Aveiro em Dia de Finados – o obelisco da discórdia

Monumento aos vivos“Parece-me que as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas.”  Mark Twain

“Essas poucas palavras lavradas na pedra resumem com uma majestade impessoal tudo o que o mundo precisa de saber de nós” – Marguerite Yourcenar

Em Aveiro, “berço da liberdade”, como lhe chamou Marques Gomes, acontecem coisas de espantar. Acabo de ler, da lavra do ilustre aveirense Aberto Souto de Miranda, que já foi Presidente de Câmara, que o seu nome está gravado na pedra de um obelisco colocado no Cemitério Sul, numa lista que integra Presidentes de Câmara dos últimos cem anos. Eis o poder autárquico no seu melhor.

Alberto Souto manifestou de imediato o seu desagrado no Facebook. Com o sentido do ridículo só ao alcance daqueles que o não são, escreveu, com refinada ironia: “Agradeço muito à Junta de Freguesia o terem-me imortalizado num obelisco no cemitério. Que era fantasma já se sabia. Agora com lugar cativo no cemitério é que ainda não. A coisa é um bocadinho estranha, para não dizer totalmente deselegante. Os meus familiares já começaram a receber coroas de flores e mensagens de solidariedade. A minha mulher e os meus filhos abraçaram-me e obrigaram-me a beber um bom tinto, para ter a certeza que eu não era um holograma ou um fake human. Os amigos em romagem curvam-se perante a minha memória. As funerárias capricham na cerimónia. E o epitáfio, o morto vai escrevê-lo (…). E desculpem ser um tipo com princípios “démodés”, de respeito pela memória dos entes queridos: não se fazem comícios no dia e à hora da visita aos cemitérios. Até o Bispo…. Mau demais.”

Garanto-vos que se me tivesse acontecido o mesmo, ter lá o nome escarrapachado sem consentimento prévio, tudo faria para o apagar. E se acaso o poder autárquico fizesse orelhas moucas a tal pretensão, ou assobiasse para o lado, não hesitaria em recorrer ao Obélix. Quem carrega às costas menires que pesam toneladas, muito facilmente poderia remover aquele obelisco erigido sem pudor no corredor de entrada do Cemitério Sul.

Obélix2Tudo aconteceu no passado dia 1 de Novembro, Dia de Finados. Temos que agradecer ao poder autárquico aveirense o ter-nos aberto os olhos para a emergência de um novo paradigma nos cemitérios públicos: a convivência, gravada na pedra, entre os vivos e os mortos, ao mesmo tempo que se substitui o minimalismo estético pelo kitsch arquitectónico (não propriamente o kitsch do monumento, mais o da ideia que lhe subjaz, porque é também kitsch a redução dos sentimentos religiosos a um objecto de utilização profana). Eis mais um desplante duma sociedade que Guy Debord sempre viu como uma imensa acumulação de espectáculos. Espectáculo triste, este que teve lugar num cemitério de Aveiro, onde além de se perpetuar a memória e revigorar a saudade dos que já nos deixaram, é possível agora homenagear também os vivos, como se de um mero espaço cívico se tratasse. Sim, a morte é uma expressão da vida: morremos porque estamos vivos, mas perpetuar na pedra ou no bronze vivos e mortos ao mesmo tempo é não perceber nada dessa distinção essencial.

Concentremo-nos na imagem do obelisco inaugurado na presença de centenas de pessoas e que pretende homenagear os Presidentes de Câmara que atravessaram o centenário do cemitério. Na base está inscrito o nome do Presidente de Câmara em exercício no ano de 1918, aquando da aquisição do terreno: Lourenço Simões Peixinho, a quem Homem Cristo chamava “o caboz” (que significa peixe muito pequenino). E no topo, a fechar o ciclo, qual águia altaneira a sobrevoar o espaço cemiterial, transformado agora em nova forma de perpetuar o poder, quem haveria se estar? Nem mais nem menos que o actual Presidente de Câmara, de seu nome José Agostinho Ribau Esteves.

Como já não cabe mais ninguém no obelisco, imaginemos que nos próximos cem anos os futuros Presidentes manifestam a mesma veia comemoracionista e o mesmo acrisolado amor pela perpetuação das suas memórias na pedra ou no bronze. Saia mais um obelisco para o Cemitério Sul! E a trapalhada não se fica por aqui. A União de Freguesias da Glória e Vera Cruz, autora da iniciativa – seguramente depois de ouvir e ter o aval da Câmara Municipal – fala em “memorial aos 100 anos do cemitério sul da cidade”. Ora é preciso dizer que as coisas podem não ser bem assim, quando falamos em centenário. Em 1918 foi comprado o terreno, mas segundo o Portal de Aveiro o primeiro funeral, de um morador de São Bernardo, ocorreu a 24 de Outubro de 1919. Estamos a falar de centenário de quê? Seguramente que do primeiro enterramento não é. Será da decisão que aprovou a construção do cemitério? Ou da sua inauguração? Se sim, será que ela aconteceu no mesmo ano em que se procedeu à aquisição do terreno? Responda quem souber.

Nem tudo seria mau se o obelisco pudesse ser levado a sério. Se assim fosse, Ribau Esteves estaria à frente dos destinos de Aveiro por apenas mais dois meses. Os aveirenses e o Rossio podiam, finalmente, respirar de alívio.

Apetece dizer: ah! se Homem Cristo cá estivesse. Não deixaria de zurzir nos arrivistas, “os adventícios, que se vieram estabelecer em Aveiro”, e que os aveirenses receberam “de braços abertos e, estendendo o pescoço à canga, sofreram-lhes o jugo, deixando-os dominar. É possível que venha daí a tara com que os de Aveiro, ainda hoje, (…) tratando mal os nativos estão sempre de cócoras diante dos que chegam de fora.”[1]

Apetece também dizer: ah! se Carlos Candal cá estivesse. Um político frontal, irreverente, que não hesitava em colocar algum picante na política. “Antes de tudo sou aveirense” – gostava de dizer, com orgulho. E por ser aveirense fustigava os que, no dizer de Mário Sacramento, só começaram a comer ovos moles em idades muito avançadas. Por isso criticou em tom sarcástico Paulo Portas e Pacheco Pereira no seu Breve Manifesto anti-Portas em Português Suave, quando os dois políticos lisboetas se candidataram pelos respectivos partidos ao círculo de Aveiro. Entre muitos outros mimos contidos nos 25 pontos do Manifesto, aqui fica este: “Só nos faltava agora mais essa: sermos doravante representados no Parlamento por dois intelectuais da capital”.

Sem Homem Cristo e sem Carlos Candal, os aveirenses que se cuidem. Os que não souberam revelar, até agora, grandeza moral para um pedido de desculpas públicas pela peregrina ideia de mandar gravar no obelisco o nome de alguns vivos ao lado dos mortos – que assim chegam ao cemitério mesmo antes de partir – são até bem capazes de mandar rezar-lhes uma missa de sétimo dia.


[1] Homem Cristo, Notas da Minha Vida e do Meu Tempo, volume I, Lisboa, Livraria Editora Guimarães & C.ª, s. d., pp. 63-64.