Boas Festas e … comam chocolates!

Não, não sou como o Barnabé, que tem qualquer coisa que o torna diferente dos outros.  Sim, como tantos outros, também escrevi sobre a imagem de João Rendeiro em pijama, por entender que não há verdadeira liberdade sem uma esfera de intimidade que proteja os cidadãos das interferências abusivas do Estado, dos meios de comunicação social ou de outros poderes instituídos. Escrevi, mas não publiquei. Não quis oferecer aos meus amigos um presente de Natal com sabor a tabaco mascado por muitas bocas. No essencial, o texto não difere muito destes “Sinais” de Fernando Alves que ecoaram na TSF, na manhã do dia 13 de Dezembro:

“Não quero ver um homem de pijama, ainda que seja um canalha,
se isso significar que o estarei a ver de pijama contra a sua vontade.
Não quero ver um homem de pijama contra a sua vontade, ainda que seja um canalha”.

Neste Natal, troco de bom grado o pijama de Rendeiro por chocolates. E sinto-me bem acompanhado: no poema “Tabacaria”, Álvaro de Campos não deixa de propor isso mesmo: Come chocolates, pequena / Come chocolates!

Sigamos os conselhos do poeta, que – ironia das ironias – também viveu em Durban durante nove anos da sua infância. Quanto a João Rendeiro, começou por sucumbir aos encantos da estética, ao ponto de ludibriar o próprio Estado para salvar as pinturas verdadeiras, trocando-as por quadros falsos (e já que estamos a falar de arte, convém separar o critério artístico do critério moral). A seguir rumou a Durban, local que viria a transformar-se em refúgio de perdição. Escapou-lhe este pequeno pormenor, a provar que o diabo, às vezes, está nos detalhes: o poeta dos heterónimos continua vivo. E sendo ao mesmo tempo uno e múltiplo, desdobrando-se em várias personalidades, pode muito bem tê-lo topado numa esquina e alertado as autoridades.

O presente que aqui vos deixo tem a ver com chocolates, mas não foi confecionado por mim. Comam chocolates à vontade, sem recear a diabetes, embora não possa afiançar, com segurança, que Deus aprova ou desaprova tão pecaminosa gulodice. Em verdade vos digo: a diabetes até pode funcionar como diploma de estatuto social. Ora leiam esta passagem do livro Mandriões no Vale Fértil, de Albert Cossery, onde uma alcoviteira tenta convencer a família de uma rapariga de 16 anos a deixá-la casar com o velho Hafez, que exibia no currículo, para lá da idade avançada, também uma hérnia de dimensões consideráveis, e ainda… diabetes que não tinha:

“Estavam hesitantes. Mas eu, para os convencer, segredei-lhes por fim que tens diabetes.
– E eles, que te disseram eles? interrogou o velho Hafez, sem se ofender com a doença que tão generosamente lhe era imputada.
– Primeiro ficaram de cara a brilhar, depois sorriram e disseram-me: “Se é verdade o que dizes, então é porque é mesmo um homem muito abastado”. Respondi-lhes: “Viram vocês alguma vez pedintes com diabetes? Caramba! De que mais precisam?” E ficaram logo concordantes.”

Vamos então à prenda para os meus amigos. É um texto de Eduardo Cintra Torres, que saiu no Público, edição de 15 de Fevereiro de 1999. Tem por título “O Ambrósio também é maroto” e fala de chocolates, claro. Um dos melhores textos que li, sobre um dos melhores anúncios publicitários que conheço. Um anúncio que se repete todos os anos, publicidade omnipresente nesta altura do Natal. A análise do anúncio é primorosa, suportada por uma irrepreensível utilização da semiótica, um saber antigo que tem a ver com os modos como o homem significa tudo aquilo que o rodeia. Há muitas leituras possíveis para a postura discreta e eficiente do motorista Ambrósio (um nome que remete para o mito do mel de ambrósia, alimento dos deuses gregos, que ao ser ingerido era garante de imortalidade). Assim como há muitas leituras possíveis para o “apetecia-me tomar algo” balbuciado pela suposta proprietária balzaquiana do luxuoso carro que Ambrósio conduz. Algo que pertence ao domínio do não dito, mas que está implícito. Algo polissémico e ambíguo, uma qualquer pulsão que a senhora parece desconhecer (ou não quer dar objectivamente a conhecer) e que o imaginário de cada um de nós gosta de adivinhar. Aqui fica o texto:

“Num artigo sobre televisão, António Pinto Leite debruçou-se sobre a publicidade erótica que viu nos intermináveis intervalos dum filme de violência gratuita passado na SIC: “Margarinas, carros, champôs, perfumes, bilhas de gás, tudo se vende com mulheres nuas.” E acrescentava o meu amigo e articulista do “Expresso” (“Revista”, 05.12.98): “Qualquer dia, esse paradigma da moral que é o anúncio da Ferrero Rocher, onde há uma senhora decente no banco de trás de um carro, ainda acaba com o Ambrósio desgrenhado.»

Ó António, então tu não percebeste que esse anúncio da Ferrero Rocher é o mais erótico de todos os que passam na televisão?! Que entre o Ambrósio e a “senhora decente” se adivinha uma pulsão secreta? Eu sei que os outros anúncios são mais, ou muito, explícitos, vêem-se corpos, gestos de carícias e mesmo alguma actividade sexual propriamente dita. Mas, afinal, mostram muito e não “prometem” nada. Ao contrário, o Ambrósio todo fardado, de chapéu e tudo, e a senhora toda decentemente vestida, de chapéu e tudo, intrinsecamente balzaquiana, são um universo de promessas que o espectador subentende.

Olhemos o espaço que eles ocupam: móvel, porque é um automóvel, e em andamento; imóvel, porque eles quase não se mexem, deixando para os diálogos e os minúsculos, subtis movimentos do corpo toda a explosão de significados que outros, noutros anúncios, precisam de mostrar com ginásticas esforçadas de corpos contorcionistas. E o que significa este espaço? O carro é um espaço de evasão do lar; um espaço de liberdade adentro do qual se passam muito coisas! O cinema, a televisão e a publicidade não só aproveitam a imagem “viril” do automóvel, mas muito em especial essa simbologia de lugar de libertação dos constrangimentos dos lugares habituais do quotidiano. Eu lembro-me de ver, naquele cinema de zinco sobre areia na Praia das Maçãs, o “Rolls Royce Amarelo”, filme de Anthony Asquith (GB, 1964), com Jeanne Moreau, Ingrid Bergman, Shirley McLaine, Alain Delon e Omar Shariff. As coisas que, dono após dono, aquele Rolls Royce não viu (e nós também!). Não será este anúncio um remake? A “senhora decente” e o Ambrósio estão igualmente adentro dum Rolls Royce — e o Ambrósio não é o marido ou o noivo, nem sequer o irmão mais velho. Já temos espaço e personagens, agora vamos à estória. A “senhora decente” diz: “Ambrósio, apetecia-me tomar algo”. Repare-se: ela tem um apetite que partilha com o motorista do seu Rolls! Será por ter assumido a democracia nas relações sociais com os seus servidores? Ela tem de facto um ar de balzaquiana “decente”, mas não tanto. E mais: ela diz que lhe apetece “algo”. Ora este “algo” é mais do que “uma coisa qualquer”. Ela quer “algo” e o motorista, com impecável elegância e profissionalismo, pergunta: “paramos para a senhora tomar alguma coisa?”. O tom e a cara do Ambrósio denotam, todavia, que ele sabe antecipadamente a resposta: ele sabe que a senhora não quer sair do carro, ele sabe muito bem o que a senhora quer! E é isso que a resposta confirma: “Não, o que eu queria era algo… Bom?” A “senhora decente” continua a desejar “algo” que não diz (e porque não diz? por vergonha? porque há coisas que se querem e não se dizem?) E ela quer algo “bom” – que não chega a explicar pois o Ambrósio, que, entretanto, trocara olhares com a senhora pelo espelho retrovisor e mostrara adivinhar o que ela não consegue exprimir em palavras, diz enigmaticamente: “compreendo, senhora”. Como o Ambrósio compreende os desejos reprimidos da senhora!

Nessa altura, a “senhora decente” assume o desejo e abre-se ao motorista: “Apetecia-me Ferrero Rocher”. Respeitou-se o relacionamento entre as classes sociais: foi a “senhora decente” que tomou a iniciativa. Estabelecida a insinuação, criado em nós o desejo de saber qual o desejo secreto da senhora, eis que o “algo”, o nome da coisa, já pode ser dito: Ferrero Rocher! E que nome! Formado por duas palavras, cada qual duma libidinosa língua latina: o italiano e o francês!

Mas o anúncio, que podia bem terminar aqui, quando a senhora “se abre ” ao motorista dizendo o que realmente quer, o anúncio tem ainda uma longa estória para contar: confirma-se que o Ambrósio já sabia antecipadamente o que a senhora desejava! Diz ele: “Tomei a liberdade de pensar nisso, senhora!” Mas que motorista espectacular! E, “tomando a liberdade” de adivinhar o desejo íntimo da senhora, o Ambrósio abre, desvenda, mostra o objecto do desejo: brilhando como barras de ouro, as bolas de Ferrero Rocher surgem de dentro do carro quando o Ambrósio acciona uma porta secreta, como nas Mil e Uma Noites. Abre-te, Sésamo!

“Oh, Bravo, Ambrósio!”, diz a “senhora decente”, que não cabe em si de contente e que já quase não controla os seus actos: pela primeira e única vez, dá-se o contacto físico entre os dois. A senhora decente toca ao de leve com a mão direita no ombro protector do motorista e leva um Ferrero Rocher à boca, consumando o desejo. Tudo é sugerido, até, digo eu, a sugestão felaciana implícita nas sílabas e vogais abertas na frase “Oh, bravo Ambrósio!” (duas vezes br, duas vezes ó, etc: quase uma onomatopeia!)

O novo Ambrósio e a nova Senhora da Ferrero Rocher

Extraordinário anúncio este, onde nada há de explícito, onde tudo é elegante. Mas, ao invés do que sucede em três dos spots que referes (Peugeot 106, água-de-colónia Calvin Klein e o “perfume macho” Denim), neste há contacto físico. Os jovens do Peugeot despem-se (ó António, nem sequer se vê nada) mas não se tocam, enquanto aqui a “senhora decente” toca no Ambrósio! Claro que não toca de qualquer maneira, até porque, diz a voz “off”, Ferrero Rocher “satisfaz o desejo de requinte”. O anúncio, que começara com o Rolls vindo em nossa direcção e passara depois para os interiores secretos do automóvel de luxo, termina com o Rolls afastando-se de nós depois de partilhar um dos seus mais íntimos segredos. As coisas que se passam no interior dum carro! Tu bem o adivinhas quando escreves que a “senhora decente” está “no banco de trás dum carro”: a separação do banco da frente não a impede de trocar olhares com o Ambrósio, de lhe tocar. Dizes que o filme que a SIC ia passando no meio dos intervalos era “ideal para ver sem ver”. Mas, se me estiveres a seguir, não poderás reencontrar o maroto do Ambrósio no ecrã sem pensar que aquele anúncio, além de ser para ver, também é para ler. Com prazer.”