Salgueiro Maia, capitão de Abril — a homenagem tardia

Aconteceu quando Cavaco Silva era primeiro-ministro de Portugal. Havia um governo de maioria absoluta, que era autista e confundia autoridade com autoritarismo. Cavaco Silva desdenhava da imprensa, proclamava aos quatro ventos que não lia jornais, que nunca tinha dúvidas e que raramente se enganava. Em dia de greve geral, uma das maiores de que há memória na democracia portuguesa, atreveu-se a negar para as televisões o que era óbvio aos olhos de todos: que não tinha dado pela greve, pois logo pela manhã, ao sair de casa, tomara tranquilamente o pequeno-almoço na pastelaria do costume…

Salguero Maia

Costuma dizer-se que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Se não corrompe, pelo menos cega. E o pior cego não é o que não vê, mas o que não quer ver. Cavaco recusou-se a ver a greve geral, tal como Sócrates se recusou a ver a manifestação pública de cem mil professores. O desdém e o desprezo absoluto, como se os grevistas, num caso, e os professores, no outro, não existissem. A mesma vontade deliberada de os silenciar, de os reduzir ao nada, de domesticar as consciências. Só através do voto se aperceberam, um e outro, que afinal eles existem.

Em 1989, do alto da sua maioria absoluta, Cavaco Silva recusou uma pensão a Salgueiro Maia, talvez o mais puro e lídimo capitão de Abril. O escândalo tornou-se maior quando veio a público que essa recusa coincidiu com a atribuição, pelo seu executivo, de idêntica pensão a dois inspectores da extinta PIDE. Há gestos que dizem tudo: Cavaco Silva, que talvez nunca tivesse chegado a primeiro-ministro ou a Presidente da República se não existisse democracia em Portugal, ignorou o homem que saiu do ventre de uma chaimite, para erguer o corpo em haste de coragem e de megafone em punho anunciar Abril, exigindo a rendição de Marcelo Caetano no quartel do Carmo. E pareceu ignorar, também, que a PIDE negava a liberdade e a democracia, esquecendo as palavras avisadas de Hannah Arendt: todos os despotismos se apoiam na polícia secreta.

Ao contrário de tanta gente que a polícia política perseguiu e prendeu por cometer o crime de querer viver em liberdade, os torcionários tiveram rédea livre para viver num qualquer recanto perdido da democracia. Alguns foram mesmo agraciados com pensões pelo regime a que se opuseram ferozmente. Um dos dois a quem o executivo de Cavaco Silva não recusou a pensão por “serviços relevante prestados ao país” esteve entrincheirado na Rua António Maria Cardoso, a sede da polícia política, e terá estado envolvido nos disparos contra os manifestantes que causaram os primeiros mortos da revolução. Estranha dualidade de critérios…

Entretanto, porque partem cedo aqueles que os deuses amam, Salgueiro Maia viria a falecer em 3 de Abril de 1992. Choraram-no, então, os que nunca o mereceram. Os que sempre lhe recusaram promoções. Os que o arrumaram na prateleira da rotina militar. Os que consentiram e o condenaram ao desterro açoriano. Os que têm sempre à mão o lenço nacional para enxugar as lagrimetas de ocasião.

Cavaco Silva tenta agora reparar a gritante injustiça. Deposita hoje, 10 de Junho de 2009, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, uma coroa de flores junto à estátua do capitão de Abril. Mas o Presidente da República perdeu a oportunidade soberana de homenagear, no tempo certo, aquele que em vida sofreu a ingratidão de ver recusada a mesma pensão, pelo regime democrático que ajudou a construir, atribuída a dois algozes desse mesmo regime.

Conseguirá, com esse gesto, limpar a nódoa que ainda mancha o sudário de generosidade e coragem que envolve o capitão Salgueiro Maia? A democracia aprende-se, aperfeiçoa-se e exercita-se. Cavaco Silva, como toda a gente, terá evoluído, não será a mesma pessoa de há vinte anos, já reconhece que também se engana e que tem dúvidas.

Por mim, acredito que o seu gesto, embora tardio, é sincero. Não é fácil estar frente a frente com o passado, olhos nos olhos, quando não se tem a consciência tranquila. Saber assumir os erros só revela a grandeza do gesto. Por isso eu, que tanto me indignei com Cavaco Silva há vinte anos, estou disposto a perdoar-lhe. Escrevi este texto porque não esqueço. Porque sigo a divisa: perdoa, mas não esqueças.

Memória de Carlos Candal

Suscitava, e há-de continuar a suscitar, discussão. O que é revelador da saliente personalidade do ilustre aveirense que agora desaparece. Um homem truculento e ao mesmo tempo afectuoso no trato, que fracturava, avesso a consensos moles. Frontal e irreverente.

Candal

É assim, sem biombos, que me apetece falar do histórico militante socialista Carlos Candal, embora saiba que o post mortem continua ser o estado mais propício ao aguçar das virtudes e do reconhecimento público e ao branquear dos defeitos da nossa humana condição.

Homem exímio a manusear o látego da ironia, flagelava e era flagelado por opositores ou declarados adversários políticos. Nos anos de brasa da revolução de Abril, o MRPP chamava-lhe o “trinca boquilhas”. E quando passou a fumar charutos, era acusado de andar sempre com o símbolo fálico a bailar-lhe na boca. Ele, por sua vez, retrucava da mesma maneira: quando Mário Soares colocou o socialismo na gaveta e promoveu alianças à direita, apelidou-o de “bailarina política”. Assim mesmo. Vicente Jorge Silva chamou-lhe “republicano bolorento” mas não ficou sem resposta: de imediato foi apodado de “revolucionário reciclado”. E há bem pouco tempo, quando Manuel Alegre começou a entoar um canto desconforme com a maioria política do momento, Candal não teve pejo em afirmar que ele estava é a precisar de “um chuto”.

Eis o desassombro, a braveza física e moral de um homem que nunca hesitou em noivar a liberdade, mesmo no tempo em que outros se compraziam em cortejar a ditadura. Em 1969 e 1973, Aveiro foi palco de dois congressos republicanos. Candal, candidato a deputado pela oposição, assumiu importante papel na organização do primeiro.

O seu “Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”, um libelo acusatório salpicado de bairrismo contra os políticos de Lisboa que se aprestavam para tomar de assalto a sua cidade – gente que, como costumava dizer Mário Sacramento, só começou a comer ovos moles em idades muito avançadas… – causou alguma indignação e fez estremecer certas almas bem pensantes. A verdadeira pedrada no charco de uma campanha sensaborona e da política liofilizada. Numa reacção hipócrita, Guterres retirou-lhe a confiança política e alguns jornalistas tentaram crucificá-lo, não resistindo a insultar como coiotes o velho leão ferido. Torquato Sepúlveda, por exemplo, chamou-lhe “cowboy” de um “western spaghetti”. Mas Candal resistiu. Foi até Bruxelas e refez a carreira, sempre apostado em pôr um pouco mais de sal ou picante na política.

Falei com ele apenas duas vezes. Uma na própria residência em Aveiro, situada a meio da Av. Dr. Lourenço Peixinho. Tinha ido lá solicitar parte do espólio de Homem Cristo, que sua esposa, a Dra. Isabel Cerqueira, prima de Zeca Afonso, conservava. A outra foi em Oliveira de Azeméis, pouco tempo depois, e num encontro meramente fortuito. Meteu-se comigo, naquele tom mordaz e jocoso que o caracterizava, concedendo-me a liberdade de lhe dizer: o Sr. Dr. tem a curva da prosperidade um pouco mais saliente do que no dia em que o conheci. Ao que ele respondeu, com aquela peculiar voz cavernosa e sem pestanejar, fazendo jus a um certo marialvismo lusitano a que muitos o colavam: deixe lá, as primas gostam…

Mais do que um homem de partido, Candal gostava de tomar partido. Esteve praticamente sempre do lado contrário ao dos seus correlegionários que assumiam o poder. Por isso o seduzia tanto a advocacia, a guerra de palavras, a luta, a tensão permanente.Carlos Candal

Sem tiques de vedetismo ou ambições carreiristas, o advogado de província finou-se um dia destes. Consta que mal recuperou do acidente que o acometeu, em plena campanha para as europeias, terá pedido um charuto.

Oxalá que do alto dos seus charutos nos continue a inquietar, com a mesma atitude desafiadora que sempre teve perante a vida.

Figuras da Bairrada — Miguel França Martins, o “Zil de França”

Além de Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, Miguel França Martins, que usava o pseudónimo “Zil de França”, foi conservador do Registo Civil, presidente da União Nacional concelhia, Provedor da Misericórdia, jornalista e poeta da Plêiade Bairradina.

Colaborou com regularidade no Alma Popular, sobretudo com poesias, e no Jornal da Bairrada, onde assinava a rubrica Tempos Idos, versando temas oliveirenses. Dirigiu também o Correio de Cértima, um jornal regionalista lançado em Oliveira do Bairro em 1930, para atender aos interesses da região. Nele se assumia que a principal riqueza era o vinho, embora reconhecendo ser o mesmo, em geral, de “deficiente fabricação”.[1]

A nobre utopia ia ao ponto de idealizar que a Bairrada, mais cedo ou mais tarde, iria fatalmente apresentar no mercado mundial de vinhos “um tipo consagrado”. Curiosa, também, neste mesmo número do jornal, uma notícia sobre a Palhaça, cuja população queria ver desanexada a freguesia do concelho de Oliveira do Bairro. Tudo terá começado por causa da imposição camarária da cobrança a dinheiro do imposto braçal, medida que visava, segundo o jornal, “acabar com a bandalheira de pagar ao encarregado dos serviços camarários um dia de trabalho por um copo de vinho na adega”[2].

Como Miguel França Martins nunca publicou qualquer livro, quase ninguém conhece os saborosos textos que derramou na imprensa, sem esquecer os dedicados ao teatro popular e versos para cortejos populares, igualmente inéditos[3]. Viria a falecer prematuramente em 20 de Agosto de 1959, contava então 59 anos de idade. Era casado com Noémia Clementina Figueira, também ela conservadora do Registo Civil no nosso concelho[4].

Tenho em meu poder um número significativo de textos que Miguel França Martins publicou no Jornal da Bairrada. É prosa bem esgalhada, com ritmo, capaz de prender o leitor logo nas primeiras linhas. Uma escrita viva, atraente, que recolhe usos e costumes de tempos idos, evoca figuras típicas da região e narra episódios com laivos picarescos, de inegável cunho popular. Peças importantes, a meu ver, para uma sociologia dos costumes bairradinos. Estes textos mereciam ser reunidos em livro, para prazer e conhecimento de todos. Duvidam? Deixo aqui só um cheirinho dessa prosa fluente e saborosa, coberta ainda com o pó do esquecimento. Foi publicada no Jornal da Bairrada de 28 de Novembro de 1953 e tem por título PÃO E VINHO … PÃO E VINHO…

“Na doce esperança de que no outro Mundo a Morte é Vida – Vita Mutatur, non tollitur – ainda, há pouco tempo, na nossa região, se festejava a Morte como um simples acontecimento transitório da Vida, para uma outra vida melhor. Sim, ainda há muito poucos anos que foi abolida, nos funerais da nossa região, a patuscada nos enterros, com que, lautamente, se banqueteavam à custa do morto todos aqueles que acompanhavam o féretro ao cemitério. E, misturados com coroas, em cujas dedicatórias se liam, a letras doiradas, saudades eternas e últimos beijos, se conduziam à cabeça das mulheres, de luto, canastras de pão alvo da Ti Joana Padeira, que regalava os olhos e abria o apetite. Canastras de pão e almudes de vinho e, às vezes, até queijo amanteigado da serra a esbarrondar-se da casca, ante os olhos ávidos do acompanhamento, que seguia, no silêncio das grandes dores.

Estas iguarias eram conduzidas para um estabelecimento da vila e ali se estabelecia, então, o Festim Post Mortem que, às vezes, até acabava com pancadaria, muito principalmente se metesse queijo e se alguns dos assistentes o fossem distribuindo pelos bolsos.

Ficou tradicional a interpretação dos sons que provinham das torres que tinham três sinos. Quando falecia um remediado, só tocavam dois, cujo som se assemelhava ou era interpretado com a letra da seguinte frase: “Pão e vinho … Pão e Vinho …”. Mas quando falecia, na terra, um rico lavrador, entrava, então, a tocar, também, o terceiro sino. Com som mais cavo, mais doloroso e mais profundo, que mais longe levava o som lúgrube dos seus gemidos e a ementa da merenda, completava-se a frase: “E… queijo…. e… queijo…”.

A patuscada nas lojas desapareceu para dar lugar à abertura da porta da adega, em casa do morto.

Quando faleceu a mulher do nosso engraçado Manuel João, o vizinho Marcos Vela foi apresentar, ao seu amigo enlutado, os sentimentos da sua dor e o Manuel João, em vez de agradecer as condolências sinceras que o Marcos lhe apresentava, diz:

– Olha, ó Marcos, vai abrir a porta da adega, bebe e dá de beber a essa gente.

Esta atitude é já uma última reminiscência dos velhos e apagados costumes do “Pão e Vinho… Pão e Vinho… e Queijo…”.

Estes costumes desapareceram, mas o que não desaparece, nos corações das pessoas bem formadas, é que, realmente – Vita mutatur, non tollitur”.


[1] Correio de Cértima, n.º 3, 30.08.1930.

[2] Idem, n.º 6, 25.10.1930.

[3] Arsénio Mota, Figuras das Letras e Artes na Bairrada, Porto, Campo das Letras, 2001, pp. 93-94.

[4] Jornal da Bairrada, Ano IX, n.º 217, 29.08.1959.

Curiosidades de uma viagem a Malta

1. Ir de férias é deixar para trás a floresta cerrada dos dias iguais e arrastados do trabalho, a rotina que cerca e encharca até aos ossos. Partir significa estar mais perto do desejo, acalentado ao longo do ano, de passar momentos diferentes, menos monótonos e repetitivos. De certo modo, as viagens reconduzem-nos a um tempo há muito perdido: o da leveza dos dias sem horários para cumprir, sem pressas ou compromissos. Tempo de inteira liberdade, de regresso ao castelo encantado da infância, onde habita a matéria de que são feitos os sonhos e os segredos mais temerários. Ao viajar soltamos o pé do lodo da vida. Iludimos o labirinto dos lugares habituais. Vamos ao encontro de um outro para quem também somos o outro.

2. Sem que nada o fizesse prever, aconteceu-me ir a Malta. Da ilha – dito de modo mais correcto: do arquipélago encravado entre a Europa e a África, no Mediterrâneo central – conhecia vagamente a situação geográfica e ouvira falar, também de forma vaga, dos célebres Cavaleiros de Malta. Associava até o nome do país ao título de um livro de Dashiell Hammett, O Falcão de Malta, um policial famoso inspirado nos cavaleiros que pagavam um imposto anual de um falcão vivo ao rei de Espanha. Era tudo, e esse tudo era tão pouco, o que sabia de Malta…

3. Regressa-se sempre, naturalmente, mais enriquecido. No bornal dos conhecimentos históricos guardo notas sobre algumas civilizações que ocuparam as ilhas desde tempos imemoriais: cartagineses e romanos, bizantinos e muçulmanos, normandos e espanhóis, franceses e britânicos (as 8 pontas da cruz que é símbolo dos Cavaleiros de Malta correspondem a outras tantas línguas originais da Ordem); sobre estes cavaleiros, aprendi que construíram Valetta, palácios e fortificações, e que derrotaram os turcos que os cercaram no século XVI, desferindo um golpe fatal nas pretensões muçulmanas no mediterrâneo central.

Como curiosidade, e a atestar a presença portuguesa nos quatro cantos do mundo, encontrei, com alguma emoção, uma placa comemorativa afixada num aqueduto em La Valetta onde pode ler-se: “Em memória do almirante Marquês de Niza e dos marinheiros portugueses sob o seu comando, que morreram combatendo lado a lado com os malteses durante a insurreição popular de 2 de Setembro de 1798 contra o domínio francês”.

De facto, Napoleão conquistara Malta em 1798. À semelhança do que aconteceu em Portugal durante as invasões francesas, tudo o que era valioso foi pilhado pelos ocupantes. Os malteses revoltaram-se e pediram ajuda aos britânicos. Os portugueses, embora em menor número, também deram o seu contributo para derrotar os franceses.

4. Visitar palácios e templos, igrejas e catedrais; povoações piscatórias com seus barcos tradicionais de cores vivas, a balouçar na baía azul e um mercado diário que lembra muito a feira da Palhaça, pois para lá do peixe fresco vende-se todo o tipo de roupas, produtos hortícolas, CDs, lembranças e óculos de sol, entre outras bugigangas; saborear a gastronomia local; aceder às várias ilhas em excursões de barco ou através do ferry; conhecer praias de água cristalina, que convidam ao mergulho retemperador quando o sol dardeja raios inclementes que nos mordem a pele; apreciar a solenidade de penhascos e baías, falésias e enseadas, zonas naturais de cortar a respiração, particularmente belas ao entardecer; sentir a terra avermelhada a contrastar com o verde dos pomares; contactar com a música e o folclore da região; dar uma saltada à aldeia do Popeye, recriada para o filme deste herói lendário que faz as delícias da criançada. Tudo isto nos oferece Malta, miscelânia de lazer e cultura que só pode purificar o corpo e o espírito.

5. Comino, a meio caminho entre Malta e Gozo, é a ilha mais pequena do arquipélago. Para mim, também a mais paradisíaca, porque desabitada e intacta, com a sua Lagoa Azul e os aromas intensos a cominho (que lhe dá o nome) e outras ervas aromáticas.

As águas oscilam entre um azul-turquesa e um verde-esmeralda que inebriam os sentidos. E depois, a luminosidade, a claridade azul difícil de descrever, os aromas adocicados suspensos no ar. Dir-se-ia que os deuses andaram por aqui, que deixaram a sua marca neste lugar único e desde sempre pressentido. Espaço mágico e íntimo, ainda não manchado pela intervenção humana, onde nos sentimos felizes e reconciliados com a natureza e por algum tempo lavados das feridas da existência.

6. Se nas viagens se procura sempre algum exotismo, em Malta ele surge-nos diante dos olhos nos autocarros que datam seguramente de há meio século. São lentos, de um amarelo torrado com uma risca laranja. Conduz-se pela esquerda e os preços são bastante convidativos. Em todos eles encontramos iconografia religiosa, complementada com dizeres do tipo: In God we believe/We believe in God. Se não tocamos à campainha (puxando um fio que percorre o interior do tejadilho) o autocarro não pára e só podemos sair na estação seguinte. O parque automóvel é degradado, com carros (normalmente italianos) que já não circulam em países europeus mais desenvolvidos e ainda assim em mau estado de conservação: espelhos retrovisores partidos ou inexistentes, latas amolgadas ou riscadas.

7. Finalmente, e porque não há bela sem senão, nas águas cristalinas de Malta vivem e ensaiam graciosos passos de dança as temíveis medusas (jellyfish, peixe gelatina), conhecidas entre nós por alforrecas. Picam (ou queimam?) que se farta e há avisos a anunciar a sua presença por tudo quanto é sítio. Digamos que sobre o paraíso se abateu, pronta a retirar-lhe alguma beleza e encantamento, a urticante maldição das alforrecas.

8. Todos os sítios de Malta são já e só uma lembrança do tempo em que, andando muito a pé, mal se dava pelo cansaço. Dias em que parecia andarmos nas nuvens, portanto sem colocar os pés no chão.

Recordar agora esses dias é regressar a uma alegria que não se extingue, porque os grandes dias são aqueles em que o tempo passa sem darmos conta disso e nos parecem mais pequenos. Alegria breve – mas duradoura.

Dez reflexões para um debate político

1. Ainda bem que o documento “O Nosso Presente e o Nosso Futuro: Algumas Questões Prementes” começa por fazer uma profissão de fé na existência dos partidos políticos – essenciais ao funcionamento da democracia representativa – o que significa que os seus subscritores contam também com eles para ultrapassar os graves problemas de funcionamento com que se debate a sociedade portuguesa contemporânea. É preciso saber resistir aos cantos de sereia dos que já começam a defender, em nome da segurança e da ordem, governos “fortes”. Gente que, como corolário da crítica aos partidos, parece apostar – embora não o diga expressamente – num velho e requentado fascínio por um tipo de legitimidade governativa que desvaloriza as “maiorias ignaras” de que falava Herculano e aposta nas competências técnicas e no mérito dos que supostamente possuem a moral necessária à morigeração da sociedade. Ora é preciso dizer que esse tipo de soluções, extraparlamentares e de pendor ditatorial, já experimentadas anteriormente em Portugal – veja-se o projecto cesarista de Oliveira Martins – está cada vez mais condenado ao fracasso e nunca foi capaz de ultrapassar os vícios dos mecanismos institucionais do parlamentarismo.

2. O documento agora apresentado é sem dúvida um sobressalto cívico importante. Tenho, porém, em relação aos seus resultados, o maior cepticismo. Explico porquê. Tudo passa, inevitavelmente, pelos partidos. Duvido que se consigam melhorar significativamente as coisas com “estes” partidos, caso não estejam dispostos a alterar as regras do seu funcionamento. Ao ler o documento, lembrei-me de um texto arrasador para o sistema político português, assinado por Clara Ferreira Alves no Expresso, em 2008. É um retrato impiedoso do país que somos. Após enumerar uma longa lista de casos graves que abalaram Portugal e que nunca foram resolvidos (desde o enigma da morte de Sá Carneiro ao caso Freeport, passando pelo processo Casa Pia, entre tantos outros) e que são o sintoma mais evidente dos compadrios políticos, do encobrimento e da corrupção a que os portugueses respondem com o habitual e displicente encolher de ombros que os caracteriza, a jornalista conclui: “Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de protecção e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e reputações, de dinheiros e negociação, que impede a escavação da verdade”.

3. Vou pois centrar-me na crise de legitimação do sistema político, e na manifesta inadequação dos partidos políticos aos novos problemas emergentes, por acreditar que as mudanças que o documento propõe passam muito pela superação da incapacidade que estes denotam em integrar e dar solução às exigências de transformação de uma sociedade mergulhada em clima de medo e desconfiança, profundamente assimétrica e desigual, onde, por isso mesmo, sem um resquício de igualdade digna desse nome, a liberdade é privilégio apenas de alguns. As manchas de pobreza e exclusão social são iniludíveis e constituem um poderosos desafio à coesão das sociedades actuais, obrigando-nos a questionar, de forma clara, os conceitos e as políticas de protecção social. O volume de bens e serviços gerados pelo modelo económico vigente acaba por criar obstáculos ao seu acesso por parte de um número considerável de cidadãos. Não significa isso a demonstração clara da muito desigual repartição da riqueza produzida? Não são até estes contrastes entre pólos de desenvolvimento e zonas de exclusão mais chocantes do que no passado? Que crédito nos merecem os actuais mecanismos de redistribuição de riqueza? Não serão o avesso dos propalados valores e princípios democráticos? Eis uma das perplexidades maiores do nosso tempo: os avanços científicos e tecnológicos geram, a par do crescimento da riqueza, uma mole imensa de deserdados e excluídos, gente privada do mais elementar exercício de cidadania.

4. A função política dos sistemas eleitorais não se esgota apenas na nomeação de representantes das populações: deve garantir, também, eficácia governativa. Convém então dizer que o drama da governabilidade não é exclusivamente português. Mesmo em países com tradições democráticas mais arreigadas, a imagem de marca dos partidos está longe de ser impecável. O caso da Itália é disso exemplo elucidativo. Não estaremos perante a inadequação de um determinado modelo partidário a uma sociedade complexa? Tudo está, portanto, em aberto. Como lucidamente avisa Eduardo Lourenço, a democracia não é, por si só, “uma máquina de felicidade política … e se precisássemos de símbolos para ela devíamos associá-la ao trabalho sem cessar recomeçado por Penélope”.

5. Aos partidos políticos cabe empenharem-se no combate à insuficiente democraticidade interna, a qual é inibidora da participação dos cidadãos; promover uma mais equilibrada representação de certos grupos sociais entre os seus membros; garantir uma profissionalização crescente do recrutamento do pessoal político, que até agora não tem passado de um meio expedito de fazer carreira entre as classes privilegiadas; evitar o predomínio dos interesses económicos, que acabam por sufocar todos os outros; centrar o seu esforço na diminuição dos antagonismos de classe e na criação generalizada de índices de conforto e bem-estar. Aquilo a que os partidos chamam “estabilidade democrática”, não passa de uma falácia enquanto as suas formas de agir continuarem a gerar o abandono, a falta de empenhamento e de representação activa de um significativo número de cidadãos. Como refere Eduardo Lourenço, “a opacidade reverteu para o interior de cada partido de massa e é tanto mais densa quanto mais de massa for”.

6. Por outro lado, conviria discutir, abertamente e com clareza, as vantagens e inconvenientes da actual definição das circunscrições eleitorais, ou a própria heterogeneidade dos círculos. Temos dois que, se não erro, elegem quase metade do Parlamento (Lisboa e Porto). Interessam-nos os círculos uninominais ou plurinominais, votar em listas ou em pessoas concretas? Em qual deles é possível assegurar melhor os interesses dos cidadãos e responsabilizar, de forma mais eficaz e transparente, os deputados que nos representam? Valorizamos um sistema parlamentar, semi-parlamentar ou presidencial? Damos preferência a um sistema maioritário (cujo paradigma é o modelo inglês) ou a um sistema representativo como o português? Queremos um sistema eleitoral que dependa mais do eleitorado ou dos partidos? Um sistema gerador de maiorias, que garanta eficácia governativa, embora algo injusto, porque não há tradução correcta de votos em mandatos, ou um sistema eleitoral mais respeitador das minorias, mas que reforça a partidocracia e gera a fragmentação? Qual o modelo que faz ressaltar mais a qualidade dos deputados e um maior controlo dos eleitores face aos eleitos? Que modelo garante um maior rejuvenescimento, substituição ou rotação dos deputados? Qual o que valoriza mais o voto dos indecisos?

7. Os sistemas de partidos reflectem aspectos fundamentais do processo democrático. Estão ligados à autonomia das instituições e à forma como elas permitem resolver o problema dos antagonismos políticos. Que preferimos: um multipartidarismo com partido dominante, o bipartidarismo puro, ou o partidarismo imperfeito? Ao proceder a um balanço dos problemas suscitados pelo multipartidarismo e pelo monopartidarismo, Maurice Duverger opina que o bipartidarismo suprime os conflitos secundários (todas as oposições passam a exprimir-se no quadro de um antagonismo fundamental) enquanto que o monopartidarismo aumenta os conflitos secundários e fracciona os grandes antagonismos. Tal constatação tem levado alguns legisladores a tentar limitar o número de partidos e a fazer caminhar o sistema político para o bipartidarismo. Diria que em Portugal essa tentação é crescente, alimentada pelo desejo de estabilidade política. A questão que tudo isto coloca é a de se saber se não será eticamente reprovável restringir o leque de partidos e obrigar os eleitores a votar apenas em dois deles, que acabariam por funcionar como motores de exclusão de uma boa parte do eleitorado que neles não se revê, pois há cada vez mais gente que não se identifica, ou sente representada, pelos dois grandes partidos que têm alternado no poder em Portugal. Até que ponto uma solução desta natureza não viola o princípio democrático? Num regime genuinamente democrático não deve a maioria permitir que a minoria se expresse na tomada de posições e não apenas de uma forma meramente consultiva? Eis algumas questões urgentes e inadiáveis a que conviria dar resposta, não tanto por se encontrarem na ordem do dia mas precisamente porque tantas vezes o não estão.

8. Assistimos hoje à emergência de novos problemas que alteraram profundamente a organização das sociedades. Basta citar as alterações demográficas e o aumento da esperança média de vida, a persistência do desemprego, o crescimento exponencial de gastos com a saúde, o flagelo a toxicodependência e da sida ou os problemas associados à criminalidade e à insegurança. Nunca como hoje o poder político foi obrigado a renunciar às rotinas da sua actuação clássica e a negociar ou estabelecer consensos com os novos grupos de pressão (ambientalistas, consumidores) ou organizações não governamentais com um campo de actuação ainda mais vasto. Enfrentamos, por assim dizer, uma mudança de paradigma. Sendo certo que não há democracia sem educação para a cidadania, não é menos verdade que o quadro político-partidário não esgota os anseios de uma cidadania solidária e interveniente. Os partidos já não correspondem, só por si, à complexidade das solicitações engendradas pelas sociedades actuais. Verdadeiras sociedades de risco e de ameaça à coesão social, nas quais o Estado se vê confrontado com novas exigências. Urge combater uma nova lógica de desenvolvimento económico que se dissociou do desenvolvimento social, que em vez de colocar a economia ao serviço do homem, colocou este ao serviço daquela. É preciso combater, sem tibiezas, uma política de liberalização do mercado e de maximização dos lucros, que se coloca friamente e sem alma à margem dos problemas sociais daí resultantes. Quanto mais for capaz de minimizar os riscos e garantir a segurança dos cidadão mais fiável será o Estado. É cada vez mais na resolução da aporia exclusão/inclusão que assenta a sua credibilidade e também a do sistema político de representação.

9. A comunhão ideológica parece estar a perder terreno. A expressão corrente e banalizada da intervenção política, abarcando os clichés, os preconceitos, os mitos e as crenças colectivas, os slogans e as vulgatas, não é já uma prerrogativa exclusiva duma casta de políticos profissionais que parece cada vez mais afastada do imenso mundo dos profanos. Seria bom que os políticos interiorizassem de vez o que deles disse há uns anos o filósofo José Gil: que não exercem quase poder nenhum, que dependem de mil forças estranhas, já não controlam nem mandam em quase nada e ninguém, restando-lhes apenas a imagem mediática. Outras entidades não partidárias, onde cabem os movimentos de cidadãos, estão a apropriar-se de forma crescente desses papéis. Num momento em que a crise de expectativas está instalada, em que a fragmentação e a diferenciação são cada vez maiores, até que ponto é legítimo exigir aos partidos políticos, e apenas a eles, resposta para todos os problemas? Estarão habilitados a incorporar a diversidade de especializações que a cada vez maior diferenciação social reclama? É de crer que não, o que leva a pressupor que os partidos começam a perder, tendencialmente, o monopólio da vida política, e vão ser obrigados a estabelecer um novo tipo de relações com novos mediadores de interesses sociais, novos artesãos e fabricantes do pensamento quotidiano, bem como com os vários intermediários culturais que fazem comunicar o chamado mundo erudito e as chamadas classes populares.

10. Ninguém faz hoje juras de fidelidade eterna aos partidos. As expectativas que anteriormente neles eram delegadas estão a ser, de forma crescente, apropriadas por outras entidades. A cada vez maior apetência pela captação do eleitorado central, baseada na política dos partidos que querem “pescar” eleitores em todos os quadrantes ideológicos (os chamados catch all parties) acabou por conduzir à sua desidentificação, ao esbatimento das fronteiras ideológicas e à indiferenciação programática. A volatilidade do voto e a abstenção são sintomas da crise de representação. Os partidos que querem ter futuro têm que dar a volta a esta equação, esforçando-se por acrescentar à democracia interna a capacidade de responder a estímulos externos.

O pior que nos pode acontecer, enquanto cidadãos, é deixarmos de ser espectadores comprometidos e permitirmos que se instale em nós a sensação de impotência para mudar as coisas. Também por isso o documento agora divulgado e subscrito por um grupo de cidadãos é importante e um contributo inestimável para o debate político. É a imaginação social em movimento, a alternativa possível aos poderes instalados do presente. É a tentativa de exploração do possível. A utopia no seu melhor, pode dizer-se. Uma tentativa de, a partir dela, garantir uma tensão no existente, criar contrapoder, abrir “o campo do possível para além do actual”, como diria Ricoeur.

Estarão os partidos à altura de discutir e analisar, de forma crítica e serena, este documento? Vão ser capazes de resistir aos acenos blandiciosos da demagogia e do calculismo político, a que o período eleitoral que se avizinha sempre convida?…

Saramago, a Bíblia e uma opinião de Vasco Pulido Valente

Um lamentável texto (1) de Vasco Pulido Valente (VPV) sobre a polémica instalada a propósito do mais recente livro de José Saramago obriga-me, embora contrafeito, a regressar a este tema. Lamentável porque não dignifica o investigador; antes o coloca, neste caso concreto, ao nível do historiador de pacotilha que de facto não é.

Vejamos: começa VPV por dizer que as opiniões de Saramago sobre a Bíblia “são ideias de trolha ou de tipógrafo semianalfabeto”, numa alusão ofensiva ao passado profissional do escritor, a roçar o elitismo mais doentio, como se todos tivessem que nascer em berço de oiro, como ele. Logo a seguir, outra diatribe: ter oitenta e tal anos, como Saramago, é “coisa que não costuma acompanhar uma cabeça clara e que, ainda por cima, não estudou o que devia estudar”. Pois não: Saramago teve que subir a vida a pulso e nesses tempos árduos em que se forjava o self made man não podia estudar, tinha é que trabalhar. Conheço de sobejo o argumento, mais uma vez a tresandar a elitismo. Frequentei estudos pós-graduados num estabelecimento de ensino onde VPV investiga e lecciona. Como éramos quase todos trabalhadores-estudantes, alguns professores davam aulas com evidente fastio, quase sem nos fitar nos olhos, um frete de todo o tamanho. E porquê? Porque sustentam a peregrina tese de que os estudos de pós-graduação não devem ser para trabalhadores-estudantes, gente sem tempo para investigar e queimar as pestanas na Biblioteca Nacional…

Saramago

A seguir, lá vem o argumento com a carga ideológica habitual, a invejazinha bem portuguesa, sempre pronta a desvalorizar o mérito alheio: “Saramago ganhou o prémio Nobel, como vários ‘camaradas’ que não valiam nada”. Para o preclaro e iluminado VPV a qualidade literária é coisa que não pode ser imputada a escritores ou poetas comunistas e quejandos. Digamos que as coisas boas e às vezes excelentes que VPV produz – ao contrário de outras lamentáveis, como o texto a que me refiro – aparecem nos intervalos de lucidez do historiador, que é bem mais novo que Saramago. De facto, que classificação merece esta impertinente afirmação: “Não assiste a Saramago a mais remota autoridade para dar a sua opinião sobre a Bíblia ou sobre qualquer outro assunto, excepto sobre os produtos que ele fabrica”.

Saramago não pode. Mas a ele, cronista e historiador ungido pelos eleitos, assiste essa autoridade para arrasar e demolir em farpas violentas – muitas vezes injustas e pouco clarividentes – tudo e todos. Seguindo à letra este raciocínio primário, podemos inferir não estar ao nosso alcance comentar os livros do historiador, por não serem produto nosso, amassado pelas nossas mãos. E assim ficaríamos impossiblitados de lhe dizer, cara a cara, que O Poder e o Povo. A Revolução de 1910, é uma interpretação altamente discutível e metodologicamente impugnável daquele período histórico (2). Ou que narrou os primeiros anos do regime republicano segundo uma óptica parecida com a de Cobb nos seus estudos sobre a Revolução Francesa, escapando-lhe o essencial das reformas indicadas pelos republicanos (3). Na verdade, para VPV a I República foi puro terror, não consegue vislumbrar nela os traços de modernidade que também contém.

Por fim, mas não menos importante, fixemo-nos neste raciocínio: “Depois do que fez no PREC, Saramago está mesmo entre as pessoas que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve”. O historiador refere-se ao período em que Saramago, no ano de 1975, esteve à frente do Diário de Notícias e despediu trabalhadores. Sem pretender escamotear esta realidade, conviria avivar a memória de VPV, lembrando-lhe que em todos os períodos revolucionários se cometem excessos. Referimo-nos a períodos de “conjuntura política fluida” e de “incerteza estrutural” (4) caracterizados por situações de excepção, onde é manifesta a aceleração do regime de funcionamento do campo político. Ao contrário do que acontece nos regimes políticos estabilizados, em que funcionam as mediações tradicionais, assistimos neste tipo de conjunturas à confrontação aberta entre novas gramáticas políticas.

Seguindo à letra o raciocínio de VPV, também poderíamos dizer: depois do que fez no tempo da Inquisição, a Igreja está mesmo entre as instituições que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve. Claro que recusamos liminarmente este raciocínio grosseiro. A Igreja, como as pessoas, também evolui. E só por má fé se pode não reconhecer-lhe, hoje, o importante papel que desempenha nas áreas da assistência e da solidariedade social, ou na inculcação de valores que reforçam a coesão familiar e social, entre outros.

Enfim: no extenso rol das suas certezas inabaláveis, o que VPV às vezes mostra é a mais completa insensibilidade para conhecer e entender o Outro. Mesmo que não concordemos com ele, o que o Outro pensa não pode ser visto com hostilidade ou ameaça. A solução não passa por erguer muros em vez de pontes. A cultura da hospitalidade deve prevalecer sobre a cultura da indiferença ou da guerrilha permanente. O insuspeito filósofo Emmanuel Lévinas via no encontro com o Outro – enquanto ser único e irrepetível – um “acontecimento” ou até um “acontecimento fundamental”, o patamar mais elevado da convivência humana. O padre Carreira das Neves soube fazer isso, no frente a frente com o autor do Memorial do Convento.

Pena que VPV misture coisas sérias com as banais crises hepáticas que por vezes o atormentam e o levam a esgalhar prosa tão ácida, retorcida e deliberadamente provocatória.


(1) Vasco Pulido Valente, “Uma farsa”, Público, 23.10.09

(2) A. H. Oliveira Marques, Guia de História da 1.ª República Portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1981, p. 142.

(3) Manuel Villaverde Cabral, Portugal na Alvorada do Século XX, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 154 e 262.

(4) Michel Dobry, Sociologie des Crises Politiques, Paris, Presse de la Fundation Nationale des Sciences Politiques, 1992, pp. 40 e 150.

Eleições autárquicas na Palhaça: a emergência do feminino

Mulheres Autarquias1É nas eleições autárquicas que encontramos uma maior proximidade entre eleitores e eleitos. Nas pequenas freguesias até conhecemos os candidatos e, em muitos casos, mantemos com eles relações de amizade, proximidade e vizinhança. Se essa proximidade já nos agrada, é ainda maior o regozijo quando assistimos a uma participação crescente das mulheres na vida política da nossa terra. Cresce a esperança de novos rostos, de vermos um pouco mais humanizado o poder e um pouco mais diligente o cuidado do outro.

A participação das mulheres na política e a acção transformadora que podem exercer é uma aquisição muito recente em Portugal. Começa praticamente com a revolução de 25 de Abril de 1974. Antes disso, muito caminho foi trilhado, num tempo em que, confinadas ao lar, lhes estava exclusivamente reservado o papel de esposas e mães. Tiveram que lutar e protestar para fazer ouvir a sua voz e reclamar direitos cívicos e políticos, o mesmo é dizer, dignidade e emancipação, instrução e participação activa na sociedade.

Há precisamente cem anos, Ana de Castro Osório apresentou ao Congresso Republicano de 1909 uma proposta para que fosse consagrado no respectivo programa a questão do voto feminino. Instaurada a República no ano seguinte, o Partido Republicano esqueceu rapidamente as “amplas liberdades” que prometera no tempo da Monarquia. Apesar de nas Constituintes muitos deputados terem visto no direito de voto das mulheres uma proposta justa, apenas três tiveram a coragem de publicamente manter as suas afirmações (1). Já vem de longe quem nos empurra, quando falamos em compromissos rasgados ou promessas por cumprir. O que choca, a esta distância, é a insensibilidade dos políticos da época para resolver o problema.

Em matéria de voto feminino, muito somos devedores – homens e mulheres – à médica Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a exercer o direito de voto em 1911. Como era viúva, teve artes de aproveitar uma lacuna da lei, que conferia direito de voto aos “chefes de família” (figura jurídica entretanto abolida da Constituição da República) mas sem especificar o sexo dos mesmos. Ora Beatriz Ângelo era “chefe de família” e assim deu um empurrão importante na luta pelo direito ao voto feminino. A incomodidade foi tanta que a lei acabou por ser mudada logo a seguir, para que casos idênticos não viessem a repetir-se.

As mulheres da Palhaça que em 2009 integraram listas partidárias, e por maioria de razão as que as encabeçaram, como aconteceu com as do PS e do CDS, estão de parabéns. Atreveram-se a dar a cara e a desafiar preconceitos, numa terra em que são ainda visíveis algumas representações tradicionais sobre o papel que devem ter na sociedade. A crescente inserção no mercado de trabalho deu às mulheres outra independência e legitimidade para intervir. Ainda bem que assim é. É tempo de se valorizar o que são capazes de fazer em vez de esperarmos que sejam perfeitas – como se fosse possível aos seres humanos ser perfeitos… – uma estratégia cínica que só serve para as diminuir. É um acto de inteligência reconhecermos a sensibilidade e o voluntarismo que denotam para as causas sociais, ou a riqueza de experiências e realidades vividas de que são portadoras.

Mais do que ficar à espera dum sistema de cotas e leis da paridade, as mulheres – e os homens que com a razão da sua luta se identificam – devem continuar a pugnar pelos seus direitos. Convém não embarcar em lugares-comuns generalizados, na lengalenga dos que dizem que as mulheres são melhores em tudo, que são elas quem manda em casa, que exibem um maior quociente emocional, que com o tempo lá chegarão (ao poder), que por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher (quase sempre anulada, para que o homem brilhe…) e outras larachas do costume. Nada de mais falacioso neste discurso masculino que mais não faz que perpetuar, ainda que de um modo subliminar, diferentes formas de dominação. Como se houvesse um determinismo de género no exercício do poder. As mulheres não têm que estar atrás ou à frente dos homens. Devem caminhar a seu lado. Não tanto por uma questão de igualdade, mas como forma de afirmar a sua identidade e diferença e abolir desigualdades. Sim, porque como costumava dizer Maria de Lourdes Pintasilgo a igualdade perfeita não existe apenas na lei e nas formas, mas na vida toda.

As eleições são um jogo onde uns ganham e outros perdem. Mas participar já é ganhar. As mulheres da Palhaça que de forma corajosa se envolveram na disputa eleitoral autárquica saem vitoriosas desta contenda, qualquer que tenha sido o resultado. Há que lhes dar os parabéns. E se por causa da sua condição de mulheres algum arrufo de discórdia ou alguma atoarda integrista lhes foi arremessada durante a campanha, isso significa que a crescente exposição pública a que voluntariamente se submetem está a incomodar os habituais velhos do Restelo e que a melhor forma de apressar o tempo da igualdade de oportunidades é intervir socialmente.

As mulheres na política melhoram a qualidade da democracia e conferem-lhe uma nova dimensão: uma representatividade nos órgãos eleitos mais conforme à composição da sociedade. Se as diferentes comunidades são compostas por homens e mulheres, que razões ou argumentos impedem que quem as representa politicamente sejam homens e mulheres?

Responda quem souber…


(1) João Esteves, As Origens do Sufragismo Português, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998, p. 73.

O TGV, o “perigo espanhol” e uma polémica de 1853

Assistimos, nos dias que correm, sempre que se fala da linha de alta velocidade, ao esgrimir de argumentos que remetem para o marulhar de outros tempos. Para o longínquo ano de 1853, como adiante se verá. Quando as solas da imaginação se rompem, o remédio é recuperar alguns registos antigos de inspiração alheia.

Vem isto a propósito do que Manuela Ferreira Leite afirmou num debate televisivo que travou com José Sócrates a propósito do TGV: que Portugal não é uma província espanhola. Assim mesmo. O que está aqui em causa não é um respeitável e diferenciado ponto de vista sobre os méritos ou deméritos da linha férrea de alta velocidade. O assunto é polémico e tem causado naturais clivagens entre as diversas forças políticas. A uns interessará mais o investimento público, a criação de empregos e a oportunidade de negócios; outros argumentarão que há países que continuam a dispensar o TGV e nem por isso deixam de ser evoluídos e modernos.

Nada de mal quando se discutem concepções de sociedade e modelos de desenvolvimento. São diferentes maneiras de tentar melhorar o destino de Portugal. Coisa bem diferente é o aceno explícito ao populismo, o resvalar para os tortuosos caminhos da demagogia, o reacender de velhos mitos nacionalistas (de Espanha, nem bom vento nem bom casamento). Foi por aí que enveredou Manuela Ferreira Leite ao agitar o papão do “perigo espanhol”.

É assim irresistível não falar do que se passou em 1853. Também nessa altura, ao discutir-se a criação dos caminhos de ferro, se atearam as labaredas da polémica. Como refere Maria Filomena Mónica, o que estava em causa, em 1853, “era já a ligação à Europa” quando os comboios eram vistos como “o símbolo por excelência do Progresso”(1). Tudo era diferente, mas tudo parece igual. Em 1853 a Europa mais evoluída já se afastara bastante de Portugal, que nem sequer tinha uma rede viária ou ferroviária de ligação a Espanha. A crença na possibilidade de desenvolver o País e acabar com o isolamento passava pela construção de estradas, caminhos de ferro e portos. A polémica entre Alexandre Herculano e Lopes de Mendonça ficou célebre, por revelar duas atitudes opostas: dum lado, a visão mais conservadora e representativa de um mundo em vias de extinção, protagonizada por Herculano; do outro, a visão modernizadora de Lopes de Mendonça, para quem a abertura à Europa passava pela construção de uma rede viária ou ferroviária. Como pano de fundo pontificava a recorrente obsessão com a identidade e a independência nacional.

Repare-se nos argumentos de Alexandre Herculano: “Os caminhos de ferro tendem a destruir as divisões entre os povos, a uniformizar as ideias e os costumes e a igualar as diversas civilizações. As antigas autonomias vão desaparecer: vão destruir-se todas as formas de separação conhecidas. Sob este aspecto, os diferentes povos vão constituir, num futuro talvez mais próximo do que supomos, uma sociedade única” (2).

Como se vê, para Herculano o comboio era o coveiro das pequenas nações. O caminho de ferro, na ausência de uma enérgica descentralização administrativa, conduziria à importação das ideias e produtos estrangeiros e fazia perigar a independência nacional, empurrando-nos para uma mais que possível “fusão” com a Espanha. Já para Lopes de Mendonça a construção do caminho de ferro e a ligação a Espanha aproximava-nos da Europa e ajudava a derramar sobre o País o progresso material que por cá se mantinha ausente.

Tal como hoje acontece com o TGV, outro ponto importante da discussão dizia respeito ao financiamento das obras públicas. Teria a sociedade portuguesa dinheiro para construir o caminho de ferro sem o contributo do Estado? Herculano assumia a posição do liberal clássico, para quem a sociedade deve fazer o mais que puder, deixando ao Estado a segurança das populações. Esta polémica – tal como a que gira hoje em torno do TGV – revela duas atitudes opostas face à modernização: a da defesa de um estado mínimo e da liberdade privada, protagonizada por Herculano, para quem a liberdade e a moral precedem os melhoramentos materiais; e a de Lopes de Mendonça que entendia o patriotismo como devoção ao estado nacional e identificava a descentralização municipalista (tese cara a Herculano) “com a prepotência dos caciques de campanário”.

Um outro curioso ponto de contacto entre esta polémica de 1853 e a actualidade tem a ver com a velha rivalidade entre Porto e Lisboa. Hoje discute-se se é mais vantajosa a ligação a Espanha a partir de uma ou outra cidade. Em 1853 o Porto “temia que a capital e o seu porto se agigantassem ainda mais graças ao incremento do comércio com o país vizinho, deixando o Norte abandonado a um inexorável definhamento” (3).

Digam lá se os argumentos esgrimidos há mais de 150 anos estão ou não estão na ordem do dia. A atitude subjacente a estes textos de Herculano e Lopes de Mendonça não podia ser mais actual. Vale a pena lê-los e familiarizarmo-nos com eles. Está lá tudo. É só trocar caminho de ferro por TGV, ou por Internet, ou por globalização. Mas o que separava irremediavelmente estes dois homens é muito mais que o caminho de ferro. São duas concepções antagónicas de Estado e da liberdade que reflectem a tensão, nunca inteiramente resolvida ou superada, entre democracia e liberalismo.

Também o que separa hoje os que são pró e contra o TGV é muito mais que a linha de alta velocidade em si mesma: é sobretudo a maior ou menor confiança no papel do Estado para conduzir a sociedade e os destinos do País; o maior ou menor receio de correr riscos, sendo certo que o conservadorismo se cola mais aos que, não desdenhando o progresso, o desejam sem os habituais incómodos da mudança. Um dos elementos da retórica conservadora é a perversidade, que assenta no postulado segundo o qual as acções de mudança provocam efeitos não esperados, ou o contrário do que pretendiam (os chamados efeitos perversos) que contribuem para a não realização dos objectivos da acção. Outro elemento é o risco, que sublinha que os custos da mudança são de tal monta que podem comprometer as conquistas já alcançadas. (4). Como disse um dia a jornalista Helena Matos, o “não” à obra, seja ela qual for, é o não a um mundo que não sabendo como se mudar se prefere manter assim.

Por mim, arrisco uma tese bem mais peregrina sobre o TGV. Discordo da ligação Porto-Lisboa mas não rejeito as ligações a Espanha, quer a norte quer a sul. Não vejo nisso qualquer cedência aos espanhóis, nomeadamente às suas pretensões hegemónicas na península. Valorizo tudo o que combate o isolamento e o “orgulhosamente sós”, com o que isso implicou noutros tempos de vida miserável generalizada a grande parte da população, além de um evidente atraso civilizacional. O dilema parece ser este: ou continuarmos um País pobre, resguardado das ameaças à sua nacionalidade, ou avançarmos para um progresso material que obriga à formação de espaços económicos e políticos tendencialmente uniformizadores e onde as nacionalidades se diluem.

Mas a razão mais ponderosa desta minha opção é outra: será que Portugal ficará mais rico sem o TGV? Seríamos mais ricos sem as auto-estradas que temos? Teríamos escapado da crise e da cauda da Europa sem o Centro Cultural de Belém, sem a Expo 98, sem o Euro 2004?

É de crer que não. Pobres por pobres, agarremos as oportunidades. Portugal lembra-me sempre o triângulo das Bermudas, onde desaparecem coisas de forma insólita, como barcos e aviões. Ali há dedo de extraterrestres, dizem os mais avisados. Já em Portugal é o dinheiro que desaparece, torna-se volátil, esfuma-se, dissolve-se no ar, escapa-se não se sabe bem para onde. Se não for para o TGV vai parar a outro buraco qualquer, há-de desaparecer sem deixar rasto ou marca visível. Um verdadeiro poço sem fundo.

Os extraterrestres do nosso atraso sempre adiado são os suspeitos do costume. Pena é que não encontremos forma de os substituir por outros mais capazes e confiáveis. E daqui não saímos, enquanto continuarmos amarrados a preconceitos atávicos e a despertar fantasmas do século XIX no Portugal europeísta do século XXI.


(1) Maria Filomena Mónica (org. e prefácio), A Europa e Nós: Uma Polémica de 1853. A. Herculano contra A. P. Lopes de Mendonça, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais/Quetzal Editores, 1996, pp. 7-8.

(2) Alexandre Herculano, Opúsculos, Tomo I, Questões Públicas. Política, Lisboa, Livraria Bertrand, 1983, p. 359.

(3) Maria de Fátima Bonifácio, “Diferente, igual”, Expresso (Cartaz), n.º 1233, 15.06.1996, p. 27.

(4) Albert O. Hirschman, O Pensamento Conservador. Perversidade, Futilidade e Risco, Difel, 1997.

Rimbaud, Verlaine e a parábola de Animus e de Anima

A ler (e a reler) Rimbaud e Verlaine. Pela noite dentro, quando é mais difícil cair nos braços de Morfeu. A poesia apetece quando alguma parcela de ansiedade se enrosca no corpo e na alma. O mesmo se passa quando uma faca de saudade se atravessa na garganta. A prosa bem pode esperar por tensões mais longas.

Paul Verlaine

Rimbaud a correr para Paris, ao encontro de Verlaine. A viajar pelos “caminhos do céu” (os da poesia e, quem sabe, os do inferno). Verlaine perdido na aventura dos excessos. Dois talentos em estado puro, a arder na pira dos sentimentos em que uma espécie de satanismo intimo os devora e os consome. Eternos incompreendidos, como se o mundo fosse demasiado pequeno para conter a sua grandeza.

Neste tempo de abençoadas insónias, apetece-me partilhar convosco o texto “Parábola de Animus e de Anima: para dar a compreender certas poesias de Arthur Rimbaud” (extraído de Paul Claudel, Positions et Propositions, Gallimard, 39 Edition, 1928).

“Nem tudo vai bem no lar de Animus e de Anima, o espírito e a alma. Já lá vai o tempo, a lua de mel acabou cedo, em que Anima tinha o direito de falar á vontade e Animus a escutava com arrebatamento. No fim de contas, não foi Anima quem trouxe o dote e governa o lar? Mas Animus não se deixou reduzir muito tempo a esta posição subalterna e logo começou a mostrar a sua verdadeira natureza, vaidosa, pedante e tirânica. Anima é uma ignorante e uma tola, nunca foi à escola, ao passo que Animus sabe um monte de coisas, leu um monte de coisas nos livros, aprendeu a falar com uma pedrinha na boca, e agora, quando fala, fala tão bem que todos os amigos dizem que não se pode falar melhor. Nunca acabaríamos de o ouvir. Agora Anima já não tem direito de dizer uma palavra, ele tira-lhe, como se diz, as palavras da boca, sabe melhor do que ela o que ela quer dizer e, por meio das suas teorias e reminiscências, dá-lhe tantas voltas, arranja tudo tão bem que a pobre simplória já não entende nada. Animus não é fiel, mas isso não o impede de ser ciumento, porque no fundo sabe que é Anima que tem toda a fortuna, ele é um mandrião e não vive senão do que ela lhe dá. Também não deixa de a explorar e atormentar para lhe arrancar uns tostões, belisca-a para a fazer gritar, combina farsas, inventa coisas para a amargurar e ver o que ela dirá, e à noite conta tudo, no café, aos amigos. Entretanto, ela fica em silêncio em casa a cozinhar e a limpar tudo como pode, depois dessas reuniões literárias que empestam a vómito e a tabaco. Reuniões que são raras, aliás; no fundo, Animus é um burguês, tem hábitos regulares, gosta que lhe sirvam sempre os mesmos pratos. Mas acabou de acontecer uma coisa engraçada. Um dia que Animus regressava a casa fora de horas, ou talvez dormitasse depois do almoço, ou talvez estivesse absorvido no trabalho, escutou Anima a cantar sozinha, por detrás da porta fechada: uma canção curiosa, que ele não conhecia, e não havia meio de encontrar as notas ou as palavras ou a chave; uma estranha e maravilhosa canção. Bem tenta sorrateiramente obrigá-la a repetir, mas Anima faz-se desentendida. Cala-se desde que ele a olha. A alma cala-se desde que o espírito a olha. Então Animus descobriu um truque, vai-se arranjar para que ela acredite que ele não está presente. Vai para fora, conversa ruidosamente com os amigos, assobia, põe-se a tocar alaúde, a serrar madeira, canta refrões idiotas. Pouco a pouco, Anima tranquiliza-se, olha, escuta, respira, julga que está só e, sem barulho, vai abrir a porta ao seu amante divino. Mas Animus, como se disse, é um cegueta”.

 

Jorge de Sena: as flores tardias da admiração nacional

Regressar à Pátria seria o seu maior desejo, mas acabou por morrer no exílio. Só então apareceram os incondicionais defensores do seu regresso. A trasladação dos restos mortais de Jorge de Sena para Portugal foi dolorosamente adiada pela incúria do costume. É talvez a derradeira tentativa de reconciliar um dos portugueses mais cultos e civicamente mais desassombrados do século XX com a Pátria que lhe foi madrasta. Pasme-se: tudo aconteceu trinta e um anos depois de a Assembleia da República ter exprimido por unanimidade – três dias após a sua morte, em 4 de Junho de 1978 – uma recomendação para que os despojos do escritor viessem para Portugal. Tanta água correu já debaixo das pontes que, a estes anos de distância, o voto de pesar daquele órgão de soberania soa um pouco a voto piedoso de mero oportunismo político.

Não foi possível regressar em vida, mas o seu corpo repousa agora na terra portuguesa que tanto amou e ilustrou. Amou, sim, porque as suas muitas iras contra o país eram uma espécie de ternura do avesso; porque se pode ter razão na cólera quando se tem razão no amor, como afirmou Vergílio Ferreira. O azedume e o ressentimento gerados pela sua condição de emigrante forçado eram indisfarçáveis. Quando, em 1978, alguns amigos equacionaram a possibilidade do seu regresso, respondeu de forma desassombrada, numa entrevista concedida a Arnaldo Saraiva: não pedi, não peço e – mais – não aceito (1). Eis uma das muitas imprecações do escritor que falava na “desgraça de nascer num país que se empequenece irremediavelmente” (2).

Longe da Pátria, Jorge de Sena nunca foi um espectador da vida. Sempre irrequieto e interveniente, jamais deixou de ser uma presença constante na cultura portuguesa. Como queria viver em voz alta, foi para o exílio ensinar o muito que sabia e que por cá lhe era negado: primeiro no Brasil; depois nos Estados Unidos, onde foi professor catedrático na universidade de Santa Bárbara, na Califórnia. Aí morrerá prematuramente, com 59 anos, vitimado por um cancro do pulmão. Aconteceu num ano de 1978 demasiado funesto para a literatura portuguesa: além de Sena, desapareciam também do nosso convívio Vitorino Nemésio e Ruy Belo.

Foi no estrangeiro que produziu grande parte de uma obra fecunda e variada, com incursões na poesia, no ensaio, no teatro, no conto, na tradução, na crítica literária e na história da literatura, entre outras. Na muito vasta e a vários títulos notável obra do autor de Andanças do Demónio avulta também a copiosa troca epistolar com personalidades de reconhecido mérito na cultura portuguesa como são Eduardo Lourenço, Guilherme de Castilho, José-Augusto França, José Régio, Sophia de Mello Breyner ou Vergílio Ferreira. O correio era-lhe vital. Essas cartas de tempos cinzentos são, por assim dizer, o seu Diário; permitem conhecer melhor a sua personalidade e enorme capacidade de trabalho, os seus pensamentos e mágoas, a inteligência fulgurante, o estilo torrencial, o talento da sua escrita e a vastidão da sua cultura humanista e universalista, que não cabia nos frágeis caixilhos de um ambiente fechado como era o do Portugal do seu tempo de exílio.

Jorge de Sena lutou contra a morosidade e o descaso dos editores portugueses. Contra a falta de atenção à sua obra, que muito o feria por acreditar na força daquilo que publicava. Contra as injustiças de uma universidade conservadora que se negava a reconhecer as suas capacidades. Foi um homem que nunca se poupou, que sempre deu a cara, que teve a coragem de falar alto com inteira lucidez e desassombro. Cercado de adversidades, nunca foi ruminar desânimos e frustrações na Vale de Lobos do costume. Viveu intensamente e com paixão, sempre pronto a estragar a festa nacional, o nacional porreirismo, e a zurzir nos videirinhos do costume, a “canalha” e a “lítero-cambada”. Ripostava frontalmente, quase sempre com uma agressividade que muitos consideravam inútil, porque excessiva. Homem de eriçada sensibilidade, apetece dizer que se comprazia nessa situação de “mal amado”, sempre pronto a ferir a epiderme dos acomodados e insigne-ficantes das letras portuguesas. O Reino da Estupidez é uma sátira feroz onde mostra não transigir com a mediocridade e distribui vergastadas dolorosas na falsa erudição e na superficialidade de muitos falantes da mesma língua. O prólogo desta obra alude à sua “prosa mais áspera, mais amarga ou mais irónica” (3). Por muito amar a cultura é que se tornava impiedoso com os responsáveis pela sua contrafacção.

Embora tardiamente, faz-se justiça, com algum sabor de rendição (reconhecimento) para quem nunca se rendeu. Sena está entre nós, para sempre. Mais do que a uma mera convenção, assistiu-se à reconciliação definitiva de Portugal com um dos vultos mais inteligentes e cultos, e ao mesmo tempo mais incómodos (agora já um pouco mais cómodo…) da cultura portuguesa contemporânea. Na cerimónia religiosa da Basílica da Estrela estiveram de mãos dadas o sentimento e a admiração pela figura de Jorge de Sena. Repartição do pão justo e necessário, sem o habitual e sempre suspeito carpideirismo nacional.

Entretanto, muito ainda há a dizer sobre a sua rica, extensa e multifacetada obra. Jorge de Sena é uma espécie de argonauta intelectual sem paralelo entre nós. Apetece deixar aqui o recado de Eduardo Lourenço: “Quem já o leu que o releia e quem o não leu se meça linha a linha com o mais provocante e menos complacente dos nossos ensaístas” (4). Na verdade, a obra que nos lega – embora com a marca da controvérsia – é mais que suficiente para o manter vivo por muitos e muitos anos. O futuro há-de fazer-lhe justiça, vingando a dolorosa indiferença que os seus contemporâneos, com raras e honrosas excepções, sempre lhe devotaram. Repetindo o que Pessoa fazia o Alberto Caeiro dizer, não é possível que a gente faça o que faz para nada.

Embirro solenemente com homenagens enfatuadas ou rituais comemorativos em aniversários ou missas de sétimo dia, num tempo em que tudo é “histórico” e tudo e todos se comemoram, quase sempre sem nenhum merecimento. Mas este reconhecimento anda arredio a tais critérios. É justo e mais que merecido. Os que já tiveram o privilégio de ler Jorge de Sena não têm qualquer dúvida sobre isso.

Parece ter acabado, enfim, a duradoura conspiração de silêncio, o verdadeiro escândalo pelo qual todos somos, de certo modo, responsáveis: a morte e o exílio de Jorge de Sena fora de Portugal.


(1) O Jornal da Educação (n.º 11, Abril de 1978).

(2) Jorge de Sena/José-Augusto França, Correspondência. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007.

(3) Jorge de Sena, O Reino da Estupidez, Lisboa, Edições 70, p. 11.

(4) Eduardo Lourenço, “O último Sena”, Expresso, 11.01.1975.