Armor Pires Mota: a justa homenagem a um vedor da autenticidade popular

Como forma de reconhecer o mérito profissional e de assinalar os 50 anos de actividade literária de Armor Pires Mota [APM] o Rotary Club de Oliveira do Bairro vai prestar-lhe uma justa homenagem.

armormotaAviso à navegação: não tenho estado sempre de acordo com o que APM tem escrito ao longo dos anos, quer em textos de cunho vincadamente político, quer noutros centrados na área da investigação histórica, ou em alguns fragmentos das várias monografias que publicou. Isso não me impede de lhe reconhecer nobreza de carácter na defesa dos pontos de vista em que acredita. Nem de lhe creditar inestimáveis contributos para o conhecimento da história local de algumas terras do concelho de Oliveira do Bairro.  Toda a terra merece ter a sua história e algumas não a tinham. Ou porque quem a poderia escrever desapareceu cedo do mundo dos vivos – é o caso do padre Acúrcio, ou de Miguel França Martins, em Oliveira do Bairro – ou porque simplesmente outros não se sentiram capazes de levar a cabo tal empreendimento, ou não atribuíram ao conhecimento do passado a dignidade que lhe é devida.

No que à investigação histórica diz respeito, convém ainda dizer que a História não é uma ciência exacta e que ser isento não é o mesmo que ser neutro. Com toda a frontalidade, APM reconhece, por exemplo, que a “República do Troviscal” é um capítulo “altamente polémico” (1) e que portanto pode ser objecto de diferentes interpretações. A visão histórico-cultural que nos deixou do Troviscal é a “sua” e pode não coincidir, em alguns pontos, com a nossa. Mas manda a verdade dizer que a produziu baseado em documentos e testemunhos. E que não ilude ou omite os factos para afirmar ideologias. Os factos estão lá, apenas os interpreta à sua maneira, podendo outros iluminá-los de modo diferente, mas não necessariamente de forma mais objectiva. Dir-se-á, então, que para se reconhecer a validade de um pensamento se dispensam as afinidades pessoais ou as convergências ideológicas. Importante é reconhecer o talento e os relevantes serviços prestados à cultura e à região, como é o caso.

À minha frente está o texto em que APM anuncia a sua despedida como chefe de redacção do Jornal da Bairrada (2). Recortei-o e guardei-o por várias razões: em primeiro lugar, porque é um marco e um virar de página no itinerário de vida do escritor; depois, porque espelha a lucidez e a sabedoria de quem sabe retirar-se a tempo e não tem medo de dar lugar aos novos; finalmente, porque essa tocante mensagem de despedida é também um comovente hino de louvor à Bairrada que traz no coração. A hemoglobina social e cultural da região percorre-lhe as veias. Uma região da qual conhece as terras e as gentes – que são a sua raiz e alma – como poucos. Arrisco dizer: como mais ninguém.

Dos escritores nascidos na Bairrada, e que escreveram sobre ela, o bustuense Arsénio Mota é para mim o que melhor mostra perceber a importância dos estudos regionais e o que mais contributos tem adiantado para um estudo sistemático da região. Tem esboçado as grandes linhas de descrição regional e mostrado a importância do regional enquanto escala de abordagem e espaço cultural significativo e dotado de valor e identidade próprios. Já APM é o que melhor tem captado a essência e as subtilezas da Bairrada, assumindo-se como o seu genuíno e mais representativo aedo.

Ao plasmar os motivos locais em algumas das suas obras – recolha de lendas, costumes, folclore, romarias, jogos tradicionais – tem prestado um assinalável serviço à divulgação e afirmação da identidade regional da Bairrada. Mas é sobretudo em alguns livros de ficção, nomeadamente os que albergam contos com indiscutível sabor ao chão, às gentes e ao ambiente da Bairrada – leia-se O Vendedor de Tapetes, ou As Vinhas da Memória – que APM mais se parece cumprir como escritor. É aí que alguns elementos identificadores da matriz bairradina mais se evidenciam: descreve com mestria as manhas, os truques e os ardis do aldeão pacato e curvado ao peso da terra, mas ao mesmo tempo matreiro e astucioso, que ninguém engana quando se trata de defender o que lhe pertence.  APM escava uma galeria “de povo arrancado à terra, ao trabalho, aos costumes, à religiosidade, aos impulsos, aos sonhos de que é feita a vida do bairradino” ensinando-nos a ver, “com olhos a um tempo realistas e amorosos, a aldeia portuguesa, que ele soube surpreender a partir do grande conhecimento que tem da região onde vive (3).

À medida que as identidades individuais e colectivas se forem esbatendo por força dos processos de globalização, os livros de APM vão permanecer como testemunho do que foi possível fixar enquanto presença das realidades regionais nas obras literárias e vão ganhar uma nova dimensão: a de uma espécie de relicário da memória, onde poderemos então matar saudades de mundividências que já não há.

É este homem, que tanto nos tem ajudado a respeitar a grande matriz, que o Rotary vai homenagear. Na já extensa folha de serviços prestados à cultura e à região, cabem o poeta de Cidade Perdida ou Baga-Baga; o autor de monografias históricas como Mamarrosa Milenária  ou Oiã, Terras e Gentes; o cronista de Tarrafo, um diário escrito sob a emoção da guerra na Guiné, ou de romances de literatura colonial como Cabo Donato, Pastor de Raparigas e Estranha Noiva de Guerra; o perscrutador da alma e das Histórias de Artesãos, que retratou em pinceladas coloridas, num tempo em que o artesanato era uma disciplina importante da escola da vida; o estudioso de Santa Casa, Vida e Obra, livro que ajuda a conhecer melhor mais um pedaço do passado concelhio, a evolução e as personalidades que ajudaram a manter viva a Misericórdia de Oliveira do Bairro; o conhecedor atento das Irmandades das Almas e de outro património religioso, alternando trabalhos como O Préstimo a Caminho de Lisboa, os Bombeiros de Vagos, ou os Falcões do Cértima; enfim, o jornalista tarimbado e de observação aguda da Soberania do Povo e do Jornal da Bairrada, fascinado pela crónica e a reportagem, com vasta colaboração dispersa por muitos outros jornais e revistas.

Apetece dizer, a quem é dono de uma vida assim tão preenchida: não pode dar-se mais quem tanto já se deu por inteiro. Venha de lá a homenagem, que deve ser, tanto quanto possível, uma comunhão ritual, isto é, uma convicção e não uma convenção.


(1) Armor Pires Mota, Troviscal. Visão histórico-cultural, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 2005, p. 8.
(2) Armor Pires Mota, “Laços de despedida”, Jornal da Bairrada, 02.01.2008, p. 2.
(3) Joaquim Correia, recensão a O Vendedor de Tapetes, Jornal da Bairrada, 28.06.2001, p. 12.