cinismo não acaba aqui. Alguns dias depois, Salazar desabafa, em plena Assembleia Nacional: “Bendigamos a paz. Bendigamos a vitória”[6] (dos aliados, contra o nazismo, entenda-se).

A tragédia que se abateu sobre o nosso cônsul em Bordéus é um dos muitos exemplos paradigmáticos da desonestidade histórica do regime. Dito isto, o que interessa reter é se valorizamos mais a obediência cega às leis ou o sentido profundamente humano da desobediência do nosso cônsul em Bordéus, ao recusar ser cúmplice dos crimes de guerra nazis. E aqui não pode haver meias-tintas. O ditame da consciência, em casos de vida ou de morte, pode e deve sobrepor-se ao dever da disciplina.

Manda a verdade dizer, também, o seguinte: quanto à política de refugiados, Salazar foi evoluindo ao longo dos anos. Ao contrário do que sucedeu durante a Guerra Civil de Espanha (1936-1939), no decurso da II Guerra Mundial Portugal acolheu-os e não os recambiou ou entregou aos seus perseguidores. O nosso país serviu-lhes de porto e abriu-lhes as portas da esperança, apesar do acolhimento ser muito restritivo. Aos judeus chegados a Portugal, por exemplo, só eram emitidos documentos de trânsito de curta duração, rumando depois a outras paragens, como Estados Unidos e Brasil.

No início, Salazar mostrou-se relutante a esse acolhimento. Via nos refugiados um sério problema de Estado: ou porque os países a que pertenciam o colocavam sobre forte pressão, ou com receio de que esse acolhimento pudesse ser visto como um sinal inequívoco do posicionamento de Portugal no conflito. Percebe-se o incómodo, se tivermos em conta a sua tão apregoada – mas nem sempre cumprida – política de neutralidade. Quando a guerra começa a inclinar-se para o lado dos “aliados” então sim, Salazar (que na ânsia de controlo absoluto do poder chegou a acumular as funções de Presidente do Conselho de Ministros com as dos ministérios das Finanças, da Guerra e dos Negócios Estrangeiros) deixa de admoestar os diplomatas rebeldes e facilita a concessão de vistos.

Em 1943 a sorte da guerra começa a mudar, com a derrota do exército alemão em Estalinegrado. E em 1944, com a cada vez mais anunciada derrota do eixo Berlim-Roma, Salazar já não reúne condições para perseguir Sampaio Garrido como o fez em 1940 com Aristides Sousa Mendes. Assim se entendem as instruções que dá em 1944 à legação em Budapeste, para “proceder à semelhança do ministro (embaixador) da Suécia” no salvamento de judeus, acentuando mesmo que “deve ser feito esforço no sentido de salvar o maior número possível de refugiados”.[7]

Uma palavra final para outros dois portugueses em funções diplomáticas durante a II Grande Guerra (1939-1945). O ministro plenipotenciário Sampaio Garrido (com funções de embaixador) e Carlos Branquinho (encarregado de negócios na Hungria), sobre os quais pesa ainda hoje um silêncio injusto. Ambos foram responsáveis, em 1944, pela embaixada portuguesa em Budapeste. Foi aí que concederam vistos, passaportes provisórios e asilo diplomático a um número indeterminado de judeus húngaros, que rondaria os 1000.

Tal como Aristides Sousa Mendes, também eles escancararam as portas da liberdade a muita gente ameaçada pelo regime nazi. Eram, diga-se, tal como o cônsul em Bordéus, homens integrados no Estado Novo, personalidades de destaque da União Nacional, monárquicos convictos e admiradores confessos de Salazar. Também o republicano Veiga Simões, ministro dos Negócios Estrangeiros em 1921 e chefe da Legação de Portugal na Alemanha em 1933, que Salazar mandou colocar na disponibilidade, teve acção meritória no apoio aos judeus perseguidos pelo nazismo, como o comprovam os diferentes relatórios que dirigiu ao então Presidente do Conselho de Ministros.[8]

Embora estejamos a falar de situações distintas (os vistos de Sousa Mendes irritavam muito mais o poder do que os “passaportes provisórios” de Garrido e Branquinho), todos estes nomes representam casos exemplares e por isso merecedores do respeito público. E já agora acrescento um outro, que nada tem a ver com diplomacia em tempos de Holocausto. Refiro-me ao general Vassalo e Silva, irmão da escritora Maria Lamas e último governador-geral da Índia.

Também ele não acatou a ordem de Salazar – que preferia heróis mortos a prisioneiros vivos – para resistir até à morte do último soldado. O lema era: “Resistir até ao fim, até ao limite das nossas forças”. Apesar de conhecer a enorme desproporção de militares no terreno – pouco mais de 3 000 portugueses para fazer frente a 30 000 da União Indiana, apoiados por aviões, artilharia pesada, blindados e bases navais – Salazar apelava ao “sacrifício total”. Vassalo e Silva percebeu que esse “sacrifício total” redundaria numa tragédia, que resistir seria auto-imolarem-se e, tal como Sousa Mendes, desobedeceu. Assinou o termo de rendição às forças indianas, o qual lhe permitia trazer para casa, sãos e salvos, os homens que comandava. À rendição seguiu-se quase meio ano de cativeiro, com Vassalo e Silva a fazer questão de ser libertado apenas depois de todos os outros militares sob o seu comando.

Como era de prever, foi acusado de “traidor” assim que chegou ao aeroporto de Lisboa, foi banido do Exército e ficou impedido de trabalhar em cargos públicos, passando a ser vilipendiado pelos serventuários do regime. Também os militares que comandou foram enxovalhados no regresso a Portugal. Muitos acabaram expulsos das Forças Armadas. Outros foram recambiados para os teatros de guerra mais perigosos do continente africano.

Em 17 de Dezembro de 1961 Portugal começava a perder a sua “jóia da Coroa”. E também começava, territorialmente, a encolher (tinha perdido o minúsculo enclave de S. João Baptista de Ajudá em Julho do mesmo ano). Nessa noite de 17 de Dezembro, Sophia de Mello Breyner gizava um poema para sempre interrompido pela notícia da entrada dos soldados indianos em Goa, que pôs fim a uma presença portuguesa com mais de quatro séculos:

PRANTO PELO INFANTE D. PEDRO DAS SETE PARTIDAS[9]

Nunca choraremos bastante nem com pranto
Assaz amargo e forte
Aquele que fundou glória e grandeza
E recebeu em paga insulto e morte

Placa num passeio (Viena de Áustria)

Regressemos a Aristides de Sousa Mendes, para dizer que nunca saberemos ao certo quantas pessoas salvou. A urgência da fuga (a desobediência a Salazar começou em Maio de 1940, Paris capitulara a 14 de Junho e as tropas alemãs chegam a Bordéus a 27 desse mês) levou-o o a desprezar a anotação e o registo de muitos nomes, ganhando tempo precioso para a prioritária emissão de vistos. O que sabemos é que ele e os outros diplomatas aqui citados eram profundamente católicos, pelo que se lhes aplica na perfeição estas palavras de Anabela Mota Ribeiro a propósito de um avião da TAP que ostenta o nome do cônsul em Bordéus: “assim que puder, ando nele e volto a pensar em anjos que fazem da Humanidade um lugar melhor”.

Não podemos deixar de admirar estes homens raros, que fizeram no momento certo o que devia ser feito. Só os grandes homens são capazes de arriscar a carreira e às vezes a própria vida, ao colocarem a vida dos outros acima da sua. Tal como a fé ou a crença, também a bondade e a nobreza de carácter que ajudam a salvar vidas humanas não são apanágio da esquerda ou da direita política. Evitemos, pois, a agressividade (inútil, mas tão portuguesa!), o fanatismo ideológico, os rótulos políticos apressados, o espírito de vingança.

A conduta exemplar destes diplomatas do Estado Novo, bem como a do general Vassalo e Silva no caso de Goa – homens que em circunstâncias excepcionais responderam de forma excepcional – mostra bem como algumas facetas humanas não são um feudo de ninguém, pois transcendem as ideologias.


[1] Eduardo Proença-Mamede, “À volta da figura de Salazar”, Jornal da Bairrada, n.º 1491, 12.08.1999, p. 16.

[2] Paulo Carvalho, “A ganga e o ouro”, Jornal da Bairrada, 09.09.1999, p. 15.

[3] Rui Afonso, Um Homem Bom. Aristides de Sousa Mendes, o Wallenberg Português”, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 100.

[4] Rui Afonso, Injustiça. O caso Sousa Mendes, p. 158.

[5] Pedro Tovar de Lemos (1888-1961), pró-germânico assumido, substituiu no cargo Veiga Simões, ministro dos Negócios Estrangeiros em 1921, chefe da Legação de Portugal na Alemanha em 1933. Era um crítico declarado do regime alemão, que Salazar mandou colocar na disponibilidade. Veiga Simões também teve acção meritória no apoio aos judeus perseguidos pelo nazismo, como o comprovam os diferentes relatórios que dirigiu a Salazar.

[6] José-Alain Fralon, Aristides de Sousa Mendes. Um Herói Português, Editorial Presença, 1999, p. 91.

[7] Ver Carlos Albino, “Diplomatas salvaram 250 mil”, Diário de Notícias, 03.04.2000, p. 21.

[8] Ver Avraham Milgram, “Potencial de salvação”, revista História, n.º 15, Junho de 1999.,

[9] Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, Editorial caminho, 2003, p. 58.