Sangalhos na I República — tensões durante a visita pascal de 1915 (Acúrcio Correia da Silva no centro da polémica)

1. Introdução

Sangalhos serviu de palco, no ano de 1915, a incidentes que são reveladores da resistência de motivação religiosa à laicização da sociedade, ocorridos durante a visita pascal. Em tempos de eriçado anticlericalismo nem as freguesias mais recônditas ou os lugares mais pacatos escapavam à discussão das manifestações do culto externo. Um ano antes, na freguesia de Mamarrosa, concelho de Oliveira do Bairro, os republicanos acusavam os priores de se recusarem a entrar em casa dos cultualistas, na do oficial do registo civil e em outras onde os moradores “não caíram em graça aos ministros do Senhor, apesar de todos conservarem abertas as suas portas”.[1]

A preocupação republicana em reduzir a presença de sinais exteriores de expressão religiosa no espaço público é anterior à própria Lei de Separação do Estado das Igrejas, na altura apresentada como “intangível” e “cúpula do edifício republicano” e cuja execução gerou adesões incondicionais e críticas permanentes. Terreno fértil, sem dúvida, para a construção de memórias contraditórias e divergentes bem espelhadas na imprensa da época.

Uma análise das resistências à política religiosa da I República não só revela similitudes com revoltas de períodos anteriores – é o caso das revoltas contra as Leis de Saúde da Monarquia quanto ao modo de proceder nos enterros –  como mostra que a legislação que mais potenciou certo tipo de conflitos não foi a Lei de Separação mas os chamados Decretos Proibitivos”.[2]

Entre essas medidas contam-se a expulsão dos jesuítas do país, a extinção das ordens religiosas, a abolição do jura­mento religioso, a proibição do ensino confessional, a secularização dos cemité­rios, o reconhecimento do divórcio, a lei que introduziu o registo civil obrigatório e a que extinguiu a Faculdade de Teologia.

No seu articulado a Lei de Separação dispunha que a religião católica deixava de ser religião do Estado, garantia o exercício de culto a todas as Igrejas e confissões religiosas, interditava a publicação de bulas e pastorais e «remetia o culto para a es­fera da privacidade», além de outras disposições que visavam «a destruição que o estatuto privilegiado que o catolicismo, como religião de Estado, até aí tinha go­zado na sociedade portuguesa».[3] É notório o receio demonstrado pelo Estado republicano em reconhecer à Igreja uma liberdade plena, não condicionada por quaisquer tutelas, como era de­sejo expresso de alguns sectores católicos liberais.

Lei Separação

Tal atuação do poder esteve longe de merecer o acolhimento dos republi­canos mais moderados e conservadores. Os do sector intelectual não deixaram de explicitar abertamente o seu descontentamento. Para Sampaio Bruno as explicações científicas «seriam sempre incapazes de esgotar o anelo religioso e a inquietação metafísica»; Basílio Teles considerava uma «espécie de “beatice ao avesso”» o an­ticlericalismo radical de alguns dos seus pares e Guerra Junqueiro acusava Afonso Costa de confundir antijesuitismo com anticatolicismo, já que, se «o povo odiava o jesuíta» pouco se «importava com o padre».[4]

Há quem veja nesta atuação para com a Igreja católica uma táctica habil­mente engendrada por Afonso Costa no sentido de comprometer os moderados do Governo e cimentar a coesão do Partido Democrático. Isto é: o radicalismo da Lei de Separação, ao mesmo tempo que declarava guerra aberta à Igreja, servia para afastar os secto­res católicos moderados do regime. É esta a interpretação de Vasco Pulido Valente, que viu na estratégia de Afonso Costa uma forma hábil de esvaziar e eliminar o centro político, apostando abertamente na bipolarização entre monárquicos e radi­cais republicanos,[5] e conseguindo com isso arredar «a formação, no novo re­gime, de um bloco conservador compreendendo “monárquicos arrependidos e re­publicanos reformadores”».[6]

Este deslizar permanente da política governamental para a intolerância em matéria religiosa  não podia deixar indiferente o clero, nem o próprio Vaticano. O encarceramento de padres e algumas proibições, como a do uso de vestes talares, vão acicatar a resistência católica. É a hierarquia da Igreja quem abre as hostilida­des em resposta à perseguição religiosa. Tornava-se demasiado óbvia, a seus olhos, a intenção de ruptura com a tradição católica aos diferentes níveis da estrutura so­cial. Para a Igreja constituía um atentado aos direitos do povo, maioritariamente católico, não reconhecer ou limitar expressamente a sua condição religiosa: «a le­gislação que se vinha publicando era, para os bispos, não só acatólica  como antica­tólica, desrespeitadora da profissão católica da maioria dos portugueses».[7]

Tal como noutras zonas do norte e centro de Portugal, o concelho de Anadia e a própria Bairrada caracterizavam-se por um forte enquadramento das comunidades rurais num clero nada predisposto a transigir com as novas leis republicanas. Por isso dificilmente algumas localidades deste concelho estariam imunes a este tipo de conflitos. Verdadeiras guerras religiosas centradas em questões tão variadas como a nomeação de comissões cultuais, a associação dos padres às conspirações monárquicas, a sua expulsão das residências paroquiais muitas vezes seguida de desterro, as revoltas contra os arrolamentos dos bens da Igreja, os obstáculos levantados às procissões religiosas, as polémicas em torno do toque dos sinos ou os incidentes relacionados com a visita pascal.

Em Anadia, após 1910,  a imprensa local afecta ao Partido Democrático de Afonso Costa “atacou fortemente a Igreja, a religião e o clero”. Ao invés, as autoridades municipais terão revelado “uma assinalável tolerância” apesar de não deixarem de limitar as manifestações de culto exterior, o que não impedia a realização de procissões.[8] Já no que se refere à visita pascal – questão que nos propomos abordar neste trabalho – não haverá no concelho de Anadia “notícia de grandes problemas”.[9] De facto, ao consultar vários exemplares da imprensa da Bairrada apenas no ano de 1915 se encontram referências a conflitos relacionados com a visita pascal. Em tempo de Páscoa mantinha-se a tradição da visita dos padres aos seus paroquianos, dando a cruz a beijar e recolhendo o folar. Costume que não agradava aos livres-pensadores, pois viam nessa prática mais uma prova “da cupidez de um clero que se afastara dos princípios evangélicos”.[10]

Na Páscoa de 1915 governava em ditadura o general Pimenta de Castro. Sem patentear o carácter “nacional” que se reconhecerá em 1918 ao sidonismo, Pimenta de Castro preocupou-se, acima de tudo, em anular Afonso Costa e o Partido Democrático, julgando assim poder ultrapassar os vícios dos mecanismos institucionais do parlamentarismo. Em 1915 só Machado Santos, o herói da Ro­tunda, “tentou dar ao pimentismo um ‘sentido nacional’ que transcendesse a mera guerrilha conjuntural contra o afonsismo”.[11] Tratava-se ainda de “um produto partidário e não com características nacionais. A sua ação voltou-se por isso mesmo mais contra um partido do que contra um estado precário da Nação”.[12] Com efeito, este curto período de ruptura político-constitucio­nal não revela ainda, como acontecerá três anos mais tarde com Sidónio Pais, a existên­cia de um projeto constitucional alternativo, nem põe em causa a essência do sis­tema de governo parlamentar.

2. O baptismo de fogo de padre Acúrcio

É neste ambiente de franca hostilidade aos democráticos e de revivalismo crescente no campo monárquico que o pároco da freguesia de Sangalhos, ao arrepio do que tinha feito em anos anteriores, terá anunciado que não faria a visita pascal às pessoas casadas que tivessem apenas o registo civil. Nessa época, para os republicanos anticlericais o casamento religioso não passava de “uma impostura que só a tradição, a ignorância ou o indiferentismo pela libertação dos preconceitos justificam”.[13] Para tal fez o padre chegar uma carta aos paroquianos casados nessas condições, em que os intimava a fechar a porta de casa quando por lá passasse a acompanhar a cruz. Como entretanto visitou os restantes cidadãos, onde se incluíam os amancebados e os que não se confessavam, logo os seus opositores concluíram que se tratava de “um acto de reação contra as leis da República”. [14]

O gesto iria custar-lhe a ira dos republicanos. A indignação foi geral e nenhum dos visados acatou a proposta. Alguns, como Manuel da Silva Gomes, protestaram energicamente quando o padre passou por suas casas sem se deter. Segundo a imprensa republicana, o povo de Sangalhos julgava ter um padre liberal e por isso lhe devotava certa consideração e simpatia. Mas o comportamento que teve durante a visita pascal de 1915 teria mostrado uma outra faceta: ficaram então a saber que o mesmo não passava de “um digno discípulo de Loiola”, pelo que só lhe restava “pegar nas malas e ir pregar a outra freguesia”.[15] O povo da Fogueira reuniu-se de imediato para obrigar o padre a cumprir os seus deveres. Como este optou por não aparecer no referido lugar, a irritação depressa se converteu em entusiasmo e “todo o fogo que havia na terra foi atirado aos ares”.[16]

O padre em apuros era, à data, Acúrcio Correia da Silva, nascido em 1889 no Cercal, Oliveira do Bairro – a aldeia ribeirinha do Cercal-Verde, como lhe chamava com enternecido amor. Em 1904 entrou para o Seminário de Coimbra, tendo sido ordenado em 1912. Pouco tempo depois foi nomeado pároco da freguesia de Sangalhos, concelho de Anadia. Era considerado um grande orador, homem de intensa paixão regionalista, possuidor de vasta e variada cultura. Derramou prosa e versos em revistas e jornais da época como Ideal, Ecos do Vouga, Brado, Povo de Águeda, Soberania do Povo, Povo da Murtosa, Povo de Anadia e Gente Nova, entre outros. A ele se fica a dever, por ter sido o grande impulsionador, a criação da Plêiade Bairradina, um movimento que procurou dar à região da Bairrada a expressão cultural, artística e literária que à época ela não tinha.

Sobre a sua sensibilidade, gosto pelas letras e pela cultura, testemunhou outro grande vulto da Bairrada, o Professor Rodrigues Lapa, no In Memoriam do padre Acúrcio: “Dentre todas as figuras de sacerdote que a retina dos meus vinte anos fixara pelos lugares da Bairrada, nenhum, como ele, que tanto avultasse pelo desenxovalho da figura e da inteligência, pela união feliz da fealdade e da simpatia irresistível. Exemplaríssimo no desempenho da sua elevada missão, consumia os ardores da mocidade no estudo, dedicado de alma e coração aos seus paroquianos, para os quais mandou imprimir no Natal de 1915 uma Carta de Boas Festas, em que faz uma apologia convicta da família e do casamento religioso […]. Como homem de letras, Padre Acúrcio era talvez a individualidade mais prometedora de toda a Bairrada”.[17]

Autor das saborosas crónicas regionalistas a que deu o nome de O Meu Cantinho, onde tantas vezes noivou em prosa e em verso a região bairradina com pseudónimos vários – sendo talvez o mais conhecido o de Sálcio Bairrada, numa evidente homenagem à “região dos pâmpanos” – viria a desaparecer prematuramente do mundo dos vivos apenas com 35 anos de idade, no dia 25 de Março de 1925, quando dele ainda muito havia a esperar. Chico da Cruz, também um membro da Plêiade Bairradina e que privou de perto com o padre-poeta, descreve o funeral como um “enormíssimo cortejo fúnebre” no qual se incorporaram pessoas de todas as categorias sociais, representantes de todas as classes e membros de todos os partidos.[18]

Também António de Cértima evocou a vida e a obra de Acúrcio Correia da Silva num texto importante que o  In Memoriam – Antologia, publicado em 1959, não incluiu. Esse texto viu inicialmente a luz da publicidade no jornal monárquico de Anadia Correio da Bairrada[19]  e mais tarde em Alma Encantadora do Chiado.[20] Para Cértima, o padre-poeta de Seroadas Fulvas, nascido no mesmo concelho e seu contemporâneo e amigo íntimo, era “um Hércules da vida interior”, que “não desconhecia escolas, doutrinarismos artísticos ou qualquer manifestação de exotismo literário”; era alguém que soube recolher, “como o mais sábio camponês na sua courela florida, todas as saborosas sementes da palavra bairradina”, com uma verdadeira “sensibilidade de jardineiro-esteta”. Se outros méritos não tivesse, de um pelo menos lhe é devedora a região da Bairrada: o de ter renovado a sua linguagem, “buscando nas fontes populares as melhores substâncias de emoção e arte de dizer e construindo depois, com uma sabedoria aguda e penetrante […] aquilo a que se poderá chamar uma alma literária”.

Acurcio2Regressemos aos episódios de Sangalhos, protagonizados em 1915 por Acúrcio Correia da Silva e pelos republicanos locais. Certamente para não se trair, o padre resistiu aos ventos do anticlericalismo que o fustigavam e aguentou firme as lutas que era necessário travar, num ambiente de clara animosidade e até de perseguição à igreja católica. Aos “conselhos” dos paroquianos que lhe lembravam que os padres seus antecessores sempre tinham entrado nas portas que lhes eram franqueadas, respondia invariavelmente: “não posso, não devo. É uma questão de consciência e de carácter. Se os meus antecessores entravam nessas casas […] é porque não tinham a consciência do cumprimento do seu dever”.[21]

Tempos particularmente “duros, agrestes e sombrios”, em que se atiravam “doestos ao padre que passava” e em que muitos, segundo a linguagem truculenta do padre Abel Condesso, embalados em “horizontes de pocilga”, ambicionavam assistir em vida aos “funerais da Igreja”. Foi precisamente nesse período conturbado que pertenceu ao padre Acúrcio “a primeira grande surriba destes terrenos, esterilizados por uma propaganda não só anticristã mas antinacional”.[22]

Abel Condesso, que tanto fustigava os republicanos radicais, a quem chamava “estrangeiros do interior”[23] numa clara alusão aos valores importados do modelo liberal anglo-francês, não enjeitava radicalismos de sinal contrário: em 1932 encontramo-lo nas fileiras do nacional-sindicalismo, os camisas azuis de Rolão Preto, grupo de direita radical empenhado na fascização do regime, que se opunha à própria União Nacional e por isso viria a ser ilegalizado por Salazar. Em Anadia, este grupo ridicularizava constantemente a União Nacional local. Em Agosto de 1932, numa tentativa para demitir o secretário da Câmara, o grupo invadiu a Câmara que se encontrava reunida, expulsou os seus elementos “e partiu o mobiliário”. O assalto ficaria impune. Entre os participantes contavam-se, além de um médico local, o padre Abel Condesso, que continuou ao lado de Rolão Preto e foi dirigente da organização na fase clandestina.[24] Em 1939, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, Abel Condesso “pontuava em aberta oposição ao salazarismo” no núcleo nacional sindicalista de Anadia.[25]

Constava, na altura dos incidentes de Sangalhos, que o procedimento do padre Acúrcio teria sido motivado por uma ordem recebida do arcipreste substituto e que, ao ter conhecimento que outros padres dele dependentes não tinham recebido ordem idêntica, teria pedido a demissão de pároco da freguesia, desgostoso com o que tinha sucedido. Após deslocação a Coimbra, onde provavelmente foi aconselhar-se com o seu Bispo, escreveu de lá “extensas cartas a alguns dos que não visitara”,[26] “pedindo-lhes desculpa pelo facto de não ter ido àquela localidade e dizendo-lhes que o motivo principal dessa falta fora o ver-se acompanhado por um grupo de homens de Sangalhos e temer que a presença destes pudesse dar lugar a conflitos pessoais”.[27]

Padre Acúrcio regressou à terra decidido a promover a concórdia com os paroquianos, numa altura em que os seus defensores – crismados de “jesuítas” de Sangalhos – acusavam  os habitantes da Fogueira de não permitir que a comitiva pascal rumasse à Amoreira da Gândara. Anunciou que visitaria no domingo de pascoela todas as casas e lugares onde anteriormente não entrara. E assim aconteceu. Os republicanos radicais é que não estavam pelos ajustes. Acusaram os que em gesto de reconciliação franquearam as portas ao “desleal tonsurado” de terem esquecido a sua dignidade, não sabendo já descortinar quem era mais inconsciente: se o padre, ou os que o receberam. Para eles, toda esta “trapalhada indecente” serviu para tornar claro “o ódio da reação à escola liberal”. Porquê? Precisamente porque o professor-regente da escola de Sangalhos foi o único a não ser visitado. Padre Acúrcio lá teria as suas razões para não comparecer. Comentavam os republicanos: “Adivinhou o servo de Loiola. Depois do que se tinha passado, podemos garantir que não seria recebido”.[28]

Num tempo em que as ordens religiosas foram expulsas, muitos padres perseguidos e alguns bispos exilados, e em que os bens da Igreja foram confiscados, o exercício do múnus eclesiástico por um jovem padre como era então Acúrcio Correia da Silva, que foi também autor da letra do Hino da Bairrada, estava longe de ser fácil.  Quando em 5 de Outubro de 1910 foi proclamada a República o padre Acúrcio estava livre de compromissos religiosos. Poderia, sem quebra de votos, ter dado um rumo diferente à sua vida. Muitos o fizeram: “Houve quem se negasse a servir a Igreja no momento em que ela ficou pobre e era perseguida”.[29] O padre Acúrcio ordenou-se, disposto a enfrentar as dificuldades do tempo que lhe foi dado viver. Recuar perante as adversidades seria “renunciar à verdade e perder com ela a paz da sua aldeia”.[30] Coube-lhe em sorte paroquiar Sangalhos, freguesia populosa e composta de muitos lugares, um campo vasto para a sua ação evangelizadora. Como era de esperar, deparou-se no início com sérias dificuldades. A propaganda anticlerical “tinha por lá adeptos zelosos, que entendiam lá na sua que isto de Deus era uma treta e os padres eram uma corja”.[31]

No rescaldo dos acontecimentos, o gesto de padre Acúrcio foi visto pelos óculos embaciados da ideologia republicana como “pedantismo papista”, sendo ele próprio acusado de possuir um “espírito pequenino e tacanho”. Os habitantes de Sangalhos a quem o seu gesto agradou não passavam de “inimigos da liberdade”. Os que condenaram tal procedimento intitulavam-se “os indivíduos de ideias livres”.[32]

O incidente deixou marcas e novas nuvens de contestação se acastelavam no horizonte. O pretexto seguinte foi a festa do Senhor da Agonia. Os republicanos de Sangalhos acusavam o padre de realizar uma festa que só iria agradar aos frequentadores da igreja. Com toda a probabilidade, por abolir algumas diversões profanas e carregar em demasia nas tintas do sagrado. As festividades não teriam o brilho do costume porque padre Acúrcio, seguindo “uma linha muito estapafúrdia”, excluiu do número dos mordomos um capitalista local, homem dotado de cabedais para financiar a festa sozinho. Mais uma vez a proibição terá ficado a dever-se ao facto do candidato a mordomo ser casado apenas civilmente. Com tais “esquisitices” e “teorias do Sr. Prior”, outros mordomos não aceitaram o cargo. Quem ficava prejudicado – acrescentavam os republicanos – eram os festejos e o comércio local.[33]

No início de 1916 o pároco de Sangalhos continuava a ser importunado, acusado de “jesuíta”, “filho de Loiola” e homem de um “fanatismo delirante”. Teria recusado benzer um cemitério que a Junta de Paróquia tinha construído em Amoreira da Gândara. Acederia ao convite da Junta na condição de não benzer “um bocado destinado a sepultar os não católicos”. Tal exigência exasperou os ânimos do povo, que lhe impôs o repto: “ou benze todo, ou não benze nenhum”.[34] E não se furtou a ser acusado de “imbecil” e “burlão”, ao mesmo tempo que o autor da notícia chamava jocosamente “água choca” à água-benta.[35]

Jesuitismo
(Bairrada Livre, n.º 267, 22.01.1916, p. 2).

Em tal combate até a aparência física era convocada como arma de arremesso: “é duma fealdade que mete medo, mas que não é só feio no físico, pois se está revelando feiíssimo da alma”.[36]

Desta vez era acusado de “descartar” as leis da República e desviar crianças da frequência regular da escola, a pretexto de lhes ensinar doutrina e versos “aleivosos” de catequese para a primeira comunhão. O seu livro Natal… festa da família, onde enaltece o valor da família e do casamento religioso, é alvo de críticas oriundas de alguém a quem oferecera a obra. É acusado de ter como principal preocupação “angariar fregueses para casamentos … católicos” e espalhar a ideia de que “a sabedoria saiu toda do catolicismo”, numa obra onde “se falta em cada passo à verdade”. E como o tempo que se vivia era o dos horrores da guerra, o acirrado crítico não deixava de o questionar: “Deus é assim tão cruel que não põe cobro à carnificina que ensanguenta o mundo?”.[37]

 3. Esboço de uma filiação doutrinária e estética

No dizer de Abel Condesso, que com ele privou de perto, padre Acúrcio era monárquico por tradição e por inteligência e “encontrou a Verdade política portuguesa na monarquia orgânica e antiparlamentar”. E acrescentava: duas verdades lhe eram caras – Deus e a Monarquia.[38] A afirmação vale o que vale, até por ter sido proferida numa altura em que padre Acúrcio já não pertencia ao mundo dos vivos e não a poderia subscrever ou refutar. Mas, a ser verdadeira, significa que teria simpatias pelo Integralismo Lusitano, movimento político com raízes no pensamento contrarrevolucionário nacional do século XIX e herdeiro da tradição legitimista portuguesa.

Foi em torno de iniciativas culturais e doutrinárias que os primeiros integralistas se agruparam. Os temas fortes do integralismo assentavam nas noções de “vontade” e “crença” [António Sardinha] e também nas da “Pátria” restituída à “tradição” [Pequito Rebelo] complementadas com o estudo histórico da nacionalidade – as raízes da “Raça”. Enquanto corrente de opinião o integralismo procurava libertar a Nação das clientelas partidárias e entregar a defesa de diversos interesses aos seus órgãos próprios: na ordem administrativa às Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais;  na ordem económica,  às uniões locais e regionais de sindicatos; na ordem espiritual, às escolas, à Igreja e às associações profissionais. Tratava-se de reavivar a herança política do legitimismo português na sua vertente de reconstrução político-administrativa e social. A saber: reconhecimento da diferenciação regional e provincial; organização corporativa ou profissional; poder pessoal do Rei; finalmente, aceitação da moral católica enquanto inspiradora da vida do Estado nas Escolas e na Família. [39]

Ensaiemos, pois, alguns possíveis pontos de contacto entre o pensamento de padre Acúrcio e o integralismo lusitano: a) os integralistas começaram por se agrupar em torno de iniciativas culturais e doutrinárias e só mais tarde esse movimento se tornou político. No dizer de António Sardinha, “também a nós as letras nos conduziram à Política […] o nosso nacionalismo, de estético, se tornou político [e] a razão estética volveu-se em razão social”.[40]  Essa opção doutrinária e cultural era também, claramente, a preocupação do padre do Cercal, mesmo antes do aparecimento da Plêiade Bairradina; b) no plano ideológico os integralistas eram conservadores e tradicionalistas, pois opunham-se à ideologia do progresso.

Em Seroadas Fulvas, publicação de 1915 que Manuel Rodrigues Lapa considerou “o livro mais bairradino da Bairrada”,[41] Acúrcio Correia da Silva confessa tratar-se de uma obra “contra a podridão moderna”. À boa maneira integralista e assumindo-se ideologicamente conservador e tradicionalista, o padre do Cercal Verde opunha-se à ideologia do progresso e mostrava-se defensor da continuidade do antigo regime. Um claro combate contra o “espírito moderno” que, no caso português, levara a Monarquia à perdição e estava a minar, com o seu anticlericalismo, os alicerces da própria Igreja. O seu ideário “denuncia um claro compromisso com as manifestações literárias e políticas de natureza conservadora”, numa época em que se assiste à emergência de fenómenos literários que privilegiavam sobretudo “os valores nacionais representativos do Portugal Velho”.[42]

Seroadas FulvasOs contornos da concepção de arte regionalista defendida por padre Acúrcio e os próprios significados ideológicos que eles veiculam parecem ser, a esse propósito, suficientemente elucidativos. Num tempo em que no campo da criação artística estava na ordem do dia o lema da “arte pela arte”, que implicava “o culto gratuito do belo, sem compromissos de ordem moral, religiosa ou política” o poeta bairradino “temia que esta influência prejudicasse o amor pelo fecundo húmus familiário e regional e que o convívio íntimo com o lar, a família, a aldeia e a região deixassem de permanecer no sentimento artístico” [43]. Numa das cartas a Irsília, confessa: “Eu só neguei a Arte pela Arte, proclamando a Arte pela Vida”.[44] Eis mais um eventual ponto de contacto com o integralismo lusitano, que também assumia abertamente esta opção literária.

Ao afirmar que padre Acúrcio era politicamente adepto de uma democracia orgânica antiparlamentar, Abel Condesso refere que ele “queria a disciplina como base de diferenciação social entre os homens e entre as coisas” [conceito de ordem]; defendia “os direitos sagrados da família perante o divórcio e registo civil”, tal como os integralistas, para quem a sociedade é constituída por famílias e não por indivíduos: aos indivíduos dotados de direitos e deveres cívicos e políticos o integralismo contrapunha a família, entendida como unidade básica da sociedade; proclamava “a necessidade de as competências tomarem conta da governação”, por oposição aos “políticos profissionais” que os integralistas abominavam: como dizia António Sardinha, o integralismo lusitano “não é uma política de profissionais, mas um política de profissões”;[45] queria a sociedade portuguesa “saneada dos maus e dos cretinos”, abominava “a verborreia comicieira inconsciente e malfeitora” e aspirava a que “se desse à Igreja o primeiro lugar”. Isto tudo num contexto político e ambiente social em que Abel Condesso reconhecia existir um movimento pendular que vai de Lenine [bolchevismo] a Maurras”,[46] principal ideólogo da Action Française, com quem os integralistas portugueses bem cedo viriam a contactar. Essa importação do pensamento francês pelo nosso integralismo doméstico levaria, aliás, um dos seus principais críticos, o seareiro Raul Proença, a afirmar que “não há uma só ideia integralista que não tenha pago na Alfândega direitos de importação”.[47]

Tratava-se de “reaportuguesar Portugal”, lutar contra a perversão histórica da nacionalidade. Tal postura implicava ter como adversários não só os republicanos mas também os monárquicos constitucionais, “réus confessos no mesmo crime ignóbil dos que, ao mero funcionamento da máquina eleitoral, confiam automaticamente a salvação do país pelo regresso puro e simples das clientelas caídas em 1910”.[48] Não por acaso, a estratégia eleitoral do integralismo lusitano incluía campanhas antieleitoralistas, antirrepublicanas e antidemocráticas, a recusa em apresentar candidaturas próprias, o apelo à abstenção e o apoio a candidatos não políticos, sobretudo se fossem católicos ou “regionais”. Os apoios pontuais aos monárquicos moderados eram justificados pela conjuntura de guerra e pelo respeito à vontade do rei, quando lhe prestavam obediência.

Não era fácil, à época, captar estas possíveis – mas também discutíveis –  afinidades ideológicas com o integralismo nos discursos ou textos escritos do padre bairradino. O analfabetismo grassava nos meios rurais e os escritos de Acúrcio Correia da Silva inculcavam sobretudo os valores perfilhados pela religião católica. Era imperioso difundir a doutrina cristã, manter acesa a chama da fé como forma de contrariar os ventos da laicização que sopravam forte naqueles tempos conturbados. Por isso os escritos de padre Acúrcio não espelhavam qualquer simpatia partidária. Não tanto por não se querer envolver em guerrilhas políticas estéreis, mas seguramente por não confiar nos políticos ou por ver neles elementos que a Nação bem poderia dispensar.

O julgamento negativo da prática política e a sua aversão aos “profissionais da política”, que o integralismo lusitano tanto fustigava, está bem patente nestas palavras escritas em 1920: “Portugal está pletórico de políticos. Se o bem da nação proviesse da abundância deste género, por certo que este país seria hoje, e desde há muito, o melhor administrado dos estados do mundo […]. É para se atafulhar os bolsos e os estômagos desse enxame de aperaltados […] que se tem feito, desde há muito, política em Portugal!”.[49] A crítica aos partidos começa a ser tema recorrente sempre que a pena lhe desliza da cultura para a política. Não diz abertamente se prefere Monarquia ou República, mas torna clara a sua aversão pela anarquia e a desordem, a corrupção ou o arbítrio.

A alternativa que propunha aos seus paroquianos era “unirem-se todos em cada terra, em cada lugar, em cada aldeia. Três, quatro ou cinco constituiriam o núcleo central local da organização […]. E então sim, então sereis verdadeiramente políticos, porque fareis a política da vossa terra, que é a verdadeira política boa”.[50]  Também nesta proposta está implícita a crítica do partidarismo, a doutrina integralista apostada em estancar a conflitualidade social com a sindicalização orgânica das classes. Ou até quando afirma, de forma ainda mais explícita: “o partidarismo político esfarela-se. Vai apodrecendo e já cheira mal […] morre e vai ser substituído pela organização sindical das classes”.[51]

Esta forma de organização avançada por padre Acúrcio rejeitava abertamente a atomização dos indivíduos. Também o integralismo entendia que a representação política tinha de ser a resultante não dos indivíduos mas a dos grupos sociais. Só a estes seria legítimo exprimir-se e organizar-se politicamente, não por via eleitoral mas por representação orgânica. Para além de visar o republicanismo, o integralismo criticava igualmente o individualismo liberal burguês. António Sardinha, expoente máximo do movimento, fala em “tirania do Número” e sustenta que a democracia, “pela sua índole dispersiva e atomística, tende irremediavelmente para a dissolução fatal da sociedade”.[52] Padre Acúrcio secunda exemplarmente este raciocínio e promove a critica do materialismo, do império da lei e da legitimação política pelo sufrágio quando afirma: “Gozar, viver […] despreocupado de todo o condicionalismo social e moral, tendo por única segurança a lei … promulgada pelo maior número – pela força brutal portanto – eis a norma vital de tais senhores”.[53]

A questão remete para a natureza íntima do poder e para as diferentes formas da sua legitimação. Inscreve-se na controvérsia entre as formas democráticas de governo e os diversos autoritarismos que se lhe opõem. Gira, também, em torno do sentido a atribuir à noção de vontade geral introduzida pelos enciclopedistas e por Rousseau. O tema não é novo: remonta ao pensamento político português do século XIX, onde o conceito de democracia assume a centralidade dos debates Entre outros, Herculano desconfiava das maiorias ignaras ao assentar o seu modelo democrático liberal no primado do indivíduo sobre o Estado e no da liberdade sobre a igualdade. Relativizava o sufrágio por ver nele um modo puramente jurídico de garantir a liberdade individual. Ao invés, já no século XX, o  Integralismo Lusitano – um dos ingredientes do caldo ideológico em que se gerou o Estado Novo – impugnava por completo o sufrágio universal. Considerava-o injusto, pois “o voto do homem instruído e o do ignorante têm o mesmo valor, ficam no mesmo plano”.[54] Fala da democracia como o triunfo da mediocridade e contrapõe a representação orgânica (corporativa) à representação individualista do liberalismo. Os integralistas viam a República como a continuação lógica do liberalismo. Daí que o seu projeto político não fosse uma mera proposta de restauração da Monarquia constitucional, mas sobretudo de superação do Estado liberal.

As coisas, porém, não são tão simples e lineares como parecem, quando se trata de rotular alguém em termos políticos. Temas como o indivíduo social – inserido em famílias, corporações profissionais e municípios – o Estado forte ou o nacionalismo e a dimensão imperial, são transversais a partidos republicanos conservadores, monárquicos integralistas e organizações católicas.[55] Por outro lado, a crítica aos partidos não pode confundir-se com as posições antipartidárias e antiparlamentares que o integralismo perfilhava. A subalternização da classe política teve em Portugal outros cultores que nada tinham a ver com o integralismo. Senão vejamos: a proposta cesarista de Oliveira Martins emerge como necessidade de resposta às suas prevenções em face dos partidos e do valor do parlamentarismo.[56] Durante o ano de 1918, em pleno sidonismo, também António Sérgio apela “à formação de uma consciência colectiva”, por reconhecer que “os partidos não podem realizar por si a obra necessária”.[57] E na revista Pela Grei [58] sublinhava-se que o “ressurgimento” não podia vir dos partidos políticos “precisamente por serem partidos” – e de “carácter não nacional” – e por se inserirem num constitucionalismo e numa república “avariados”.[59]

Tentar encontrar em Seroadas Fulvas aproximações ao Integralismo Lusitano é um exercício estimulante, mas comporta necessariamente alguns riscos. Porquê? Simplificando, dir-se-à apenas que o integralismo aparece em 1914 com o lançamento da Revista Nação Portuguesa, corporizando um programa político monárquico e um movimento de ideias políticas assentes na tradição, na ideia de raça, no catolicismo e no ruralismo castiço e sobretudo no antiparlamentarismo. É certo que Seroadas Fulvas vê a luz do dia em 1915, portanto um ano depois. Só que, como nos revela o próprio padre Acúrcio, a obra é constituída por “versos de Dezembro de 1911”.

Em 1919 e 1920, anos em que Acúrcio Correia da Silva colaborou no semanário Gente Nova, que a partir do n.º 10 se assume abertamente como órgão da Plêiade Bairradina,[60] o poeta do Cercal Verde exprime formas de pensamento político que parecem colocar entre parêntesis a ação – que considera nefasta – dos partidos. Atentemos nestas palavras: “Nestes tempos turbulentos […] façamos nós o milagre de trabalharmos unidos num mesmo campo de ação superior, sem perguntarmos a cada um a facção partidária que porventura prefira e sem lhe coarctarmos a liberdade de politicamente a defender”.[61]

Por outro lado, exprime por vezes posições que o parecem afastar do ideário integralista. No rescaldo das eleições legislativas de 11 de Maio de 1919, ganhas mais uma vez pelo Partido Democrático, embora com uma participação mínima de votantes e uma abstenção de 80%, padre Acúrcio insurge-se contra o estado de apatia dos portugueses, por considerar as eleições – ao contrário dos integralistas – “o mais notável acontecimento da vida nacional”. Vê no abstencionismo em Portugal – que os integralistas a todo o custo procuravam fomentar – “um triste, um desolador sintoma”.

E não se inibe mesmo, após Afonso Costa discursar uma segunda vez em Paris, na Conferência de Paz, contra o texto do Tratado proposto e a postergação dos direitos portugueses, de perguntar: “Como se responde ao amesquinhamento da nossa ação guerreira? […]. Quem faz eco, aqui dentro, dos patrióticos protestos do Dr. Afonso Costa? Quem lhe secunda a voz? Como se manifesta o patriotismo da nação?[62]  Depois de ter sido admitido como potência beligerante, Portugal integra no final da guerra os países que assinam o Tratado de Paz que lhe permite receber indemnizações a pagar pela potência vencida, bem como facilidades na forma de liquidar a dívida de guerra. O problema é que, apesar de ter visto reconhecida a integridade do seu império ultramarino, Portugal não consegue um lugar no conselho executivo da Sociedade das Nações, ao contrário da Espanha, declaradamente germanófila e que durante o conflito bélico assumira uma ambígua neutralidade.

Não admira que o protesto enérgico de padre Acúrcio tenha sido secundado por António de Cértima, que também se insurge com veemência contra o facto das Nações Aliadas menosprezarem desdenhosamente o esforço de Portugal na guerra europeia. Perante a grave indiferença pela vida da nacionalidade, a quase nula reação nacional de protesto e uma desoladora apatia das consciências, Cértima considera o carácter português “um pântano” feito de “tranquilidade boçal” e lamenta que o povo viva enredado na “nevrose dos ideais políticos” e desperdice as mais nobres energias em mesquinhas lutas pessoais, numa “bacanal de símbolos partidários e petulâncias de seita”.[63]

Discutir se Acúrcio Correia da Silva era patriota e nacionalista é uma mera redundância. As etiqueta ou rótulos políticos requerem investigação cuidada e rigor de análise, para além do domínio correto dos conceitos. Patriota e nacionalista? Sem dúvida que sim. Difícil será lembrar alguém – republicano ou monárquico – que naquela época o não fosse excessivamente. Ou que não defendesse a integridade das colónias como forma de acautelar o interesse nacional. Por isso não admira que padre Acúrcio tenha apoiado a participação de Portugal na guerra de 1914-1918. Fê-lo para facilitar a ação do governo, sem que isso o transforme, de modo algum, num simpatizante ou alinhado do Partido Democrático de Afonso Costa, ou que esse gesto possa ser entendido como um ato de apoio ou compromisso com a República. Os percursos ideológicos ou políticos nem sempre obedecem a critérios de racionalidade ou seguem uma trajetória linear. Refletem, isso sim, as dúvidas e perplexidades que são também as do tempo e dos protagonistas de uma dada geração.

De padre Acúrcio, o que se pode com segurança testemunhar é o seu anticosmopolitismo, a visão ruralista da sociedade, bem patente nestas palavras com que classifica os trabalhadores do campo: “verdadeiros operários sem os quais nenhuns outros operários poderiam subsistir”. E estes – acrescenta – “não fazem greves, nem conspiram, nem fervilham nevroticamente em citadinos e esvairados bolcheviquismos”. Esta importância conferida aos trabalhadores do campo terá sido um legado do pensamento de António Feliciano de Castilho, quando na sua obra de 1849 Felicidade pela Agricultura refere: “Dificilmente, por mais que refujamos para longe dos campos, e para o centro do luxo, encontraremos um objecto que, no todo ou em grande parte, não devesse o seu ser à indústria agrícola”.  Aliás, padre Acúrcio parece confirmar essa influência quando refere que Castilho passou parte da sua vida na Bairrada e cita o Presbitério da Montanha como um repositório de impressões que o autor colheu na Castanheira do Vouga.[64] Que o poeta ficou inegavelmente cativado pela região dos pâmpanos prova-o também o livro Mil e um Mistérios, obra que “vale como o tributo maior rendido por Castilho à Bairrada”.[65] Qualquer das obras documenta, exuberantemente, “o fascínio que a Bairrada e a serrania caramulana exerceram sobre Castilho”.[66]

É também notória a apologia que Acúrcio faz das virtudes campestres: “só no campo mora a serenidade, a saúde e a verdadeira alegria”.[67] O tempo era propício ao enaltecer do mundo rural. Alguns romances da época – de Sousa Costa, Júlio Brandão ou Manuel Ribeiro, entre outros – são de cenário rural e assumem uma óbvia tendência regionalista. O primeiro destes autores via no regionalismo “o sistema muscular de uma nação”. Estava na moda a oposição cidade-campo e por isso alguns autores “firmaram a sua obra e a sua fama em terrenos rústicos”.[68]

Com segurança, podem associar-se a Acúrcio Correia da Silva as recusas ideológicas do cosmopolitismo e do modernismo, as propostas de retorno à terra e à tradição, as preocupações com a pesquisa filológica, etnográfica e histórica. Entre três correntes neorromânticas possíveis, há uma que parece assentar-lhe como uma luva: a do neorromantismo lusitanista que abrange, entre outras, a expressão literária do integralismo lusitano. Esta corrente é cultivada prioritariamente por “autores oriundos da aristocracia e da burguesia provincial e ideologicamente recobrindo todas as famílias monárquicas” e  entronca os seus valores  em textos de autores situados “em zonas de indefinição ideológica ou de [pretensa] indiferença política”.[69]

É quase irresistível não colar a este pretenso indiferentismo político a figura do padre Acúrcio. O neorromantismo lusitanista caracteriza-se ainda pela extrema religiosidade, o gosto do pitoresco, o moralismo, uma “lírica sentimental e confidente” [pense-se no tom das suas cartas a Irsília], na obsessão com a decadência nacional, na exaltação conservadora das virtudes e grandezas patrióticas. Nesta corrente literária o ruralismo extravasa o enlevo com as belezas da paisagem: funciona como oposição à metrópole moderna [poluída e cheia de vícios] e às classes dirigentes da Nação [decadentes, corruptas, estrangeiradas]. O campo e a província oferecem a panaceia do ambiente são e tranquilo, da harmonia social e das virtudes antigas, do casticismo dos modos de vida e da vernaculidade linguística com o seu modismo regional,[70] ingredientes demasiado óbvios em inúmeros textos de padre Acúrcio. Nos manuscritos existentes no Museu da Palhaça é possível encontrar contos, lendas e registos linguísticos de vocábulos regionalistas.[71] Como óbvia é também nele outra faceta do neorromantismo lusitanista: a do tratamento idealizante da temática erótica, caracterizada por uma evidente sublimação do desejo físico e carnal.

O valor da instrução e da educação era outra das suas preocupações e paixões. Padre Acúrcio desejava que o povo fosse um dia capaz de exaltar toda a beleza da região bairradina contida na paisagem, nas tradições poéticas e no viver bucólico das suas gentes. Para fazer comparticipar o povo nesse prazer espiritual, era preciso que os que já tinham a percepção desses encantos – a elite cultural da época – o educasse e instruísse. Era esta a missão a que se devia devotar a gente nova da Bairrada: “Ó meus bons camaradas da Plêiade Bairradina! Que não se diga que somos apenas sonhadores! Dêmos á nossa Arte uma finalidade luminosamente  bem-fazeja, que jorre luz para os corações, para as almas! Olhai que a Arte não pode ser para raros apenas!”[72]

Numa das cartas a Irsília padre Acúrcio promete dar a conhecer a noção de arte que perfilha, sobretudo a da poesia. E vai adiantando que ela não pode ser “para raros apenas”, mas para todos. Acreditava que a poesia tinha uma finalidade moral “de sublimizar a vida, de espiritualizar os sentimentos, de adelgaçar a dor, diminuindo-a”.[73]

A arte  teria de ser eminentemente social, ao arrepio dum tempo já ultrapassado em que as “camarilhas artísticas literatejavam […] aos pés das arquiduquesas, longe do vulgo que só de muito longe e de muito baixo raramente lia os maviosos vilancetes, filigranados em patrícios caracteres nas sedosas rendilhas dos leques”.[74] Cremos poder detectar nesta concepção de arte uma declarada “oposição ao aristocratismo estético em nome do popularismo e da prossecução do culto de simplicidade na temática e na estilística”.[75]

Em vez disso, a Arte teria uma missão social a cumprir: espalhar beleza aos olhos de todo o mundo, “espiritualizar a vida toda!”. Mas para que o povo pudesse participar nesse prazer espiritual da Arte, para que ela lhe fosse acessível, necessário se tornava que o ensinassem a ler.[76]

Compreende-se melhor esta preocupação dominante de padre Acúrcio – e de muitos outros pedagogos e homens de cultura da época – se dissermos que no primeiro quartel do século XX o analfabetismo constituía ainda um verdadeiro flagelo social, um enorme mural de resistência a todo e qualquer tipo de mudança. Muitas crianças não iam à escola, mas o facto de outras se matricularem não significava que tal correspondesse a uma efetiva frequência escolar.

(Texto publicado em Aqua Nativa – Revista de Cultura da Região da Bairrada, n.º 39, Dezembro 2011, pp. 42-53).


 

[1] Bairrada Livre, n.º 172, 18.04.1914, p. 3.

[2] David Luna de Carvalho, “O significado das ações colectivas de repertório tradicional na I República”, Ler História, n.º 59 2010, pp. 128-129.

[3] Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910. Coimbra, Faculdade de Letras, 1991. p. 332.

[4] Idem, pp.352 e 354.

[5] Vasco Pulido Valente, O Poder e o Povo, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 199 e ss.

[6] Manuel Braga da Cruz, As origens da democracia cristã e o salazarismo, Lisboa, Editorial Presença, 198 p. 248, nota 12.

[7] Idem, p. 246.

[8] Nuno Rosmaninho, “O anticlericalismo na província: um ferreiro da Bairrada”, Actas do Colóquio O Anticlericalismo Português: História e Discurso, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2002, p. 311. Publicado também em Aqua Nativa, Anadia, n.º 21, Dezembro de 2001, pp. 27-38.

[9] Idem, p. 315.

[10] Maria Lúcia de Brito Moura, A Guerra Religiosa na Primeira República, Lisboa, Editorial Notícias, 2004 [1.ª Edição], p. 337.

[11] Manuel Villaverde Cabral, «Fernando Pessoa e o “14 de Maio”» [Estudo prévio], in Eh real!, Edição Fac-similada, Lisboa, Contexto Editora, 1983, p. XII. Trata-se de um panfleto posto a cir­cular a 13 de Maio de 1915, portanto um dia antes da revolução  que derrubou Pimenta de Castro do poder. Publicou-se apenas este número, com colaboração, entre outros, de João Camoesas e Fernando Pessoa.

[12] António de Cértima, O Ditador, Lisboa, Edição Livraria Rodrigues & Cª., 1927, p. 39. António Augusto Cruzeiro de Cértima [1894-1983]. Nesta obra Cértima teoriza, em O Ditador, a necessidade de um ditador para Portugal, um salvador, uma espécie de grande árbitro acima das classes, dos partidos e da política em geral.

[13] “À volta da visita Pascal”, Bairrada Livre, n.º 224, 17.04.1915, p. 2.

[14] Idem, n.º. 223, 10.04.1915, p. 1.

[15] “Visita Pascal, Bairrada Livre, n.º 223, 10.04.1915, p. 3.

[16] “Actos reaccionários”, Bairrada Livre, n.º 223, 10.04.1915, p. 1.

[17] In Memoriam – Antologia, Organização da Comissão de Homenagem ao Padre Acúrcio Correia da Silva, 1959, p. 27.

[18] Alma Popular, n.º 168, 04.04.1925, p. 1.

[19] António de Cértima, “Sálcio Bairrada”, Correio da Bairrada, Ano I, n.º 2, 18.04.1925, pp.1-2.

[20] António de Cértima, Alma Encantadora do Chiado, Coimbra, Livraria Editora Atlântida, 1927, pp. 239-248. O texto está também reproduzido em “Terra Verde”, Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 18, 02.10.1992, pp. 3-4.

[21] À volta da visita Pascal”, Bairrada Livre, n.º 224, 17.04.1915, p. 2.

[22] In Memoriam – Antologia, p. 81.

[23] Correio da Bairrada, n.º 1, 11.04.1925, p. 2.

[24] António Costa Pinto, Os Camisas Azuis. Ideologia, Elites e Movimentos Fascistas em Portugal (1914-1945), Lisboa, Editorial Estampa, 1994, pp. 215-216.

[25] Idem, p. 294.

[26] “À volta da visita Pascal”, Bairrada Livre, n.º 224, 17.04.1915, p. 2.

[27] Bairrada Livre, n.º 223, 10.04.1915, p. 1.

[28] “À volta da visita Pascal”, Bairrada Livre, n.º 224, 17.04.1915, p. 2.

[29] Abel Condesso, “Padre Acúrcio Correia da Silva”, Correio da Bairrada, n.º 1, 11.04.1925, p. 2.

[30] Idem, ibidem.

[31] Idem, ibidem.

[32] “O refervido chá”, Bairrada Livre, n.º 226, 01.05.1915, p. 2.

[33] “Carta de Sangalhos”, Bairrada Livre, n.º 228, 15.05.1915, p. 2.

[34] “Jesuitismo na freguesia de Sangalhos”, Bairrada Livre, n.º 264, 22.01.1916, p. 2.

[35] Idem, n.º 267, 12.02.1916, p. 2.

[36] “Jesuitismo na freguesia de Sangalhos”, Bairrada Livre, n.º 264, 22.01.1916, p. 2.

[37] “Aos cidadãos de Sangalhos”, Bairrada Livre, n.º 269, 26.02.1916, pp. 1-2.

[38] Abel Condesso, “Padre Acúrcio Correia da Silva”, Correio da Bairrada, n.º 1, 11.04.1925, p. 2.

[39] Manuel Braga da Cruz, “O Integralismo Lusitano nas origens do salazarismo”, Análise Social, vol. XVIII (70), 1982-1.º, p. 149.

[40] António Sardinha, Ao Ritmo da Ampulheta, segundo Manuel Braga da Cruz, artigo cit. p.  140.

[41] Manuel Rodrigues Lapa, “O Padre Acúrcio C. da Silva, Correio da Bairrada, 11.04.1925, p. 2; Idem, In Memoriam, p. 28; Arsénio Mota, Figuras da Letras e das Artes na Bairrada, p. 152.

[42] António Breda Carvalho, “A concepção de Arte Regionalista”, Jornal da Bairrada (suplemento Bairrada Cultural, 30.03.2000), pp. 8-9.

[43] António Manuel de Melo Breda Carvalho, Identidades Regionais. Acúrcio Correia da Silva e a Bairrada, dissertação de mestrado em Estudos Portugueses, Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2000, p. 111. Este trabalho encontra-se publicado em vários números da revista Aqua Nativa.

[44] Sálcio Bairrada, “Cartas a Irsília (XIX)”, O Povo de Anadia, n.º 134, 21.02.1918, p. 2.

[45] António Sardinha, Na Feira dos Mitos. Ideias & Factos, segundo Manuel Braga da Cruz, artigo citado, p. 155.

[46] Abel Condesso, “Padre Acúrcio Correia da Silva”, Correio da Bairrada, n.º 1, 11.04.1925, p. 2.

[47] Raul Proença, Acerca do Integralismo Lusitano, Lisboa, Seara Nova, 1964, p. 5.

[48] António Sardinha, A prol do Comum. Doutrina & História, segundo Manuel Braga da Cruz, artigo citado, p. 152.

[49] Sálcio Bairrada, “Ser Político”, Gente Nova, n.º 34, 31.01.1920, p. 1.

[50] Idem, ibidem.

[51] Idem, “Doirada idade”, Gente Nova, n.º 17, 12.06.1919, p. 1.

[52] António Sardinha, Na Feira dos Mitos. Ideias & Factos, Lisboa, Ed. Gama, 1942, pp. 275-276.

[53] Sálcio Bairrada, “Doirada idade”, Gente Nova, n.º 17, 12.06.1919, p. 1.

[54] Luís de Almeida Braga, Sob o Pendão Real, Lisboa, Ed. Gama, 1942 p. 219.

[55] Ernesto Castro Leal, “A Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1919-1938)”, Análise Social, vol. XXXIII (148), 1998 (4.º), p. 833.

[56] Fernando Catroga, “Oliveira Martins: Cesarismo e encarnação do Poder”, Diário de Notícias (Suplemento), 15.02.1983.

[57] João Medina, “Sérgio e o sidonismo”. Estudo do ideário sergiano na revista Pela Grei” (1918-1919), in Estudos sobre António Sérgio, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de História da Universidade de Lisboa, 1988, p. 9.

[58] Trata-se de uma revista fundada em princípios de 1918, que era o órgão da Liga de Ação Nacional. Dirigida por António Sérgio, deparamos no seu ideário com “o culto da elite juntamente com ataques aos partidos e ao parlamentarismo, bem como a defesa do Estado “forte” (…) embora se não ultrapasse a fronteira a partir da qual já não é de todo possível falar em liberalismo”. F. Farelo Lopes, “A revista ‘Pela Grei’ (doutrina e prática políticas), Análise Social, vol. XVIII, (72-73-74), 1982, 3.º, 4.º, 5.º, p. 772

[59] Fernando Farelo Lopes, “A revista ‘Pela Grei’ p. 771.

[60] Arsénio Mota, Estudos Regionais sobre a Bairrada, Porto, Livraria Figueirinhas, 1993, p. 66. Sobre a Plêiade Bairradina e a Bairrada no início do século XX, ver sobretudo as páginas 63 a 77. Ver também, do mesmo autor, Pela Bairrada, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 1998, pp. 21-23.

[61] Sálcio Bairrada, “A missão da gente nova”, Gente Nova, Ano I, n.º 2, 29.03.1919, p. 1.

[62] Sálcio Bairrada, “Política?”, Gente Nova, Ano I, n.º 9, 17.05.1919, p. 1.

[63] António de Cértima, “Portugal e a Guerra das Nações”, Gente Nova, Ano I, n.º 11, 31.03.1919, p. 1.

[64] Sálcio Bairrada, “Selecta do meu canhenho”, Gente Nova, n.º 17, 12.06.1919, p. 1.

[65] Arsénio Mota, Inclinações Pontuais, Porto, Campo das Letras, 2000, pp. 92-93. Sobre a permanência de Castilho na Bairrada ver também: Arsénio Mota, “Castilho e a Bairrada”, in Bairrada Cultural (suplemento do Jornal da Bairrada), n.º 14, 27.07.2000; Deniz Ramos, “Castilho e a Bairrada”, in Bairrada Cultural, 30.03.2010; Ercília Pinto, “A Bairrada, refúgio de poetas. António Feliciano de Castilho em Aguim, Vale da Mó, Castanheira do Vouga e Torreira”, in Arquivo do Distrito de Aveiro, n. 62 (Abril, Maio e Junho), Aveiro, 1950, pp. 150-153; Soares da Graça, “Os Castilhos e a residência paroquial da Castanheira do Vouga”,  Arquivo do Distrito de Aveiro, nºs 90 e 91 (Abril a Setembro), Aveiro, 1957, pp. 220-226.

[66] Deniz Ramos, “Outra vez Castilho. A propósito de três raridades bibliográficas”, Bairrada Cultural, n.º. 17, 25.01.2001. Também António Capão, no âmbito das comemorações do bicentenário do nascimento do poeta, proferiu em Oliveira do Bairro uma conferência intitulada “António Feliciano de Castilho – Um clássico que deambulou pela Bairrada nas veredas do Romantismo” (Jornal da Bairrada, 03.02.2000, p. 9).

[67] Sálcio Bairrada, “Cartas para Além-Mar”, Gente Nova, Ano I, n.º 14, 21.06.1919.

[68] José-Augusto França, Os Anos Vinte em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1992, pp. 140-141.

[69] José Carlos Seabra Pereira, “Tempo neo-romântico (contributo para o estudo das relações entre a literatura e a sociedade no primeiro quartel do século XX), Análise Social, vol. XIX, (77-78-79), 1983 – 3.º, 4.º. 5.º, p. 853.

[70] Idem, p. 868.

[71] António Capão, “A presença de Padre Acúrcio”, Bairrada Cultural (Suplemento do Jornal da Bairrada), Folha n.º 5, 20.02.2003; idem, “Obras inéditas do Padre Acúrcio”, Bairrada Cultural, Folha n.º 1, 04-04.2002.

[72] Sálcio Bairrada, “A missão da gente nova”, Gente Nova, Ano I, n.º 2, 29.03.1919, p. 1.

[73] Idem, “Cartas a Irsília”, O Povo de Anadia, n.º 180, 16.01.1919, p. 2.

[74] Idem, ibidem.

[75] José Carlos Seabra Pereira, artigo citado.

[76] Sálcio Bairrada, Cartas a Irsília, O Povo de Anadia, n.º 180, 16.01.1919, p. 2.

 

Letras sob Protesto — de Arsénio Mota

Capa jpegNo momento em que assinala meio século de actividade de escrita, Arsénio Mota brinda-nos com mais um livro. São já cinquenta anos de labor, recheados de publicações de vária ordem – textos jornalísticos, ensaios, contos e crónicas, traduções, poesia, literatura infanto-juvenil – saídas da pena de um homem culto, autor vivo e produtivo, consciência eriçada do tempo que lhe cabe viver.

Fica desde já a garantia: a voz que se esconde por detrás das palavras pertence ao homem. Não é falsete. Aqui não há meias tintas, fala-se claro e com espessura. O autor sabe da poda, diz abertamente de que lado está, o que defende e aquilo que o constrange. Letras sob Protesto é, a seu modo, um olhar pouco usual sobre as consequências da cultura dos media no panorama literário actual, uma espécie de balanço da instituição literária, pois aflora o estado da arte nas suas diferentes instâncias: questões que se colocam ao autor, meandros da escrita e da leitura, crítica literária e edição, entre outras.

O livro abre com «O texto aberto». Arsénio Mota discorre com propriedade sobre as técnicas da escrita criativa, as diferentes maneiras de cativar o leitor, a arte de manter aceso o lume da expectativa inicial. Diz ele: «O primeiro parágrafo deve apanhar o leitor inadvertido, com a naturalidade do anzol colocado no caminho do peixe que vai de passagem» (p. 13). Mas não basta passar uma história ao papel para que ela seja aliciante. É preciso que o ritmo da narrativa desenhe uma curva ascendente, capaz de amarrar o leitor, de lhe adubar a imaginação enquanto convive com o texto e faz dele seu acompanhante.

Logo a seguir, o autor empenha-se em mostrar que os textos literários actuais reprimem o que é novo e inovador, ao trocarem tudo isso pela escrita conformista do politicamente correcto. O espaço da criação está cada vez mais reduzido pelas lógicas de mercado. Publica-se o que está a dar (…dinheiro, entenda-se). Os mecanismos da escrita estão agora orientados para seduzir ao primeiro contacto. Escrever assim, apenas aquilo que os outros gostam de ler, não é só um acto calculista: limita também o acto criativo e condiciona a imaginação.

É óbvia, nesta abordagem, a crítica à chamada «literatura light», que os seus adeptos preferem apelidar de «escrita pop» (não vá o termo literatura ser excessivo!). Uma escrita que se sente como peixe na água neste tempo de profetas do fim da história e das ideologias. Puro reino do efémero, uma era do vazio e de amnésia generalizada, onde as técnicas de sedução «substituíram os recursos artísticos da retórica». (p. 15). A literatura «light» vai de vento em popa. Não por acaso, Margarida Rebelo Pinto – a principal cultora do género – é a escritora portuguesa que mais vende. E vende tanto – os seus livros saem às fornadas, como pãezinhos quentes… – que um escritor laureado como é Lobo Antunes não resistiu a recordar-lho: «A menina conseguiu, em três anos, o que eu consegui em trinta».

Quando vemos alguém, na casa dos trinta anos, num país com os hábitos de leitura do nosso, já com mais de 500 000 exemplares vendidos, algumas interrogações se levantam: não terá a sua escrita algum mérito, o de pelo menos saber contar uma história?  Será que estamos apenas na presença de um fenómeno sociológico gerado pelo efeito do marketing? Mesmo admitindo que a escritora vá, com mestria, ao encontro das expectativas dos leitores, a verdade é que grande parte dos críticos não descortina nas suas obras qualidades estéticas apreciáveis. Ela chama-lhes, pois claro … impotentes literários! Ao que apelida de «leveza» da sua escrita, outros preferem chamar, com todas as letras, superficialidade. Pode esta escrita ter alguma validade enquanto diversão, assim como quem ordena selos em catálogos, num tempo de quotidianos amargos e sombrios. Certo, certo, é que é tão leve que consegue voar alto nas listas de vendas. Veremos até quando. O futuro vai dizer se estamos ou não em presença de um sucesso com prazo de validade.

Seria curioso, já agora, saber quem a lê e lhe compra os livros. São os que compram e lêem com regularidade? Ou os que nunca hão-de transformar tais actos em rotina ao longo da vida? Dificilmente estaremos em presença de um salto qualitativo no panorama literário português. Refere Arsénio Mota que a época actual «não brilha pela reformulação inventiva» (.p. 15). Talvez possamos então falar, com mais propriedade, de uma tendência editorial pouco interessada com a qualidade do produto que coloca no mercado. Para ir ao encontro do consumidor os livros devem vender sonhos. Quanto mais ligeira for a dose de informação e elevada a dose de evasão, maior será o sucesso.

Esta questão do sucesso e da notoriedade do escritor remete-nos para outros temas caros a Arsénio Mota e também presentes neste seu livro. «Ser escritor» (pp. 17-20) é um breve mas estimulante ensaio sobre o conceito de escritor, a sua notoriedade ou o estatuto marginal que detém no campo das letras. Se nem todo o autor de um livro é necessariamente um escritor, quem lhe confere tal direito? O barulho de uma árvore a tombar com fragor no meio da floresta existe, se ninguém o escutar? A qualidade do que escreve um autor fica garantida mesmo que ninguém o leia?

O sucesso de um autor – não a qualidade – mede-se em termos de público leitor, por muito que isso custe a uns tantos. Quem escreve aspira a ser lido e os que fingem borrifar-se para isso são geralmente os mais sôfregos. A paráfrase de Miguéis, que abre o livro, é bem esclarecedora: escrever é uma acção inútil ou gratuita: é a leitura que a torna útil.  Mas quem são os leitores que definem hoje o sucesso de uma obra? De que matéria são formados? Eles existem em todas as classes sociais e gostam de se reconhecer cada vez mais idênticos aos outros – no pensamento, nas preferências, nos usos e costumes, nos estilos de vida. Por isso repelem o que é diferente, singular, individual. Habituado a consumir produtos culturais estandardizados, o leitor moderno rejeita os que se lhe apresentam mais elaborados. Numa sociedade cujo quadro de valores está orientado para a felicidade no consumo, consumir a qualquer preço é a palavra de ordem.

Isto leva Arsénio Mota a questionar-nos sobre quem qualifica o autor como escritor, após a publicação de uma obra: «os leitores, com os críticos à frente»? E que tipo de leitores, se eles «se repartem pelas diversas qualidades do público»? (p. 18). Será o resultado dessa amálgama uma qualificação fiável? Confrontando-nos com este tipo de raciocínios, deixa ainda no ar a seguinte interrogação: «não haverá por aí obras de real categoria desprovidas de leitores à sua medida»? (p. 19).

«Não escrevas mais, pá», é um texto alagado de ironia subtil, onde transparece algum pessimismo e o lamento do escritor marginalizado e ignorado pela indústria cultural. Escrever para quê e para quem? Porque teima em escrever quem sabe que nunca vai tornar-se um mandarim das letras, e por isso não procura lucro fácil nem glória? Diz Arsénio Mota que  por semana aterram nas livraria mais de cinquenta livros novos. Parece óbvio que o leitor que trabalha, compra diários, semanários e revistas, que é inundado todos os dias pela variada oferta televisiva e exposto às mensagens publicitárias do cartaz e do outdoor, acaba por se perder nesta densa floresta de palavras e imagens: «tanta escrita a jorrar excede em muito a capacidade real de leitura da gente» (pp. 21-22). Como o tempo não abunda, «a leitura das obras originais anda a ser substituída por leituras de comentários produzidos sobre as obras originais» (p. 22).

O caudal esmagador de informações produzidas pelos media deixa o espírito humano desarmado, condena-o a ser superficial. Uma sociedade da informação não é, necessariamente, uma sociedade informada. O indivíduo inundado por este fluxo de mensagens contraditórias e desordenadas, sem qualquer hierarquia de valores, vê reduzida a estruturação do seu pensamento. Os media introduziram uma densidade de tipo novo na tela da sua cultura. Os estragos são notórios, pois a força de uma cultura está ligada à probabilidade de associações que um saber fragmentário não consente.

O autor sabe tudo isto, mas não larga a freima da escrita, precisa dela como do ar que respira: «Cansas-te a escolher uma a uma as letras, as sílabas, as palavras que colocas em linha com a minúcia escrupulosa de quem enfia pérolas esplêndidas num colar» (p. 21). Não haverá em tal frenesim um acto de puro masoquismo? É que o calvário do escritor não termina aqui! Se deseja publicar, dá de caras com editores que não mexem uma palha para lhe promover os livros, pois crêem que é o autor que vende e não os filhos que ele próprio gera. E para vender tem de se transformar em «marca», o livro já não vende por si mesmo mas pelo marketing que o promove. Hoje compra-se o autor repetidamente publicitado, em vez da obra: «pegamos em Saramago ou Lobo Antunes, Eugénio ou Ramos Rosa, como quem escolhe cozido à portuguesa e linguado frito, com vinho da Bairrada ou do Dão» (p. 28).

Se o autor tem nome na praça, pode acontecer que os editores lhe trabalhem o livro, tracem uma estratégia de marketing ou cuidem de aspectos promocionais. Hoje são os media que regem a cultura dos nossos dias. Eles filtram,  seleccionam elementos particulares, valorizam umas ideias e desvalorizam outras. Em suma, polarizam o campo cultural. Aquilo que não passa nos media perde toda a influência e importância. Aparecer na imprensa ou na televisão e ser entrevistado nas revistas do social é assim tão ou mais importante que o trabalho solitário e minucioso da escrita. Tudo serve para ir ao encontro do leitor. Mas pobre do autor que vive cercado em anonimato: tem de correr por sua conta e risco, palmilhar sozinho os ínvios caminhos do mercado. E no fim da via-sacra acontece, às vezes, não saber ao menos quantos exemplares da obra foram vendidos. Pode até nem receber, a tempo e horas, aquilo que lhe é devido. Um problema, sem dúvida, de propriedade intelectual, já que no plano da cidadania todo o escritor deveria ter direito ao ganha-pão, pelo serviço público que presta.

Pasme agora o leitor com esta verdadeira pedrada no charco, capaz de ofender os deuses – sim, os deuses ofendem-se com a dúvida – do Olimpo literário: Arsénio Mota afiança que ao lermos um autor estrangeiro consagrado podemos estar a comer gato por lebre. Assim mesmo. A paternidade literária pode andar arredia do escritor que nos entusiasma: «Talvez as páginas que leu com enlevo não tenham saído verdadeiramente do cérebro do seu autor favorito!» (p. 95). Descubra o leitor os intrincados meandros desta produção literária que atinge foros de um lamentável processo de fagocitose intelectual. E se pensa que não pode ser ludibriado de forma tão rasteira, atente bem nisto: há tempos, circulou  na Internet um texto atribuído a Gabriel Garcia Márquez. Atormentado por um linfoma, o escritor colombiano despedia-se dos amigos e da vida. A carta, muito bela e cheia de humanidade, tocou toda a gente, de tal modo que alguns homens de cultura da nossa praça não resistiram a comentá-la e a transcrevê-la na imprensa diária de grande tiragem. Foi-se a ver … e a carta era falsa! Toda a gente foi enganada. E o que mais surpreendeu o escritor foi que os seus fiéis leitores tivessem, por um momento, acreditado que semelhante texto fosse seu. Só espero não morrer de vergonha – acrescentou, com evidente ironia. Este exemplo ajuda a perceber como qualquer autor consagrado se pode «alimentar» dos autores anónimos e marginalizados, a quem Arsénio Mota chama, com propriedade, os forçados das letras.

O livro esboça, também, uma espécie de requiem à crítica literária actual. Ora se insurge com a crítica que «passa a deslado de quaisquer comentários» a obras inovadoras, como se estas fossem «pechisbeques insignificantes» (p. 61), ora lamenta que ela se exerça «com a frieza aparente de cientistas vestidos de bata branca» (p. 59). O que parece incomodar Arsénio Mota é uma interpretação literária que tende a considerar a obra autónoma em relação ao criador, ao relegar da análise estética a ética que lhe subjaz. Ao separar o sujeito do objecto, a análise textual procede como o cientista que isola o objecto para melhor aquilatar da matéria que o enforma (por isso se fala tanto em «dissecar», em «esquartejar» o texto). Pode analisar-se a obra literária silenciando a voz humana que a comanda? Tanta «objectividade», tanto bisturi da crítica a esquartejar o texto – esquecendo que os textos falam e têm por detrás um criador que é humano – ajudam à compreensão da obra? Por muito brilhantes (mas também quase sempre densas e obscuras) que sejam as tipologias e classificações académicas, a compreensão do texto literário fica diminuída se lhe escapa a componente humanista e as circunstâncias histórico-culturais em que nasce e é produzido.

Ao contrário dos que desdenham por completo de toda a crítica literária – uns dizem que ela não existe, outros que os críticos gostam de cuspir na sopa que os alimenta… – Arsénio Mota considera o seu papel insubstituível, enquanto veículo pedagógico de esclarecimento para potenciais leitores e capaz de nos restituir o prazer do texto. Aspira a uma crítica literária não manietada pela lógica do mercado e não submetida a cânones académicos, que mais parecem servir para agradar aos mestres do que para iluminar e esclarecer leitores. Na verdade, há por aí críticos que transformam os textos em algo bem mais trabalhoso e enfadonho que os próprios livros que comentam. Empenham-se na desconstrução do texto e na arqueologia do saber com tal apego, para nos dar a substância última da matéria literária, que reduzem a quase nada as possibilidades de compreensão de quem os lê (é aquilo a que Fernando Venâncio chama «magia negra foucaultiana»).

O que anima Arsénio Mota é o desejo de uma crítica exercida com regularidade nos órgãos de comunicação social, feita por jornalistas competentes, frontal e isenta, «sem olhar a amiguismos, sem fretes a editoras» (p. 63) e não a que se tornou domínio de raros especialistas de linguística. É preciso «descativar a crítica literária dos feudos universitários que algum dano lhe têm feito» (p. 62). E que os críticos joeirem tudo, dando-nos a ver as pepitas reluzentes, pois sem o brilho da publicidade permanecerão invisíveis ao olhar. No mar dos sargaços literário também há peixes de águas profundas que precisam de vir à tona. Só com eles é possível resgatar a polifonia de vozes silenciada pela lógica de ferro do mercado da cultura. Neles residirá a esperança de alguma inovação estética e a originalidade possível, ao arrepio das fórmulas do sucesso garantido.

Um dos méritos de Letras sob Protesto é o de todos os temas suscitarem dúvidas e interrogações, serem textos pouco recomendáveis a espíritos amolecidos, num tempo em que a fuga ao acto de pensar é uma das marcas distintivas do homem contemporâneo. Arsénio Mota corre os riscos próprios de quem se expõe de peito aberto à intempérie, ao indagar os porquês do sucesso rápido e a razão pela qual os holofotes da publicidade incidem apenas em meia dúzia de escritores. Arrisca-se a que lhe chamem preconceituoso, por aparentemente se preocupar com quem vende muito; ou até elitista, quando se refere às elites culturais que dantes qualificavam uma obra, ou quando fala em «indispensáveis elites de leitores» (p. 39), capazes de apoiarem os autores marginais, essa «multidão que de norte a sul se espelha em livros, revistas e jornais, pelo prazer, que é pulsão, de escrever e publicar, recebendo, quando recebe, os três tostões de mel coado da praxe» (pp.145-146). É neles que deposita a esperança de renovação da literatura e por isso lhes presta comovente homenagem, em Autor, eterno amador.

Elitista, Arsénio Mota? O que o preocupa verdadeiramente, em todo o livro, são as consequências nefastas, para a literatura, de um certo credo populista e igualitário que por aí campeia e dá lustro à mediocridade reinante. É no que tem dado o preconceito contra as elites: uma visível e notória incapacidade de produzir a excelência.

Na sua cruzada cívica contra o desgaste acentuado dos humanismos (o homem-massa, segundo Ortega Y Gasset, é a antítese do humanista culto) o autor vê nesta sociedade, em que o jogo e o espectáculo são hipervalorizados, um momento de crise e não de solidificação da cultura. Uma sociedade onde a concepção de vida é norteada pelo êxito fulgurante e pelo mito da eterna juventude, e em que a prática quotidiana dos media consiste em colorir, artificialmente, os fenómenos culturais com um valor emocional, só pode estar a gerar, no seu ventre, o fermento da mudança. Do que se trata, então, é de congeminar saídas e enfrentar a crise, orientando-a num sentido não alienante e embrutecedor.

Como lidar então com os media? Como utilizá-los? Em proveito de quê e de quem?  Arsénio Mota parece  defender que eles devem estar em sintonia com a importância real dos acontecimentos, das ideias e produtos culturais, em vez de se preocuparem com o critério do maior número. A partir do momento em que qualquer ideia ou conhecimento são importantes eles devem ser acessíveis, para lá de qualquer lógica de mercado. Fazer isto é sobretudo uma questão de vontade, não de possibilidade.

Letras sob Protesto é a denúncia da simplificação acelerada da literatura e das leituras massificadas. Ergue-se contra a homogeneização dos gostos, a submissão do acto criativo a cálculos de rentabilidade imediata. Só uma nova cultura crítica – como nos propõe Arsénio Mota, fazendo uso dessa antiga arma de precisão que é a lucidez – poderá salvar a instituição literária da teia de enredos em que se deixou aprisionar.

O livro faz o que pode para que a atitude crítica não adormeça, pois o autor sabe que tal adormecimento é estrume do melhor para os totalitarismos que sempre espreitam. Confiar no darwinismo cultural quando se fala em literatura – e sobretudo quando o mercado impera – é um tanto arriscado: uma obra literária não vinga e resiste apenas porque tem qualidade. Não basta aos autores anónimos que se acantonem num qualquer espaço autónomo, onde confluem os que não aceitam ou não querem entrar nas regra do jogo que o mercado lhes dita. É preciso criticar, em vez de ignorar. Com a consciência que não será fácil criar condições para que o «público em geral» aceda, de ânimo leve, aos chamados produtos culturais de qualidade.

O que aqui se deixa são apenas algumas iguarias do prato suculento que em boa hora Arsénio Mota nos serviu. O leitor pode e deve digeri-lo até ao fim, sem risco de empanturrar, como quem se delicia com o que não lhe é dado saborear todos os dias. Sim, porque a literatura – tal como dizia Natália Correia da poesia – também é para comer. Ou não vagueassem por aí os subalimentados do sonho e do espírito, padecimentos de que todos, em maior ou menor grau, sofremos um pouco.

 

Na alvorada da criação da freguesia de Bustos (1910-1920)

Criação freguesia BustosA maneira como cada comunidade se filia no seu próprio passado, numa procura activa e constante de recordações, ajuda  a definir-lhe uma identidade própria e um sentimento de pertença que a distingue das demais. É certo que só podemos recordar partes do que já passou. Mas isso não deixa de ser essencial para dar futuros ao passado.

Às gerações actuais compete recuperar e se possível iluminar o que um dia aconteceu e foi digno de registo. E o que aconteceu em Bustos no ano de 1920 foi simplesmente isto: a separação definitiva da Mamarrosa em 18 de Fevereiro e logo a seguir, em 9 de Maio – menos de três meses depois – a nomeação da primeira Junta de Freguesia independente.

Aqueles que a Bustos legaram obra e lhe dedicaram o melhor do seu entusiasmo e saber bem  merecem ser evocados com dignidade. Este despretensioso trabalho, ao recuperar do passado ambientes e episódios que antecederam a criação da freguesia, é uma forma singela de homenagear e estar grato à memória desses homens e de manifestar apreço aos que hoje procuram ser fiéis ao sangue que lhes corre nas veias.

Como se chegou à criação da freguesia? Que horizontes determinavam a acção política concelhia? Qual o ambiente político, social e cultural que se respirava nessa altura? Que episódios marcantes merecem ser registados? Que intrigas se teciam entre as elites monárquicas e republicanas? Uma coisa parece certa: sem a implantação da República em 5 de Outubro de 1910 dificilmente Bustos se teria separado da Mamarrosa em 1920. As óbvias afinidades ideológicas entre os republicanos democráticos de ambas as localidades parecem ter desempenhado um papel decisivo em todo este processo.

Atente-se no seguinte: em 1908 o concelho de Oliveira do Bairro era um dos poucos – se não o único no distrito de Aveiro – onde não existia qualquer jornal.[1] Um traço bem revelador do subdesenvolvimento cultural do concelho, que obriga hoje os interessados em conhecer o seu passado a recorrer à consulta da imprensa regional de outros concelhos, nomeadamente de Aveiro, Ílhavo, Águeda e Anadia. É certo que em Outubro de 1908 inicia a sua publicação o jornal monárquico Ecos do Vouga, que viria a ser dirigido pelo padre Abel da Conceição e Silva, de Oiã. Mas começou por ter sede em Águeda e a redacção só mudaria para Oiã passados dois anos do início da sua publicação.[2]

O ambiente pouco amistoso que se viveu a seguir à implantação da República um pouco por todo o concelho de Oliveira do Bairro – e por maioria de razão entre as populações de Mamarrosa e Bustos – tem muito a ver com conflitos políticos que opuseram monárquicos e republicanos durante esse período conturbado da vida nacional. Às vezes todos contra os republicanos democráticos, após a cisão do Partido Republicano Português: não raras vezes republicanos conservadores ou moderados – oriundos do partido evolucionista de António José de Almeida e do partido unionista de Brito Camacho, ou até dos intransigentes de Machado Santos, se aliaram aos monárquicos constitucionais, a que se colavam estrategicamente os monárquicos integralistas a partir de 1914.

Essa guerra intestina de um contra todos deixaria marcas indeléveis nas relações que se estabeleciam entre as populações dos diferentes lugares e freguesias do concelho. O predomínio dos influentes locais do tempo da Monarquia durante a República dava azo a tensões permanentes e a episódios de baixa política doméstica,  pouco próprios dos paradigmas cívicos e democráticos que então se apregoavam.

Muitas destas desavenças já vinham do tempo da Monarquia. Aquando das eleições paroquiais que se realizaram em Novembro de 1908 na Mamarrosa, os seguidores de António Duarte Sereno, influente político local e proprietário da firma comercial J. D. Sereno & Filho – já então agraciado com o título de visconde de Bustos[3] – terão alcançado “grande vitória”. Segundo o jornal monárquico Vitalidade a vitória saldou-se numa vantagem de 122 votos.[4] Ali não concorreu qualquer lista republicana. Mas estalaram as quezílias com os “falsos amigos do sr. Conde de Águeda, que têm toda a cor politica”, os quais aproveitaram o ensejo para lembrar promessas não cumpridas ao povo da Quinta da Gala: uma estrada e uma fonte. Ao que parece as desavenças tinham a ver com o facto da lista apresentada pelo visconde ser integralmente constituída por pessoas de Bustos “em quem o povo da Mamarrosa não deposita confiança”. Por isso surgiu uma lista alternativa patrocinada pelo conde de Águeda, político por excelência que “visita ministérios como os operários visitam casas de pasto que à última hora resolveu não disputar a eleição.[5]

A atribuição do título de visconde a António Duarte Sereno estava longe de ser pacífica. O Jornal de Anadia declarava que o concelho de Oliveira do Bairro lhe devia “assinaláveis serviços” em matéria de melhoramentos materiais. Entendimento diferente tinha o correspondente de O Nauta: “Quais têm sido as contemplações com que se tem dignado brindar a freguesia onde reside? Quais têm sido os seus actos beneméritos ou patrióticos que lhe granjearam um título de nobreza?”.[6]

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António Duarte Sereno

Quando, enfim, a República triunfa e chega à província “por telegrama”, na expressão de João Chagas, o concelho de Oliveira do Bairro comporta-se como o resto do país onde a ruralidade era mais acentuada e as pessoas viviam curvadas ao peso da terra: ao indiferentismo de uns soma-se a expectativa benévola, a euforia e os festejos de outros. Na Mamarrosa o triunfo da República deixou “ébrios de alegria” os que viam nela a salvação de Portugal. As comissões paroquiais republicanas desta freguesia e do Troviscal, acompanhadas de grande número de pessoas, foram a Oliveira do Bairro hastear a bandeira republicana no edifício dos paços do concelho. Na sala das sessões discursaram Costa Ferreira, Abílio Nápoles e António Breda. Deram-se “vivas à República” ao som da Marselhesa, ao mesmo tempo que estalejavam foguetes e o povo se manifestava entusiasticamente.[7]

No então lugar de Bustos o ambiente era diferente: em 1910 os republicanos escasseavam e o “foco reaccionário e caciqueiro” continuava a exercer a sua influência, inculcando no espírito do povo “a nefasta noção de que a República é um mal” e “dizendo dos republicanos o que Mafoma não disse do toucinho”.[8] Talvez por isso a comissão paroquial da freguesia da Palhaça tenha dirigido uma petição ao ministro do Interior, a pedir a mudança da assembleia eleitoral com sede e lugar na capela de Bustos para a freguesia do Troviscal.[9] Invocavam-se, como razão para a mudança, a centralidade do Troviscal e o facto do lugar de Bustos não ser sequer freguesia.

Segundo os republicanos, o lugar teria sido escolhido para sede da assembleia eleitoral “pela imoralíssima razão de ser feudo do visconde de seu nome”, que assim mais facilmente poderia levar a cabo “as burlas eleitorais do antigo regime”.[10] Apesar de tais contratempos, em Março de 1911 teve lugar um comício republicano em Bustos ao qual presidiu o prestigiado republicano Albano Coutinho,[11] abastado viticultor de Mogofores e primeiro governador civil de Aveiro após a proclamação da República. Entre outros oradores usaram da palavra André dos Reis, director de O Democrata, e Cunha e Costa. Aí se disse que a República era compatível com a religião e que esta só naquela pode encontrar a liberdade que necessita”.[12]

Não era fácil acabar com a influência dos antigos notáveis locais, até porque muitos deles se passaram de armas e bagagens para o campo republicano. Assim aconteceu com os seguidores do Conde de Águeda,[13] cuja influência era disputada nos últimos anos pelo dissidente Egas Moniz: derrubada a Monarquia, de imediato oferecem a “leal e desinteressada” adesão dos seus 125 elementos, a que acrescentam a promessa de 7 deputados pelo círculo.[14] Estava em marcha o “adesivismo”, fenómeno que serve para exprimir o processo de conversão de políticos e jornais monárquicos ao regime republicano, a abertura da República aos “amigos políticos” da Monarquia. Essas conversões, iniciadas logo em Outubro de 1910, engrossariam nos anos se­guintes e foram de tal monta que o novo regime acabou por não se erguer, como seria de esperar, a partir dos pilares construídos com o seu próprio pessoal polí­tico. O regime evoluía, não para uma revolução, mas  para uma República com ex-monárqui­cos.[15]

O aparelho de Estado não vai sofrer alte­rações de monta, contrariando-se os propósitos de alguns republicanos mais con­ceituados e esclarecidos. Entre eles conta-se João Chagas, quando afirmava: “A República […] deve ser toda de republicanos, de alto a baixo, desde os seus minis­tros até aos seus regedores. Toda a autoridade deste país deverá passar para as mãos deles, e enquanto assim não for não haverá República”.[16]

O problema é que na província os republicanos escasseavam. O reconhecimento de que eram efectivamente minoritários serviria de pretexto a Basílio Teles – um dos mais lúcidos apóstolos do ideal republicano que compreendeu, como poucos, os mecanismos inerentes à tomada de poder político – para justificar a necessidade de uma ditadura republicana provisória: «o nosso pessoal de competência especial reconhecida […] dificilmente chegará para os cargos a preencher com a abolição da realeza [que] precisamos absolutamente de confiar a mãos leais».[17]

O Partido Republicano Português não dispunha, na altura, de qualquer organização na maior parte dos concelhos do país.  Segundo O Ideal, Oliveira do Bairro não contaria, antes da implantação da República, com “meia dúzia de apóstolos do novo regime”[18]. Esta realidade mostra-nos que o 5 de Outubro não assinala a transição do poder para os republicanos na província: nalguns sítios apareceram mesmo franquistas e ultramonárquicos à frente dos municípios e freguesias. Pode assim dizer-se que ao manter intactas as estruturas do Estado, sem em­preender uma séria renovação do pessoal político e dando continuidade a procedi­mentos caros ao regime monárquico – clientelismo, restrições ao sufrágio, inexis­tência de medidas de relançamento económico – a República não começava da melhor maneira.

 

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O Século Ilustrado, 27 Outubro 1911

E se é lícito acreditar na contemporização dos ex-monárquicos  com o novo poder, não é de excluir que muitos deles conspirassem na sombra para derrubar a República, ajudando a criar o clima de instabilidade permanente que ca­racterizou os 16 anos da sua vigência. Segundo João Chagas, dificilmente a revolu­ção seria capaz de conquistar os “adesivos” para a sua causa. E acrescentava: “Não se servem ideias que não se amam senão para as atraiçoar”.[19]

Em 30 de Setembro de 1911, pouco antes da passagem do comboio rápido com destino a Lisboa, foram levantadas as linhas entre o então apeadeiro de Oiã e Oliveira do Bairro. A ideia era fazê-lo descarrilar. Ao mesmo tempo procurava-se dinamitar à bomba a Ponte do Pano. Vários cidadãos foram presos, entre eles o padre Abel da Conceição e Silva (Oiã), Herculano da Silva e Manuel Francisco Ferreira (Bustos), António Caiado e Armando Simões Gapo (Mamarrosa) e António dos Santos Barroco (Sobreiro).[20] As movimentações monárquicas organizadas a partir do norte de Espanha eram secundadas dentro do país e tinham ramificações na região da Bairrada, nomeadamente nos concelhos de Águeda e Oliveira do Bairro. Encarcerados em Aveiro até 6 de Outubro, seguiram no comboio da noite para Lisboa com escolta de 60 praças do Batalhão de Voluntários da República.[21]

Em 5 de Outubro de 1911, tempo de comemorações do 1.º aniversário da República, uma coluna de monárquicos comandada por Paiva Couceiro a partir de Espanha entra pela fronteira transmontana. Acabará por ser contida em Vinhais. António Duarte Sereno –  visconde de Bustos e chefe progressista do concelho de Oliveira do Bairro – e o seu empregado Manuel Ala viriam a ser acusados de conspirar contra o novo regime e foram imediatamente detidos. Na cada do visconde teriam sido encontrados “documentos valiosos” para a história da conspiração.[22]

Idêntica sorte tiveram os padres Joaquim Ferreira Maneta, de Oliveira do Bairro, João Francisco Moreira, residente na Palhaça e a paroquiar Mamarrosa e Francisco Massadas, natural de Fermentelos e a paroquiar Nariz, este último acusado de frequentar reuniões conspirativas em casa do padre Abel da Conceição da Silva, de Oiã..[23] Algum tempo depois viriam a ser libertados por se ter provado serem falsas as denúncias que os indicavam como conspiradores. Mas Manuel Ala e o padre Maneta, após detenção em Aveiro, não se livraram de seguir até Lisboa, para serem acareados com alguns presos do forte de Peniche.

Presos
MONÁRQUICOS DETIDOS NO CONVENTO DAS CARMELITAS EM AVEIRO (1911).

No chão: Herculano da Silva, José Carneiro da Silva (seminarista), Manoel Ferreira, Manoel Loureiro, António Peixoto. Sentados: Manuel de Matos Ala. Dr. Joaquim Carvalho, Joaquim Aguiar, Padre Maneta, Padre Francisco Massadas. Em Pé: Prior de Sangalhos, Dr. José de Barros, Prior de Penela, Albano Matos Ala, Armando Gapo, Visconde de Bustos, Dr. Soares Pinto, Padre Campos, Dr. Valente (médico), António Pinto.

No dia 14 de Fevereiro de 1913 o lugar de Bustos aparece envolto em nova polémica. Desta vez houve conflitos por ocasião do arrolamento da Capela de S. Lourenço. Os problemas com os inventários das igrejas surgiram depois da implantação da República um pouco por todo o lado e Bustos não foi excepção. Era quase inevitável que assim acontecesse, se atendermos às relações existentes, durante a Monarquia, entre a Igreja e o Estado. Antes de 1910 os párocos eram invariavelmente os presidentes das juntas de paróquia e era dos bens das paróquias que saía o dinheiro necessário às despesas do culto. Detinham enorme poder simbólico por serem ministros da religião, mas também por exibirem conhecimentos culturais muito acima dos que tinham as populações rurais escassamente alfabetizadas.

Com a revolução republicana tudo isso mudou. As novas autoridades desconfiavam por regra da transparência das contas públicas. O Estado declarou-se dono e senhor de todo o património da Igreja, acontecendo muitas vezes que “bens particulares foram incluídos no rol dos bens públicos. Objectos adquiridos pelos párocos, com os seus próprios rendimentos, ou que lhes haviam sido ofertados, podiam ser confundidos com a propriedade da igreja”. Ao procederem ao inventário, as novas comissões das juntas de paróquia, de boa ou má-fé, “poderiam integrar esses objectos no património da freguesia”.[24] Ora no caso de Bustos isso tornava-se ainda mais problemático, pois os bens arrolados poderiam deixa o lugar e seguir para a Mamarrosa, onde funcionava a sede da Junta.

Aparentemente, nos incidentes da capela de S. Lourenço a população não se mostrou hostil ao novo regime: ouviram-se mesmo vivas à República e à liberdade, enquanto duas mulheres empunhavam bandeiras nacionais. É de crer que este comportamento encontre explicação “no desejo de evitar que fossem confundidas as lutas pelos direitos à posse da capela com questões políticas, que, para os contestatários, seriam secundárias.[25]

Uma versão menos amistosa do que se passou em Bustos é-nos dada pelo jornal Bairrada Livre. Tudo terá acontecido por causa da revisão do inventário dos objectos de culto da capela daquele lugar. Uma vez constituída a associação cultual,[26] tais objectos deviam passar para a sua protecção. Marcaram presença em Bustos o administrador do concelho, o regedor, a junta de paróquia da Mamarrosa e a direcção da associação cultual. À cautela, para o que desse e viesse, estava também presente  uma força do Regimento de Cavalaria 8, de Aveiro.

Acta constituição da cultual Mamarrosa
Acta da constituição da cultual da Mamarrosa (24.12.1911)

À chegada da autoridade administrativa começaram a ouvir-se foguetes que eram atirados do interior dos quintais, o que logo foi entendido como um aviso e sinal de alarme. O povo começou a juntar-se em grande número à entrada da povoação, com o evidente propósito de impedir a transferência dos objectos de culto da capela para a comissão cultual.

Assim que as autoridades concelhias se abeiraram da capela, que ficava próxima da casa do Visconde, “viram sair da loja deste muitas pessoas, talvez mais de cem, armadas com paus e foices e munidas de bandeiras republicanas que deitavam por terra, como que a querer impedir que as autoridade avançassem”. Era o povo de Bustos a procurar evitar que se levasse por diante o auto de entrega, gritando que não lhe levassem os santos e as cruzes, pois via nisso uma evidente usurpação. Não aceitava que alguém viesse, em seu nome, “salvar” o recheio da capela. Uma espécie de sermão que ninguém encomendara e que deve ser visto como episódio de uma guerra latente entre católicos conservadores e republicanos radicais.

Entretanto uma mulher, empunhando uma vara comprida, “dispunha-se a tocar a rebate uma sineta da capela, o que não lhe foi permitido”. Juntava-se cada vez mais povo, não só de Bustos mas de povoações circunvizinhas. De tal modo que para evitar tumultos o administrador do concelho resolveu mandar retirar a força do local, embora, por precaução, tenha requisitado outra mais numerosa. O Visconde, que entretanto fechara as portas do seu estabelecimento quando os tumultos aumentaram, colocou-se nas varandas do primeiro andar e daí continuou a incitar à resistência contra as autoridades. Quando estas retiraram, terá visto nisso uma prova de fraqueza. Saiu da varanda e foi colocar-se junto das grades do jardim, “acompanhado da esposa e criados, rindo-se muito e continuando a fazer sinais para que o povo continuasse a fazer arruaças atrás da força quando esta retirava”.[27]

A força retirou para o Sobreiro, onde acabariam também por comparecer o governador civil e os cidadãos Rui Cunha e Costa,[28] Elísio Feio e o pároco de Esgueira. Só foi possível proceder à revisão e entrega dos objectos de culto quando estas pessoas, acompanhadas agora pelas duas forças do Regimento de Cavalaria, chegaram à capela. Não houve incidentes mas o povo continuou a protestar. Segundo o correspondente do jornal, apenas porque tinha “uma compreensão errada das coisas”, o que o levava a opor-se a “um acto absolutamente legal”.

Como havia fundadas suspeitas de que o instigador do motim tinha sido o visconde de Bustos, não só pela preponderância que exercia “entre as classes ignorantes e fanáticas daquela região”, como pelo facto de ser da casa dele que saiu o grupo mais aguerrido, foi aquele titular preso e remetido para Aveiro”. Seria posto em liberdade poucos dias depois,[29] por se ter reconhecido que nenhuma participação tivera nos acontecimentos.[30]

O visconde e os republicanos de Bustos continuaram de candeias às avessas nos anos seguintes. Em Abril de 1920, O Farol da Liberdade, que se publicava na Quinta Nova e tinha como director Augusto Simões da Costa, acusa-o de faltar à palavra dada e não honrar um compromisso assumido com o povo da terra. António Duarte Sereno teria prometido “um relógio que a todos servisse de guia”, a colocar na torre sineira se os bustuenses conseguissem angariar fundos para a sua conclusão.

O povo encheu-se de brios e a torre foi erguida na capela do lugar. A promessa do visconde, um relógio com mostrador, essa é que tardava a cumprir-se. Tudo indica que prometeu o relógio convencido que os republicanos de Bustos – sobretudo os mais radicais – nunca dariam dinheiro para a construção da torre. Se assim foi, enganou-se redondamente. E para fugir ao compromisso e ladear a impaciência da população, ia dizendo que relógio como o que prometera só havia na Suíça e que o problema era o transporte para Portugal. Alguém lhe recordou que poderia comprá-lo em Nelas. E não se livrou da troça dos seus conterrâneos, que chegaram a pintar na torre da capela um simulacro do prometido exemplar.[31]

Voltemos a 1913. Gabriel Duarte Martins, pároco da Mamarrosa, era tido pelos republicanos como “grande reaccionário” a quem todos os meios serviam para ferir a República. Quando, no dia 19 de Abril, um grupo de indivíduos, capitaneados por dois acólitos seus, assaltaram António Rodrigues Capucho – o tesoureiro da direcção da cultual – e lhe retiraram as chaves da igreja, as culpas foram endossadas por inteiro ao padre da freguesia. Havendo o perigo de no dia seguinte, que era domingo, ocorrerem graves tumultos, foi requisitada uma força de Cavalaria 8. Os receios eram fundados: a excitação chegou ao ponto de “serem disparados tiros de uma parte e doutra, uns contra as janelas do presidente da direcção da cultual, outros contra as da residência do pároco”.[32]

O padre Gabriel Martins e o padre João Francisco Moreira,[33] que também fora prior da Mamarrosa e a quem os republicanos chamavam, depreciativamente, o João das barracas,[34] viriam a ser castigados por desacato à Lei de Separação. Ambos foram proibidos de residir no concelho de Oliveira do Bairro durante o prazo de 6 meses.[35]

Para os republicanos o padre da Mamarrosa era considerado um elemento perigoso. A ele se ficava a dever a “grande excitação de ânimos” que trazia sobressaltados os habitantes da freguesia. A mãozinha do visconde de Bustos também não era esquecida em tempo de confrontações: “todas as vezes que se comete algum desacato não está na terra, tendo saído pouco antes e regressado pouco depois”.[36]

Em 14 de Dezembro de 1913, na mesma data em que Anadia presta homenagem popular ao conselheiro José Luciano de Castro, decorrem novas eleições paroquiais. Por essa altura as juntas de paróquia viam os seus poderes reforçados, considerando-se entre as atribuições mais importantes a possibilidade do referendo de que dependiam várias deliberações das câmaras municipais.

No concelho de Oliveira do Bairro a oposição monárquico-evolucionista supunha ter ganho a câmara e com natural regozijo resolveu queimar muitas dúzias de foguetes. Manifestações “tolas e provocantes” – retorquiam os republicanos democráticos – que acabariam por ver confirmada uma vereação constituída só por elementos da sua cor política.[37] Mas o triunfo da lista onde pontificavam, entre outros, Abílio de Oliveira Rocha e Jacinto Simões dos Louros seria efémero, já que em Abril de 1914, na sequência da contestação aos resultados eleitorais, tomava posse nova vereação dirigida por António Tavares de Araújo e Castro, em cumprimento de acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.[38] O Supremo validara a eleição da “lista neutra” e o ressentimento dos derrotados era notório: acusaram o tribunal de parcialidade, já que “uma das partes conseguiu saber, algumas semanas antes de publicada a sua decisão, o sentido em que esta seria tomada”.[39]

Na Junta de Paróquia da Mamarrosa os democráticos ficaram em minoria. Apesar da eleição decorrer sem incidentes – para os prevenir, conservou-se a pequena distância da assembleia uma força de infantaria – acabou por ser protestada por alegadas irregularidades atribuídas à lista vencedora. Esta era acusada de incluir um indivíduo que já havia estado preso por conspirar contra a República e outro que exercera o cargo de tesoureiro na anterior junta monárquica, salientando-se “pelas suas tremendas irregularidades e acintosas perseguições aos republicanos”.[40]

O protesto não foi acolhido e a posse da nova vereação foi assinalada com rijos e provocatórios festejos, no dizer da imprensa republicana. Os talassas de Bustos e Mamarrosa vieram para a rua, “alguns de espingarda ao ombro, em provocantes manifestações”. Em Bustos tocou uma filarmónica e foram lançados pelo próprio Visconde “muitos aeróstatos azuis e brancos [simbolizando as cores da bandeira monárquica] contendo diatribes contra os republicanos”. A festança seria interrompida por volta da meia noite. Quando “o fogo de dinamite atroava os ares”, apareceu inesperadamente no local uma força de cavalaria 8 e logo os manifestantes se puseram em debandada, dando por findo o “talássico regabofe”. Ao que parece o governador civil tinha proibido as manifestações fora da sede do concelho, ordem essa desrespeitada pela “petulância dos monárquicos”.[41] Dizia-se que os foguetes de dinamite eram “velhacamente lançados” para as habitações dos democráticos e que à porta destes tinham sido depositados molhos de vimes para lhes atar a beiça.[42]

Em Oliveira do Bairro também houve incidentes. Os desacatos foram de tal ordem que a força armada teve de intervir, efectuando prisões e apreendendo armas. Na Mamarrosa, o abastado proprietário Manuel Gala foi importunado por elementos afectos à coligação monárquico-evolucionista: fizeram arruaças junto à casa, “provocando-o e hostilizando-o”, ao que parece pelo comezinho facto de ter aderido ao Partido Democrático.[43] A população era alvo dos “maiores vandalismos”, atribuídos a desavenças políticas, que incluíam destruição de telhados, corte de cepas e oliveiras e até roupa danificada que se encontrava a secar no coradouro.[44] Era grande o descontentamento no concelho, ao ponto da freguesia do Troviscal, fazendo eco duma velha aspiração, querer passar para o concelho de Anadia e a de Palhaça para o concelho de Aveiro, ao qual aliás já pertencera na segunda metade do século XIX.

Ilustração
Ilustração de Stuart Carvalhais em O ZÉ, 09.05.1911

Era este o ambiente que pairava no ar e se generalizara por todo o concelho: cortavam-se os fios de telégrafo entre Oliveira do Bairro e a Palhaça; degolavam-se videiras e devastavam-se searas; praticavam-se crimes de fogo posto e nem um busto da República que encimava o pedestal do chafariz da Mamarrosa resistiu à senha persecutória dos que agiam pela calada da noite, mutilando as tenras árvores que o circundavam e que tinham sido plantadas pelas crianças da escola no dia da Festa Nacional da Árvore.[45]

Manuel dos Santos Pato falava em “estendal de misérias” perpetradas por “monarquetes estúpidos”, em crimes impunes e excessiva benevolência ou mesmo desleixo das autoridades. Acusava os “inimigos figadais” dos melhoramentos da Mamarrosa, que se melindravam com a festiva comemoração do 5 de Outubro, de terem assassinado a tiros de espingarda “o desventurado republicano Oliveira Ambrósio” e atentarem da forma mais covarde contra a vida dos democratas Augusto Simões dos Louros e João dos Santos Pato.[46]

Tais actos seriam obra dos monárquicos, acobertados ”à sombra da bandeira do partido evolucionista” e dos “maus padres que pululam neste concelho”.[47] O republicano Manuel dos Santos Pato diria mesmo que “estas selvajarias se não podem atribuir a autênticos e leais republicanos, quer sejam democráticos, evolucionistas, unionistas ou sem filiação partidária”, mas sim a “abjectas criaturas, não só inimigas figadais da República como do progresso e do sossego da freguesia da Mamarrosa”.[48]

Contra esta visão que atribuía tais malfeitorias em exclusivo aos monárquicos e tinha como únicos prejudicados os republicanos democráticos, insurgia-se o padre Gabriel Duarte Martins, com textos publicados no órgão evolucionista de Águeda [Povo de Águeda]. Alguma razão assistia ao pároco da Mamarrosa, como viria a reconhecer, com a dignidade e o aprumo cívico que o caracterizavam, Manuel dos Santos Pato, quando teve conhecimento dos tiros disparados contra as janelas da residência do padre Gabriel, da “carga de pau” aplicada pelos democráticos no cidadão Manuel Carriço, ou até da atitude desrespeitosa dos republicanos democráticos, quando a 5 de Outubro de 1913, no momento em que saía o préstito religioso, “desfraldaram a bandeira nacional soltando vivas à República e abaixos à Reacção”.[49] Aos anticlericais causava engulho o facto de ser posta na rua uma procissão precisamente no dia do aniversário da proclamação da República.

Resta acrescentar que após três anos de República, as eleições para as Câmaras Municipais e Juntas de Paróquia fecharam um ciclo em que se “normalizou” a situação irregular de todas as comissões paroquiais, municipais e distritais de nomeação revolucionária. A forma como estavam organizadas, sem consulta popular, não correspondia ao “espírito democrático das instituições republicanas”, assumindo características de corpos administrativos de “nomeação ditatorial”. E porquê só três anos depois se repôs o tal espírito democrático? Porque, para os republicanos, era necessário salvaguardar as instituições “das influências eleitorais dos caciques monárquicos”, uma vez que “apenas nos centros urbanos Portugal estava republicanizado”. Na província o número de analfabetos era “pavoroso”, grassava o indiferentismo político e muita gente associava a palavra República a anarquia e por isso lhe fazia viva oposição.[50]

Para 5 de Novembro de 1916, portanto em plena crise da guerra, estavam previstas novas eleições administrativas para câmaras e juntas de freguesia, que entretanto viriam a ser estrategicamente adiadas. Os republicanos falavam em “manejos monárquicos” e diziam que se tramava um movimento revolucionário para a data das eleições. Esse suposto movimento eclodiria a 13 Dezembro, liderado por Machado Santos com apoio das tropas de Tomar. Os monárquicos alegavam que o adiamento das eleições se devia ao receio que os republicanos tinham de as perder. A sensibilidade andava à flor da pele. A simples intenção dos monárquicos quererem disputar eleições administrativas no tempo da União Sagrada era, aos olhos dos republicanos, considerada uma verdadeira traição.[51]

Os republicanos invocavam a Lei de 1 de Junho de 1915, publicada logo após a queda do governo de Pimenta de Castro. A lei preceituava que, havendo acordo entre os partidos, não havia necessidade de eleições. Os opositores do Partido Democrático é que não estavam pelos ajustes: apesar de integrarem o governo da União Sagrada, os evolucionistas aliaram-se em muitos concelhos aos unionistas – que tinham ficado de fora – e aos monárquicos. Salvo raras excepções – diziam os democráticos – os unionistas e os evolucionistas, mancomunados com os monárquicos, não podiam ser considerados verdadeiros republicanos. Essa aliança espúria em vários concelhos tinha como principal objectivo “guerrear o Partido Republicano Português”.[52]

Alguns dos candidatos indigitados nessas listas eram vistos pelos democráticos como dos mais ferozes inimigos da República. Na Mamarrosa, por exemplo, eram badalados para vereadores os nomes de Armando Gapo e Manuel de Matos Ala. O primeiro era um “antigo galopim às ordens de António Sereno” que tinha estado preso como conspirador e desempenhara o cargo de regedor durante a ditadura pimentista; o segundo era conhecido caixeiro do ex-visconde de Bustos, também tinha sido preso e respondera no Tribunal marcial de Coimbra como “cúmplice no arrombamento da ponte do Pano, por meio de dinamite”. Era também o “consagrado autor do hino restauracionista”, cuja letra rematava do seguinte modo: “Assim que tivermos rei posto/saudaremos Paiva Couceiro”.[53]

Apesar de se encontrarem suspensas as garantias individuais e ter sido declarado o estado de sítio em 13 de Dezembro de 1916, na sequência da tentativa de golpe liderada por Machado Santos, os monárquicos da Mamarrosa, armados de varapaus e espingardas, eram acusados de, na noite de 1 para 2 de Janeiro de 1917, insultar os republicanos e soltar “avinhados vivas à monarquia”. O instigador-mor era mais uma vez Armando Simões Gapo, “ridículo galopim às ordens do chefe monárquico Sereno de Bustos”.[54] As eleições para as Câmaras Municipais e Juntas Gerais de Distrito só tiveram lugar a 4 de Novembro de 1917, um ano depois da data prevista.

Em Oliveira do Bairro ganharam os evolucionistas, ficando os democráticos em minoria. À margem deste ambiente toldado por conflitos permanentes e desunião generalizada, numa altura em que a fome bate à porta de muitos lares e a guerra rouba os braços que fazem falta à agricultura, enquanto as mães choravam a partida dos filhos para os campos de batalha havia quem trabalhasse com afinco na criação duma paróquia civil em Bustos.

Pode afirmar-se com a segurança que as fontes escritas conferem – neste caso a imprensa da época – que a questão da desanexação de Bustos da freguesia-mãe já era discutida em 1915. Prova-o uma “Carta da Mamarrosa” da autoria de Manuel dos Santos Pato, datada de 29 de Dezembro de 1915. Ao ter conhecimento que a Junta de Paróquia da Mamarrosa tinha referendado uma iniciativa da Câmara para que os impostos aumentassem 15% (votaram contra esse agravamento as Juntas democráticas de Oiã e do Troviscal e a favor as de Palhaça, Oliveira do Bairro e Mamarrosa) o futuro redactor e director do Alma Popular considerava tratar-se de uma verdadeira extorsão de dinheiro ao povo, que tão necessário era para prover as suas necessidades quotidianas.

A mesma Junta deliberara também contrair um empréstimo de cinco contos, destinado à construção de uma ou duas casas de escola em Bustos. Constava até, na altura, que parte dessa verba poderia vir a ser desviada para a construção de uma torre, pertença de um particular (seria o visconde de Bustos?) na qual estaria a ser utilizado trabalho braçal da Junta da Mamarrosa ou mesmo da Câmara.

A parte verdadeiramente curiosa desta notícia vem logo a seguir: a consumarem-se essas medidas, o povo teria de contribuir durante muitos anos com elevadíssimas quantias para pagamento dos juros e amortização da dívida contraída. Sustentava Manuel dos Santos Pato que a situação se agravaria se viesse a dar-se o caso de, “brevemente, ser criada uma paróquia civil em Bustos”, o que para ele seria fácil. O raciocínio era simples: logo que Bustos conseguisse a separação, quem teria de pagar os cinco contos e respectivos juros seria o ramo da Mamarrosa, unicamente. Não era por falta de amor à sua terra que Manuel dos Santos Pato parecia discordar da criação das casas da escola em Bustos: era por respeito ao povo da Mamarrosa, discordando que no futuro viesse a suportar sozinho todas as despesas. Por isso dizia estar-se perante “uma situação iníqua e vexatória”.[55]

O núcleo duro que trabalhava na desanexação era constituído por republicanos democráticos. Apesar da oposição declarada do Visconde, consideravam tratar-se de uma medida justa. Bustos era um lugar com importância suficiente para ter direito à independência. Entregaram para esse fim um abaixo assinado com muitas assinaturas ao deputado pelo círculo de Aveiro – Dr. Marques da Costa – que deveria apresentar com brevidade o projecto no Parlamento. Os republicanos da Mamarrosa, talvez por solidariedade política, não deixavam de aplaudir a iniciativa: “Pôr-se-ia assim um dique às antigas rixas pessoais e políticas tão frequentes entre os dois povos”.[56] Se tudo corresse de feição, Bustos teria a almejada autonomia e a Mamarrosa, embora freguesia pequena em território e de escassa população, ficaria com a certeza de que os seus rendimentos paroquiais jamais seriam desviados para outros fins por mãos menos escrupulosas.

Também se projectava para o lugar da Quinta Nova, em 1916, uma estação telégrafo-postal. A dinamização da iniciativa pertencia à comissão política do Partido Republicano Português, já que a Câmara e a Junta de Freguesia da Mamarrosa permaneciam “no mais condenável indiferentismo e letargia”.[57] Trabalhava-se em várias frentes para a dignificação e o progresso de Bustos. Tudo numa altura em que uma nova lei passava a designar por Juntas de Freguesia as corporações administrativas que até essa data se chamavam Juntas de Paróquia. Essa lei foi publicada no Diário do Governo de 23 de Junho de 1916 e contém grandes alterações aos códigos administrativos então em vigor.

Em 1917 o problema da separação continuava na ordem do dia. Anunciava-se para 26 de Agosto um referendo para desanexar da Mamarrosa o ramo de Bustos. Era uma aspiração “de há muitos anos” que ao povo da Mamarrosa “não desagrada”.[58] O resultado do referendo mostrou-se favorável à constituição da nova paróquia civil: “Não houve oposição, e na urna entraram 125 listas”[59].

CorrespondênciaÀ data em que o referendo teve lugar vigorava o Código Eleitoral de 1913 que restringia drasticamente o direito de voto. Excluía todas as mulheres, todos os analfabetos e ainda as forças militares e militarizadas. A taxa de analfabetismo rondava então os 70%, o que significa que em meios rurais como eram Mamarrosa e Bustos seria ainda mais elevada. Pode assim concluir-se que a população recenseável se quedaria por valores irrisórios, quando comparados com um verdadeiro sufrágio universal. Teria o resultado sido o mesmo se toda a população pudesse votar? Quando Bairrada Livre refere que no referendo não houve oposição o que é que isso significa? Que toda a gente estava de acordo com a desanexação, incluindo o Visconde e os seus inúmeros acólitos monárquicos? E as 125 listas (votos) que percentagem representam no total da freguesia da Mamarrosa? A resposta a estas questões pode ajudar a encontrar a chave explicativa para as dúvidas que ainda subsistem: entre o resultado do referendo e o memorável dia 18 de Fevereiro de 1920 medeiam mais dois anos e meio. Porquê? Tempo necessário para remover os muitos escolhos que se atravessaram no caminho? Se sim, que obstáculos intransponíveis eram esses?

Ao que parece Jacinto dos Louros dava em 1918 a independência como um dado adquirido. Que indicações seguras lhe permitiam afirmar isso? Mau grado estas interrogações, o resultado do referendo deu a Bustos uma vantagem imediata: logo após o referendo os dois ramos passaram a ter tesoureiros autónomos e as sessões da Junta também passaram a realizar-se em Bustos.[60]

Em Janeiro de 1920 o jornal Gente Nova, órgão e porta-voz da Plêiade Bairradina, anuncia a criação da freguesia de Bustos e elogia os esforços empreendidos pelo deputado Dr. Costa Ferreira, de Oliveira do Bairro. A área da nova freguesia foi destacada da área da Mamarrosa, reconhecendo-se “a separação moral dos dois povos entre os quais parecia desde há muito haver uma acentuada rivalidade”.[61] A Lei n.º 942, de 18 de Fevereiro de 1920, consagrou legalmente a freguesia e a data passou a ser festejada como o “dia” de Bustos.

Criação da freguesia de Bustos

Para 9 de Maio de 1920 foram marcadas eleições para as novas Juntas de Freguesia de Bustos e da Mamarrosa. Uma semana antes do acto eleitoral já se dava como praticamente adquirido que não haveria oposição às listas apresentadas pelo Partido Republicano.[62] E assim viria a acontecer. Na Mamarrosa os monárquicos e seus aliados, entre os quais se incluíam republicanos conservadores, ainda tentaram entrar na contenda contra os democráticos mas acabariam por desistir à boca das urnas. Em Bustos não houve oposição aos candidatos apresentados pelo Partido Republicano. Ao concorrerem à Junta pessoas que tiveram um papel relevante na desanexação de Bustos da Mamarrosa, dificilmente o resultado poderia ser outro. A euforia da “independência” ainda transbordava de muitos corações e o povo não poderia dar o seu voto a outros que não os republicanos democráticos. Até porque sabia bem quem na sombra tinha manobrado para que a separação não se desse.

Eleições

Para a história fica a constituição dessa primeira Junta: Jacinto Simões dos Louros, Duarte Nunes Cipriano, Manuel Francisco Domingues Júnior, Manuel dos Santos Rosário e Manuel da Silva Novo (efectivos); Diamantino da Silva Tarrafo, Daniel Francisco Rei, Manuel Nunes Mota, Artur Baptista e Sebastião Granjeia Martins (substitutos).[63]

JuntaEstava escrita uma página de ouro da história de Bustos. Jacinto dos Louros e Manuel dos Santos Pato ganharam o direito a inscrever o seu nome na galeria dos notáveis da freguesia. Homens que são hoje ouro de lei para os seus conterrâneos, que deles receberam e beberam o exemplo do amor à terra e o apego à memória do berço.

(Texto inserido em Proclamação da República – de Lisboa a Oliveira do Bairro, Edição de Belino Costa, Lisboa, 2010, pp. 75-91, no âmbito das comemorações do centenário da I República Portuguesa).


 

[1] O Nauta, n.º 193, 16.07.1908. O seu director e proprietário era o ajudante de farmácia Procópio de Oliveira.

[2] Ecos do Vouga, n.º 104, 01.10.1910, p. 1.

[3] O Nauta, n.º 194, 23.07.1908, p 3. É a partir desta data que o jornal passa a publicar notícias da Bairrada, mas ocupando-se principalmente do concelho de Oliveira do Bairro, ode o seu director tinha amigos e se deslocava com frequência.

[4] Vitalidade, n.º 713, 12.12.1908, p. 3.  O jornal era dirigido por Acácio Vieira da Rosa (1871-1955), conhecido jornalista aveirense durante os últimos anos da Monarquia,  amigo íntimo de monárquicos como Jaime de Magalhães Lima e Luís de Magalhães.

[5] O Nauta, n.º 216, 07.01.1909.

[6] Idem, n.º 200, 03.09.1908.

[7] Idem, n.º 300, 13.10.1910.

[8] Idem, n.º 305, 03.11.1910.

[9] O Ideal, n.º 89, 19.11.1910, p. 3.

[10] O Democrata, 25.11.1910. Ver também O Nauta, n.º 307, 01.12.1910.

[11] Albano Coutinho nasceu em Lisboa em 5 de Dezembro de 1848. Iniciou-se no jornalismo aos 18 anos, escrevendo folhetins na Gazeta de Portugal. Em 1872 fez a sua profissão de fé política na República Portuguesa, que se publicava em Coimbra. Colaborou depois na Democracia. Foi um dos signatários do primeiro manifesto que precedeu a fundação do Centro de Lisboa (1876). Para mais dados biográficos ver Jornal da Bairrada, n.º 285, 07.04.1962).

[12] “Comício em Bustos”, O Ideal, n.º 105, 11.03.1911, p. 3.

[13] Manuel Homem de Melo da Câmara (1866-1953), 1.º conde de Águeda, formado em Direito, grande proprietário e jornalista. Foi governador civil de Aveiro (1906 e 1908-1910), sucedendo a seu pai Albano de Melo Ribeiro Pinto, e deputado progressista. No período republicano foi senador monárquico durante o sidonismo (1918) e Presidente da Câmara Municipal de Águeda (1923-1925). Ver Fernando  Moreira (Organização, Introdução e Notas), José Luciano de Castro. Correspondência Política (1858-1911), Lisboa, Quetzal Editores, 1998, p. 568, nota 25.

[14] Fernando Farelo Lopes, Poder Político e Caciquismo na 1.ª República Portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, pp. 43 e 45.

[15] Idem, p. 41.

[16] João Chagas, citado por Luís Vidigal, Cidadania, Caciquismo e Poder, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 63. Basílio Teles, seguindo o mesmo raciocínio, acrescentava que um regime republicano «só os genuínos republicanos são ca­pazes de defender, garantir e honrar; a interferência nele de monárquicos, de supostos con­versos ao novo credo, não faria mais do que inquiná-lo». Idem, ibidem.

[17] Basílio Teles, As Ditaduras. O Regime Revolucionário, Coimbra, Atlântida, 1975, p. 24.

[18] “Os falsos republicanos”, O Ideal, n.º 120, 23.06.1911, p. 3.

[19] João Chagas, Cartas Políticas, segundo Luís Vidigal, obra cit., p. 65.

[20] Campeão das Províncias, n.º 6129, 17.01.1912, p. 1; idem, n.º 6238, 19.02.1913, p. 1.

[21] Idem, n.º 6101, 07.10.1911, p. 1. Além de padre Abel, entre os detidos contavam-se padres António Seabra da Mota e Manuel José Ferreira (Anadia); António Morais da Silva Gaio (Mealhada); José Augusto de Sousa Maia (Oliveira do Bairro); Maria Rosa de Jesus, Umbelina Rita de Jesus e o tipógrafo João da Silva Pereira (Oiã); António Rodrigues de Carvalho, Manuel Luís Pereira, Albino Nogueira, Fernando Ruela Cândido, padre Manuel Lourenço Júnior, Manuel Ferreira Rolo, Augusto Ribeiro,, sargento Manuel Ferreira Nogueira, Manuel Rodrigues Sereno, Alberto António Henriques, Dr. Joaquim Carvalho e Silva, Guilherme Ribeiro Guerra, Dr. Fernão Côrte-Real da Fonseca, padre Óscar de Aguiar, Manuel Henriques Rosado e António da Silva Brinco (Águeda). O destino dos detidos era o forte de Caxias, mas alguns transitaram posteriormente para o Limoeiro.

[22] Idem, n.º 6103, 14.10.1911, p. 1.

[23] O Ideal, n.º 136, 14.10.1911, p. 3; O Democrata, n.º 191, 13.10.1911, p. 4.

[24] Maria Lúcia de Brito Moura, A Guerra Religiosa na Primeira República, Lisboa, Editorial Notícias, 2004 [1.ª Edição], p. 295.

[25] Idem, p. 305.

[26]As associações cultuais eram “corporações laicas a quem incumbia a administração dos bens retirados à propriedade da Igreja, bem como da própria vida religiosa das paróquias, cabendo-lhes, por exemplo, regular os emolumentos ou benesses a oferecer aos eclesiásticos pelos fiéis, a nomeação de sacristães, gerir as Igrejas ou residências eclesiásticas, etc. Para cúmulo, vedava-se aos eclesiásticos a participação na administração e direcção das cultuais” (Manuel Braga da Cruz, As Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo, Lisboa, Editorial Presença, 1980, p. 249, nota 15).

[27] “Carta de Oliveira do Bairro”, Bairrada Livre, n.º 207, 19.12.1914, p. 3.

[28] Rui da Cunha e Costa era solicitador encartado e tratava de assuntos forenses, comerciais e civis. Tinha escritório aberto na Rua de Manuel Firmino, n.º 5, em Aveiro.

[29] Bairrada Livre, n.º 112, 22.02.1913, p. 2.

[30] Campeão das Províncias, n.º 6238, 19.02.1913, p. 1.

[31] O Farol da Liberdade, n.º 7, Abril de 1920. Agradeço a Arsénio Mota a indicação desta notícia.

[32] “Os acontecimentos da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 121, 26.04.1913, p. 2.

[33] João Francisco Moreira foi pároco na Palhaça de 1894 a 1905. Ver José Martins Belinquete, “Alguns aspectos da vida religiosa da freguesia da Palhaça ao longo da sua história”, in Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua Monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, p. 37. Em 1910 era prior da Mamarrosa. Esteve preso por suposto envolvimento nas incursões monárquicas que tentaram derrubar a República. Libertado em 1912, abandonou a Mamarrosa e veio de novo residir para a Palhaça.

[34] O Democrata, 23.12.1910.

[35] Bairrada Livre, n.º 157, 03.01.1914, p. 1.

[36] Bairrada Livre, n.º 128, 14.06.1913, p. 2.

[37] Bairrada Livre, n.º 158, 10.01.1914.

[38] Armor Pires Mota, Oliveira do Bairro. Em Busca da História Perdida, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 1997, pp. 37-38.

[39] Bairrada Livre, n.º 196, 28.03.1914, p. 1.

[40] Idem, n. 155, 20.12.1913, p. 3.

[41] Idem, n.º 173, 25.04.1914, p. 3.

[42] Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 189, 15.08.1914, p. 2.

[43] Idem, ibidem.

[44] Idem, n.º 172, 18.04.1914, p. 3.

[45] Gomes Júnior, “Cartas de Perto”, Bairrada Livre, n.º 175, 09.05.1914, p. 3; Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 189, 15.08.1914, p. 2.

[46] “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 199, 24.10.1914, p. 3.

[47] Bairrada Livre, nº 176, 16.05.1914, p. 3.

[48] Manuel dos Santos Pato, “Uma carta”, Bairrada Livre, n.º 179, 06.05.1914, p. 2. Esta carta foi também endereçada à redacção do Povo de Águeda.

[49] Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 189, 15.08.1914, p. 2.

[50] “Impressões políticas”, Bairrada Livre, n.º 156, 27.12.1913, p. 1.

[51] Bairrada Livre, n.º 303, 14.10.1916, p. 1.

[52] “A eleição de amanhã”, Bairrada Livre, n.º 306, 04.11.1916, p. 2.

[53] “Em Oliveira do Bairro”, idem, ibidem.

[54] “Monárquicos à solta”, idem, n.º 316, 13.01.1917, p. 2.

[55]  Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa. Verdades amargas” ( 29.11.1915), Bairrada Livre, n.º 261, 01.01.1916, pp. 1-2.

[56] Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 278, 29.04.1916, p. 2.

[57] Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 280, 13.05.1916, p. 3.

[58] Bairrada Livre, n.º 346, 11.08.1917, p. 3.

[59] Idem, 01.09.1917. Agradeço a Belino Costa a cedência desta notícia sobre o resultado do referendo.

[60] Agradeço a Belino Costa a disponibilização destas informações.

[61] Gente Nova, Ano I, n.º 34, 31.01.1920.

[62] Alma Popular, n.º 41, 01.05.1920.

[63] Idem, n.º 42, 15.09.1920. Em 1907 Jacinto dos Louros era o representante em Bustos das afamadas bicicletas marca “Swift” (O Nauta, n.º 148, 22.08.1907, p. 2).

Memória de António Capão (1930-2012)

António CapãoAcaba de desaparecer do nosso convívio um dos nomes mais respeitados no panorama cultural bairradino e na própria região de Aveiro. Nunca o tive como professor, mas quem foi tocado por esse dom costuma resumir o seu labor em duas ou três palavras: dedicação, honestidade e competência. Ingredientes que se refletem na obra de quem sempre permaneceu fiel ao chão que o viu nascer. Inestimável património que nos legou e que continua à espera de quem o valorize como merece. Lendo-o, acarinhando-o e discutindo-o como contributo vivo que é.

António Capão conhecia de sobejo a vida dura do povo da sua aldeia: “O antes foi pobre, foi triste e apagado; a nossa geração foi uma geração de sacrificados, de idealistas e de lutadores por alguma coisa nova, fosse o que fosse”(1).  Mas essa aldeia, como tantas outras, para quem está atento e não lança sobre ela o olhar superficial e tantas vezes sobranceiro, é um inesgotável reservatório de lendas e velhas tradições, onde a harmonia com a mãe natureza humaniza as relações de quem não vive ainda sufocado pelos ditames da razão técnica. Pela Palhaça nutria um amor entranhado, profundo e orgânico. Entre outros assinaláveis serviços, está indelevelmente ligado à investigação histórica da sua terra, de que foi, conjuntamente com Manuel Simões Alberto, um dos cabouqueiros e um extremado guardião dos seus valores e das suas gentes.

Nasceu, viveu e foi influenciado por um tempo que praticamente já não existe. Tempo de outra convivência social, de diferentes formas de religiosidade. De curandeiros, mezinhas e superstições. Da chiadeira dos carros de bois e do trabalho árduo nas terras de pão. Dos crimes por causa dos marcos na disputa por um palmo de terra. Das tecedeiras e dos teares, das atafonas e das azenhas, das tremoceiras, tanoeiros, ferradores e moleiros. Dos fornos de cal. Da rega dos campos, com a nora a gemer vergada ao peso dos alcatruzes. Dos pipos cheios e do cheiro a mosto nas adegas. Tempo também de usos e costumes que ajudavam a sacudir o marasmo de um ambiente puramente rural: a “serração da velha”, os bailes da “mi-careme”, a prova do vinho novo a onze de novembro, pelo S. Martinho, a festa do galo, o folar da Páscoa, a massa a levedar na gamela, a cruz na massa para proteger do mau olhado, a broa a sair do forno, a lareira a crepitar amornando corpos e  almas.

De muitas destas coisas me falou o Dr. Capão nas três únicas mas demoradas visitas que fiz a sua casa, a partir de 2003. E também falou de raspão sobre coleções de moedas, conchas marinhas e selos que eu trocava com o filho José Armando, na camioneta da carreira que nos conduzia até Aveiro. Muitas tradições populares e levantamentos etnográficos e linguísticos foram por ele amorosamente registados para memória futura, para que todo esse rico património não se esboroasse.

Alguns desses trabalhos ajudam a manter ou a recriar o espírito do lugar, a sua atmosfera própria e a história das suas gentes. Para dar alguns exemplos, e só no que diz respeito à terra que o viu nascer, basta citar o extenso texto “Memórias da Palhaça”, (2) o jogo do Bichoiro, que praticou em menino e posteriormente registou por lhe reconhecer “grande valor sob o ponto de vista da motricidade, da destreza e da habilidade”(3). Ou os costumes familiares do seu tempo, em que os pais, para lá das orações, ensinavam às crianças as primeiras habilidades de apreensão mais fácil (4). Ou ainda o minucioso estudo elaborado a partir do manuscrito sobre o Auto dos Reis Magos, que Manuel Simões da Silva (Manuel Tomé) em boa hora registou. Sobre o cortejo dos Reis, espetáculo fortemente entranhado na cultura popular local e que se realizou pela primeira vez na freguesia da Palhaça em 6 de janeiro de 1925 (5)  diria António Capão: “Não perde a terra a originalidade se os seus usos, costumes e tradições forem publicadas, antes ganha, pois que passa a ser mais conhecida”(6).

Para lá da Palhaça, António Capão também fez incidir as suas preocupações filológicas, etnográficas e históricas no concelho de Oliveira do Bairro, a quem dedicou a Carta de Foral, um estudo das leis antigas de outorga de direitos e deveres, bem como um Roteiro Religioso e Cultural onde desfilam as relíquias que a população do concelho acarinha (igrejas, imagens icónicas, capelas públicas e particulares, ermidas, alminhas e cruzeiros).

Roteiro

À região dos pâmpanos dedicou Relance histórico-linguístico sobre a região da Bairrada – Influências Arábicas, onde procura mostrar que os árabes e a cultura muçulmana deixaram marcas no território e no vocabulário do nosso quotidiano, um legado que continua vivo. Deu também à estampa Os Moinhos da nossa Região. Sua vida e decadência, um meticuloso trabalho de campo sobre os instrumento e maquinismos de moagem dos cereais, muitos deles praticamente desativados ou em ruina lenta apesar da importante função social que cumpriram em tempos mais recuados. Sendo uma revisitação da infância e um marco na memória coletiva, o livro é também “um belo poema com que a Bairrada poderá, desde agora, adornar-se, como se de mais uma joia o seu dote fosse acrescido”(7).

Ao distrito de Aveiro, em cuja cidade exerceu funções docentes e chegou a residir quando regressou de Moçambique, ofereceu Relíquias da Tecelagem, estudo de  etnografia de uma atividade artesanal com os dias contados. Havia quem chegasse a demorar dias para pôr um tear a funcionar, o que levava os antigos a dizer que um tear aparelhado é como um burro albardado.

MoinhosPublicou também Cultura Popular em Terras de Aveiro (Etnografia e Literatura), onde disserta sobre literatura e cultura popular, aborda os trabalhos agrícolas, dá conta dos processos de moagem, explica os meios de transporte na atividade do campo, analisa os divertimentos, costumes e crendices da população. Fá-lo com a vantagem de quem parte para a investigação “de bornal já bastante bem aviado, porque nascido com as mãos na eira, com os pés no quintal, com os olhos nos moinhos, nas atafonas, em tanta coisa [pois] não admira que alguém o vá encontrar ainda hoje com as mãos na eira a debulhar uns feijões, com os pés nas árvores a chegar a fruta, com a enxada na mão a guiar a água”(8).

Num tempo em que as elites de um Portugal acentuadamente rural manifestavam indiferença ou até desprezo pelas formas de vida rústica, António Capão soube intuir que as tradições seculares se perderiam de forma irremediável se tal património não fosse defendido, registado e colocado à disposição das gerações futuras. Esse um dos seus méritos. A forma como acarinhou o Museu de S. Pedro da Palhaça, de que foi diretor, e o conhecimento seguro com que explicava, com evidente deleite, a utilidade dos arados e das charruas, dos moinhos e das azenhas, atestam bem o saber e a dedicação próprias do especialista do património e da sua luta permanente contra a incúria e a ignorância.Cultura Terras Aveiro

Para António Capão o que sempre foi estável e firme foi a crença em valores imutáveis como a religião, que tenderia a considerar um dos meios mais poderosos de garantir a ordem e a coesão social, erigindo-a como uma espécie de barreira contra a imoralidade. A dissolução dos valores morais conduziria à degenerescência e à anarquia. A política pura e dura pouco o interessava e por isso dela se distanciou sempre: “De política, só o que consideramos importante, como resposta aos valores do homem cristão projectados na própria família e aos verdadeiros valores da Pátria, nos interessa”(9).

É em nome desses valores que no primeiro texto com que no remoto ano de 1952 inicia a colaboração no Jornal da Bairrada denuncia o desajustamento entre o mundo material e moral dos habitantes da sua aldeia: “Por vezes, um ou outro, que a fortuna acarinhou, vai afirmando que o dinheiro é que vai dando o polimento (…). E nota-se um absoluto contraste entre a vida mundana e a vida religiosa (…). A Palhaça é uma freguesia essencialmente católica; e disto a conclusão é péssima: muita gente à missa com hipocrisia; muita gente a comungar em sacrilégio; muita gente a confessar-se dos erros dos outros, deixando os seus em atraso”(10). Verdadeiras pedradas no charco da hipocrisia reinante. Palavras avisadas as deste então jovem estudante liceal, frontais e desassombradas, como que a dizer-nos que o homem não vale pelo que tem mas sobretudo pelo que é e pelo esforço que faz para se tornar naquilo que será.

Terá sido ainda em coerência com esses valores que quando conclui a licenciatura em Filologia Românica, em 1959, recusa qualquer tipo de festejos – como era habitual nessa época, com toda a aldeia a participar –  por se encontrar de luto recente devido ao falecimento do pai. Apenas algum tempo depois assentiu que um grupo de amigos lhe oferecesse um jantar no salão da Junta de Freguesia. Manifestação ainda assim singela, a pedido do homenageado, precedida de missa em ação de graças (11).

António Capão amou e divulgou tão entranhadamente a sua terra e a própria Bairrada que estas não deixarão, mais cedo ou mais tarde,  através dos seus poderes públicos, de o homenagear como merece. Para que o seu nome honrado não desapareça da memória coletiva. Podem dar-lhe um nome de rua, de uma escola, biblioteca ou até de um Museu da Região, que defendeu em 1989 e do qual traçou as linhas orientadoras no 2.º Encontro de Escritores e Jornalistas da Bairrada.

Eis o seu plano: “Cada aldeia deveria possuir um pequeno museu englobando todas as atividades que lhe são inerentes e cujas peças nele guardadas deveriam ser estudadas e devidamente catalogadas; cada sede de Concelho deveria possuir também um museu, mas representativo de todas as aldeias que lhe pertencem e de acordo com os vectores incidentes sobre as suas actividades características; em zona a estudar, dentro da própria região, com características próprias bem definidas, surgiria então o Museu da Região onde estariam representados todos os Concelhos dentro dos aspectos considerados mais representativos, em estreita ligação com todas as suas povoações”(12). A Bairrada e a Etnografia

O Dr. Capão sentia necessidade de apartar-se dos tumultos da vida social e do que sentia ser a sua crescente desumanização, sem contudo cortar as amarras que o ligavam ao mundo. Recolhia-se em casa (para dizer melhor: no lar, que é coisa bem diferente) envolto nalguma solidão, sobretudo após o desaparecimento físico de D. Armanda, a sua esposa. Era aí que como uma harpa sensível – um pouco à semelhança da harpa eólica que os gregos penduravam nas árvores – ia  registando as próprias emoções e também o sentir e o viver dos outros, porque ver os outros com os olhos da imaginação é também, de certo modo, um dom do poeta.

Tal como acontece com muitos homens de cultura, o Dr. Capão sentia não ser profeta na sua terra, o que aliado a algum sentimento de injustiça o tornava uma natureza com propensão para o melindre. Talvez por isso mostrasse em público um semblante carregado e por vezes um ar sisudo. Mas em privado, no espaço acolhedor da sua casa, como que se transfigurava: era afável e cordato, de uma forma quase tocante. Abria-se como um livro vivo, sempre pronto a mostrar as pérolas de cultura que ciosamente ia acumulando e lhe aqueciam a alma sensível.

É longa a folha de serviços prestados à cultura da região e do país. Fica mais pobre a cultura quando um homem com estes méritos parte do mundo dos vivos. Bem merecia estar ainda entre nós quem, há pouco mais de um ano, prometia – ultrapassado já o batente dos oitenta – continuar “a contribuir para o prestígio da Academia” (referia-se à Academia Portuguesa de História, para a qual foi eleito membro em Junho de 2011). A ceifeira impiedosa não permitiu que nos desse a conhecer o muito que ainda tinha para legar. Escrever e registar sempre – pouco ou muito – era essa a sua divisa.

Em 2010, de forma algo premonitória, o Dr. Capão fala-nos do destino a dar ao “variadíssimo espólio” da sua biblioteca particular, que pacientemente foi construindo e considera “precioso”, por ter obedecido a “critérios muito próprios de selecção”. E deixa no ar a pergunta, num tom grave e que se adivinha angustiado: “Que vai ser de todo este papel, cheio de belíssimas lições, pleno de riquíssimos ensinamentos, quando o nosso sangue arrefecer, quando os nossos neurónios deixarem de trabalhar e nós passarmos desta vida para o Além que nos espera inexoravelmente?”(13).

Que eu saiba ninguém respondeu a tão tocante gemido cultural. Onde a resposta da Câmara Municipal do nosso concelho? Onde a de qualquer outra instituição com pretensões de divulgação cultural? Quem respondeu com afeto confiado ao seu apelo? Será que todo esse espólio, com eventuais manuscritos inéditos, vai perder a unidade essencial que o deve caraterizar e fragmentar-se nas mãos dos seus descendentes? Ou vai, por incúria nossa, ser depositado fora do concelho como aconteceu ao de padre Acúrcio Correia da Silva?

Mudaram os tempos e os hábitos. Cronos é poderoso e implacável, ao ponto de criar e devorar os próprios filhos. Mas o empenho de António Capão em preservar os valores do passado, por ver neles o cimento aglutinador do presente, foi decisivo para resistir ao processo de descaraterização de lugares e culturas ancestrais. A fidelidade a esses princípios prolongou-se na entrega radical aos trabalhos que produziu e nos deu a conhecer.

Ignoro se as pessoas da minha terra estão conscientes de que o Dr. António Capão foi até hoje – por tudo aquilo que publicou e pelas palestras e conferências que produziu – o seu mais genuíno representante cultural, o filho mais dotado que o ventre campestre e acentuadamente rural da Palhaça do seu tempo gerou até hoje. Se há quem considere excessivo este realce, que diga então: que outra figura da sua geração merece na Palhaça maior destaque? Quem, melhor do que ele, soube promover o diálogo entre tradição (transmissão, dádiva, herança recebida do passado) e modernidade (o que se acrescenta à herança recebida, o que criamos de novo, inovando e acrescentado)?

António Capão é um archote da cultura bairradina que não podemos deixar extinguir. Agora que a morte o obrigou a pagar-lhe o seu tributo, é imperativo que a marcha inexorável do tempo não cale a voz de um homem ouro de lei, cujo nome honrado a Palhaça, o concelho de Oliveira do Bairro e a região da Bairrada devem registar para todo o sempre. Não deixemos que uma hera de silêncio comece a enroscar-se dolorosamente em torno do seu nome.


 

[1] Armor Pires Mota, “Entrevista com António Capão”, Terra Verde – Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 3, 05.07.1991.

[2] António Capão, “Memórias da Palhaça”, in Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, pp. 7-31.

[3] Idem, “A propedêutica infantil e o jogo do Bichoiro”, Boletim da ADERAV, n.º 5, 1981.

4] Idem, “”A família aldeã e a cultura infantil”, Boletim da ADERAV, n.º 23, 1984.

[5] O Democrata, 17.01.1925.

[6] António Tavares Simões Capão, “As ‘Janeiras’, as ‘Pastoras’ e os ‘Reis’”, in Aveiro e o seu Distrito, n.º 4, 1967, p. 60.

[7] Idália Sá Chaves, a propósito do livro ”Os Moinhos na Nossa Região”, Jornal da Bairrada, 13.09.1995, p. 10.

[8] Armor Pires Mota, “António Capão: Cultura Popular em Terras de Aveiro”, Jornal da Bairrada, 08.09.1993, p. 8.

[9] Carta de Foral de Oliveira do Bairro, 1991, p. 10.

[10] António Capão, “Avante com o progresso moral”, Jornal da Bairrada, n.º 39, 15.08.1952.

[11] Jornal da Bairrada, n.º 226, 02.01.1960.

[12] Armor Pires Mota, “Entrevista com António Capão”, Terra Verde – Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 3, 05.07.1991.

[13] António Capão, “Livros Velhos”, Jornal da Bairrada, 29.07.2010, p.28.

Nos 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro (impressões de leitura)

O dia 6 de Abril de 2014 assinalou os 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro, cuja interpretação pertence ao ilustre bairradino António Tavares Simões Capão, um particular interessado no conhecimento da História Local e um homem preocupado com a fixação da memória num tempo em que se caminha para a desmemoriação total. A capacidade para descodificar a linguagem e a estrutura dos textos da carta de foral não está ao alcance de qualquer um. Interpretar fontes documentais ajustadas a uma realidade local tão distinta da actual exige grande perícia e conhecimento. É tudo isto – e isto não é tudo – que lhe devemos.Foral Antonio Capaao

Para se perceber a importância dos forais atente-se ao que refere Marcelo Caetano: “Não basta num Estado a existência do governo supremo com seus órgãos centrais: é necessário que as decisões desse governo possam ser conhecidas e impostas em todas as partes do território e que as necessidades peculiares de cada localidade sejam atendidas e possam chegar ao conhecimento dos governantes”.[1] Dito de outro modo: não bastava legislar. Para realizar a justiça, que era uma das obrigações, se não a principal, de um rei do passado, era necessário que a legislação fosse conhecida de todos e por todos usada correctamente.[2]

Hoje, qualquer cidadão conhece a área geográfica onde reside, identifica a pertença a uma freguesia que está inserida num concelho, o qual, por sua vez, se integra num distrito. Pois bem, na Idade Média esse enquadramento era bem mais difuso: além de não existirem distritos, a realidade medieval projectava-se para lá dos concelhos, devendo atender-se também às “dinâmicas sectoriais que de perto conviviam com as autoridades municipais e se plasmavam no texto dos próprios forais, na medida em que consubstanciavam relações de difícil concorrência e que precisavam de memória escrita para as clarificar e fixar no horizonte social do grupo comunitário a que diziam respeito […]. É pois de crer que o homem medieval teria dificuldade em conseguir representar mentalmente a geografia do território em que estava integrado”.[3]

A estes obstáculos deve somar-se a diversidade e a complexidade de cada território em particular, acentuada pela sobreposição de distintas esferas de actuação, que vão desde o poder real, ao local, passando pelo senhorial. Várias áreas geográficas estavam sob a jurisdição de um núcleo de senhores que partilhavam com a coroa alguns atributos do poder público. Daí a preocupação crescente dos monarcas em restringir os poderes senhoriais – assentes em títulos e na propriedade fundiária – o que não se fazia sem conflitos.

Os poderes senhoriais representavam uma significativa perda de receitas para a coroa. A intervenção régia nos concelhos era bem mais fácil, assumida por oficiais (corregedores ou juízes de fora) que asseguravam localmente a tutela do monarca. Assim se compreende que um dos primeiros objectivos da reforma manuelina consistiu em tentar clarificar as diferentes esferas do poder local.

Também nestas matérias os forais se assumem como fontes de direito indispensáveis para ajudar a perceber como é que estas dinâmicas se articulavam no terreno.[4] Eram frequentes as animosidades, conflitos e resistências das comunidades locais perante os abusos dos poderes senhoriais – clero e nobreza – mais presentes a nível local. A gestão do equilíbrio entre os diferentes poderes era difícil.

As mais antigas cartas de foral tinham como principal objectivo o povoamento do território, assumindo-se como contratos agrários que estão na base da formação de núcleos populacionais autónomos. Fazia-se um apelo a quem quisesse fixar-se em determinada localidade, bastando-lhe acatar as disposições contidas no diploma. Era comum, ao conceder-se foral a uma localidade, adoptar o modelo de outro anterior. Reproduzindo-o integralmente ou com ligeiras alterações. O concelho brindado com a outorga do foral via-se livre do controlo feudal. O poder mudava de sede e passava para um concelho de vizinhos. A população ficava a depender directamente da Coroa.

A temática foraleira está assim associada ao estudo dos municípios portugueses e ao próprio poder local. Interessa às actuais Câmaras Municipais, herdeiras da tradição concelhia medieval, uma vez que os forais espelham os poderes régios, senhoriais e municipais de uma determinada área territorial específica. Em termos gerais os forais preceituavam o seguinte: liberdades e garantias de pessoas e bens dos povoadores; impostos e tributos; multas resultantes de delitos e contravenções; imunidades e serviço militar; encargos e privilégios, ou aproveitamento de terrenos comuns. Muitas outras matérias, nomeadamente de direito privado – e que por isso ocupavam um plano muito secundário nas cartas de foral – continuavam a ser reguladas pelo costume.

No século XV os forais antigos eram motivo de controvérsia. Estavam redigidos em latim bárbaro e por isso afastados do conhecimento da maioria duma população vergada ao peso da terra e manietada pelo flagelo do analfabetismo. É sabido, também, que a Idade Média fabrica sem má consciência – sobretudo nos seus primórdios –  falsos diplomas, falsas cartas e falsos textos canónicos. O facto de muitas cartas se encontrarem delidas pelo tempo ou até, nalguns casos, o seu carácter opressivo, levaram os procuradores dos concelhos a pedir a sua reforma. Eram frequentes os abusos dos donatários. A interpretação dos documentos servia apenas o interesse de alguns. Atente-se só neste exemplo: os nobres chegavam com a sua comitiva a uma qualquer localidade e, fazendo uso do direito de aposentadoria, instalavam-se, assentavam arraiais e exigiam alimentação e outras comodidades. Finalmente, há que dizer que havia também conflitos que resultavam da assinalada disparidade entre regiões relativamente aos pesos e medidas.[5]

A reforma viria a acontecer no reinado de D. Manuel I (1495-1521). Não para fortalecer a autonomia dos municípios mas essencialmente para registar encargos e isenções locais, já que o poder real estava cada vez mais empenhado em estender as disposições legislativas gerais a todo o território. À medida que essas lei gerais iam sendo implantadas, assiste-se ao “enfraquecimento do poder estabelecido nos forais e daqueles que nele se pretendiam firmar”.[6]

Os forais novos são apenas uma das várias emanações das diferentes reformas manuelinas. Eram precedidos de inquirições feitas aos “homens livres” e concedidos aos representantes dos lugares. Estabeleciam as regras a seguir pelos habitantes entre si e em relação à entidade outorgante. A sua análise devolve-nos um retrato da sociedade quinhentista, particularmente no campo do direito e da economia. Eram concedidos pelo rei ou por um senhor laico ou eclesiástico, dependendo a outorga de quem detinha o poder fundiário. Estes forais novos consagram um vasto conjunto de direitos a pagar ao rei, a par de obrigações para com outras esferas de poder. Estamos a falar de uma sociedade em que o privilégio se sobrepunha à lei geral.

A preocupação dominante em “certificar a natureza e o quantitativo dos direitos reais” ajuda a explicar a razão pela qual estes novos diplomas mantêm intocados os órgãos concelhios e as suas atribuições.[7] Convém referir que a reforma manuelina dos forais é encetada em simultâneo com a reforma das Ordenações: “Muitas das disposições relativas à justiça, assim como as de âmbito económico, estavam já consagradas nas leis gerais do reino”.[8] É o que acontece com o direito de portagem, um direito real inscrito nas Ordenações Manuelinas que passa a ser cobrado de maneira tendencialmente uniforme nas diferentes terras.Ordenações manuelinas

Para a coroa o municipalismo representava uma importante fonte de receitas e até de recursos económicos e militares que podia fornecer ao país, ajudando a fortalecer o poder real. Ao longo do século XVI esse fortalecimento acentuava o declínio das instituições concelhias. Paralelamente, a importância dos forais também diminui, quando se transformam em “meros registos de tributos dos municípios”.[9] Esta reforma promovida pelos forais novos foi tudo menos pacífica: eram frequentes as reclamações dos concelhos e dos senhorios, a quem não agradava a versão final dos documentos que lhes chegavam às mãos.

Feito este enquadramento, vejamos então aquilo que o foral de Oliveira do Bairro nos dá a conhecer de mais relevante sobre o pulsar das terras por ele abrangidas no período quinhentista, nomeadamente na esfera social e da economia. Segundo o Dr. António Capão, os forais novos manuelinos só aludem ao vinho de permeio com outros produtos, como o pão, a cal e o sal, quando se trata de fixar os preços de portagem e passagem. A chamada “regra do relego” (privilégio de que gozavam os senhores de algumas terras para venderem o seu vinho aos pequenos proprietários, proibindo a venda de vinho avulso durante os três primeiros meses do ano, período em que só o seu podia ser vendido) aparece inscrita em algumas cartas de foral da Idade Média. Só que não aparece no foral de Oliveira do Bairro.

Este tempo de relego era pois um atentado sério ao livre comércio. Trata-se de um direito mencionado nas Ordenações Manuelinas, que incidia igualmente sobre a venda do vinho régio, proibindo a venda deste produto a particulares sem que primeiro se escoasse o vinho que pertencia ao Rei.[10]

Infere assim o autor bairradino a forte probabilidade de estarmos em presença da diminuta importância da cultura da vinha durante o século XVI, nos locais abrangidos pela carta de foral: Oliveira, Cercal, Repolão, Pedela (Vila Verde), Montelongo, Lavandeira, Amoreira (do Reploão)  e Bairro do Mogo. Em seu entender, “a produção vinícola até ao século XVI não explicava ainda a necessidade dessa lei específica [pois] o cultivo da vinha no século XVI não teria, na nossa região, a importância que então lhe é dada noutras partes do país”.[11]

O cultivo da vinha na Bairrada parece datar do período romano: “Pode afirmar-se que as vinhas da Bairrada são mais antigas do que a própria Nação Portuguesa, como os numerosíssimos documentos das chancelarias comprovam”.[12] Em 1137 “receberam os monges de Santa Cruz toda uma vastíssima herdade, no coração da Bairrada, com autorização para plantar vinha”.[13] Já a importância da produção do vinho na região terá acontecido bem mais tarde, em plena Idade Média. Pelo menos a partir do século XI o vinho serviria não apenas para consumo e comercialização, mas também como forma de pagamento das rendas e dos impostos.[14] Era no vinho que os senhores da terra encontravam a maior fonte dos seus impostos.

O certo é que as conclusões extraídas pelo Dr. António Capão, a partir da leitura que fez da carta de foral, colocam em causa – pelo menos no que se refere a Oliveira do Bairro – a possibilidade de a viticultura ter sido sempre a actividade predominante na área em estudo, sobrepondo-se, entre outras, à cultura da oliveira. Também Armor Pires Mota se pronuncia sobre o assunto ao constatar que na carta de foral de Oliveira do Bairro o vinho não surge como “moeda” extraindo a conclusão de que, “embora já cultivado, o fosse em pequena escala, ao contrário de outras terras, como Soza e Ouca que, nesses tempos remotos, já produziam bastante, de tal modo que aparece como elemento de pagamento nas obrigações dos casais”.[15]

Este escritor e autor bairradino mostra também alguma perplexidade pelo facto do foral de Oliveira do Bairro não aludir expressamente à produção de cal. Na verdade a cal aparece no documento ao lado do vinho, do pão e do sal, produtos sujeitos ao pagamento de direitos de compra e venda. O certo é que no capítulo que dedica à indústria da cal (páginas 307 a 310) alude a vários locais “onde fumegavam fornos e estoiravam chãos de pedra” mas em nenhum momento os faz remontar a inícios do século XVI, ou seja, à data da outorga do foral. Tudo leva pois a crer que o florescimento desta actividade tenha ocorrido alguns séculos depois.

Anota também o Dr. António Capão, como curiosidade, que no foral “os escravos são colocados ao lado ou em pé de igualdade com as bestas e vendidos ou comprados como tais”.[16] Estamos a falar de servos da gleba que pertenciam à terra do senhor, normalmente fidalgos, ou seja “filhos de algo” que deviam ao nascimento a posição privilegiada que ocupavam na hierarquia social. Os servos pertenciam às suas quintas da mesma forma que as aves de capoeira, o gado ou os cães de guarda e de caça. Quando a herdade mudava de mãos – por transação ou herança – os servos da gleba iam com ela e tornavam-se propriedade do novo senhor. Estamos a falar de reminiscências de tempos bem mais recuados, quando em plena sociedade esclavagista romana Marco Terêncio Varrão, ao aludir aos meios de trabalhar a terra, chamava aos escravos “instrumentos falantes”, para os distinguir dos instrumentos que emitem sons não articulados (animais de tracção) e dos instrumentos mudos (utensílios agrícolas).

Digna de registo é também a importância do sal para a população, sobretudo para a conservação dos alimentos. O foral dá-nos conta disso: além de outros produtos como os ovos ou o pão cozido, também o leite e seus derivados sem sal não pagavam portagem. Enfim, deixa-se ao leitor o prazer de descobrir outras curiosidades que a carta de foral encerra. Que produtos se transacionavam, que tributos pagavam, que pesos e medidas eram usados. E também lá pode encontrar o que era a pena de arma, o gado de vento, o direito de fogaça e de montado e tantas outras curiosidades.

O Decreto de 13 de Agosto de 1832 (Mouzinho da Silveira) extinguiu por completo os forais, vistos como “um peso intolerável” em certas regiões de Portugal, por constituírem um sério travão ao desenvolvimento da agricultura. Na verdade e por efeito do sistema legislativo e fiscal desses tempos recuados, muita gente da nobreza e do clero usufruía de “fartos proventos que o povo ia pagando, nuns casos, para salvação da alma, noutros, para salvaguarda do coiro”.[17]

Os forais são documentos valiosíssimos enquanto repositórios de memórias que podem e devem ser transmitidas às gerações actuais e futuras. Para Jacques Le Goff, o historiador recentemente desaparecido que nos legou trabalhos notáveis como O Nascimento do Purgatório – o nascimento de uma crença, de um espaço construído que corresponde, no século XII, a uma necessidade de espacialização do Além – estes documentos são também monumentos na medida em que estão ligados ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas.[18] Assim sendo, a Carta de Foral de Oliveira do Bairro não é apenas um documento do passado: assumindo-se como um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força de quem à época detinha o poder, é também um monumento, enquanto testemunho escrito legado à memória colectiva que assim se institui em património cultural.

Seria gratificante que a população do concelho de Oliveira do Bairro e por maioria de razão a comunidade escolar pudessem reflectir, um pouco que fosse, sobre algumas questões relacionadas com a atribuição do foral. Por exemplo: há quinhentos anos terá o povo recebido a notícia com o mesmo entusiasmo com que agora se comemora a data? Não houve reclamações ou protestos? Dar a conhecer um pouco como funcionava a sociedade quinhentista e qual o perfil do monarca que empreendeu a reforma dos forais (D. Manuel I foi um rei centralizador, inovador e reformador) ajudaria a distanciar estas comemorações da pior das inculturas: a que faz da cultura uma convenção e não uma convicção.

Espera-se, pois, que para lá do divertimento – cuja programação parece incluir evidentes preocupações culturais – irrompam também momentos de reflexão. O pior que nos podia acontecer é que tudo se resumisse a umas tantas festarolas habilmente confundidas com actos culturais, “pão e circo” para entreter os incautos do costume.


[1] Marcelo Caetano, História do Direito Português (1140-1495), Lisboa, Editorial Verbo, 1992, p. 215.

[2] João José Alves Dias, Ordenações Manuelinas 500 anos depois. Os dois primeiros sistemas (1512-1519), Catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal, Centro de Estudos Históricos-Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 15.

[3] Filipa Maria Ferreira da Silva, Os Forais Manuelinos de Entre Douro e Minho (1511-1520): Direito e Economia. Dissertação de mestrado em História Medieval e do Renascimento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 20012, p. 13. Vamos seguir de perto a obra citada, na elaboração deste texto.

[4] Idem, p. 12.

[5] Idem, p. 18.

[6] Maria Alegria Fernandes Marques, Os Forais Manuelinos de Soza e de Vagos (Nota introdutória), edição da Câmara Municipal de Vagos, s/d, p. 20.

[7] Idem, pp. 20-21.

[8] Filipa Maria Ferreira da Silva, obra citada, p. , p. 34.

[9] Mário Júlio de Almeida Costa, “Forais”, in Dicionário de História de Portugal (Joel Serrão, dir.), Porto, Livraria Figueirinhas, pp. 55-56.

[10] Ordenações Manuelinas, Livro II, Título XXXIV, p. 159, segundo Filipa Maria Ferreira da Silva, obra citada, p. 52, nota 213.

[11] António Capão, Carta de Foral de Oliveira do Bairro, Edição da CMOB (2.ª edição corrigida e aumentada), 2001, p. 28.

[12] J. Branquinho de Carvalho, “Síntese das vicissitudes das Vinhas e dos Vinhos”, Jornal da Bairrada(Suplemento Bairrada Vitivinícola), 26.12.2002, p. 7.

[13] Amaro Neves, “Pantar vinhas…na Bairrada”, Boletim da Associação para o Estudo e Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro (ADERAV), n.º 11, Maio 1984, p. 11.

[14] Diana Moreira, “Bairrada de ontem”, Jornal da Bairrada, 11.08.2005, p. 26.

[15] Armor Pires Mota, Oliveira do Bairro. Alma e Memória, edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 2002, p. 38.

[16] António Capão, obra citada, p. 55.

[17] Carlos Alegre, “Os centenários dos forais”, Jornal da Bairrada, 30.01.2014, p. 3. Sobre o 5.º centenário dos forais manuelinos, ver, no mesmo jornal, Eva Neves Dias, “Os Centenários dos Forais” (edição de 20.02.2014, p. 50) e Acílio Gala, “A comemoração dos 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro” (edição de 27.03.2014, p. 3.).

[18] Jacques Le Goff, “Documento/Monumento”, Enciclopédia Einaudi (vol.1, Memória-História), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 95-104.

Arsénio Mota — um olhar cultural e regional sobre a Bairrada

AM - Uma Vida como ObraPara lá dos variados caminhos de expressão escrita (poesia, conto, crónica, ensaio e sobretudo literatura infanto-juvenil), a trajectória de vida de Arsénio Mota (AM) inclui também os estudos e antologias que dedicou à Bairrada e as monografias sobre a vila de Bustos,  a terra onde nasceu e que nela se insere.

Nascido em 1930, terá escutado os derradeiros gemidos culturais da Plêiade Bairradina, fundada em 1918. Terá ouvido falar, na adolescência, de padre Acúrcio Correia da Silva, que as gentes locais veneravam e que desapareceu de forma prematura em 1926. O mesmo não se dirá de António de Cértima, que rumou a Lisboa nos anos vinte, atraído pelas sereias do cosmopolitismo, pelo que a Bairrada desse tempo deixou de falar nele.

Foi já ausente da sua Bairrada que AM sentiu mais profundamente o apelo das raízes e o reavivar de algumas evocações e memórias ainda não delidas pelo tempo. Era preciso que alguém voltasse a reabilitar o espírito da Plêiade e a empunhar a bandeira cultural que esta desfraldara ao vento nos seus tempos áureos. O escritor bairradino viria a assumir, por sua conta e risco, esta ingente tarefa.

É desse incansável labor que se dá aqui testemunho. Esforços que passam pelo recuperar da visibilidade dos seus principais mentores – padre Acúrcio e António de Cértima – mas também de nomes mergulhados num esquecimento imerecido, como os poetas populares Manuel Alves, José Francisco Moreira e António Barata, o pintor Fausto Sampaio, o arquitecto Cipriano Maia, Feliciano Soares e França Martins, entre outros; pelos contributos que deu, sistematizando os já existentes, para a definição e delimitação da região da Bairrada; finalmente, pela insistência na importância duma análise regional capaz de libertar a região da imagem distorcida que dela temos, por simples associação redutora ao leitão assado e ao vinho maduro.

AM sempre intuiu que divulgar e promover a Bairrada requer o conhecimento prévio dos seus traços distintivos. Isso o fez procurar respostas para interrogações do tipo: como se define a nossa região em termos geográficos e culturais? Que trabalhos revelam e exaltam o espaço bairradino? Existirá, na Bairrada, um conjunto assinalável de obras que configure uma corrente literária regionalista? Tem a Bairrada aspectos paisagísticos, tipos humanos e linguísticos distintos dos de outras regiões portuguesas? Se tem, em que obras estão presentes? Até que ponto a psicologia do bairradino é moldada pela ambiência dos campos de milho e vinhedos, e pela corografia de horizontes, aqui e ali tapada pela mancha dos pinhais? A fala do bairradino é circunscrita a este espaço geográfico ou é comum à fala dos habitantes de outras regiões do país?

O escritor não foge a discutir estas questões e a dar-nos frontalmente o seu ponto de vista. Fá-lo em nome da defesa, valorização e divulgação de uma memória local e regional. O pontapé de saída acontece em 1987, na crónica “Bairrada sem Literatura”, publicada no Jornal de Notícias. Queria provar – e conseguiu – que a região tinha uma literatura que a exprimia, e que a Bairrada estava dentro da literatura. Em 1989, na Câmara de Anadia, participa no relançamento do livro «Versos do Campo», do poeta popular José Francisco Moreira. Nessa apresentação já falava «do desamor que vem condenando sistematicamente a cultura bairradina às urtigas».[1]

É também em 1989 que explica, com entusiasmo, como encontrou o Hino da Bairrada, logo vendo nele «outro elemento para desencantar a região adormecida». E acrescenta: «Eu gostava de ver esta música, com o poema, a correr na Bairrada de boca em boca».[2] Recordo, também, a alegria que sentiu quando finalmente conseguiu ter em mãos um livro de poesia que não aparecia em lado nenhum, as Seroadas Fulvas, de padre Acúrcio Correia da Silva.[3]

A ele se deve a organização dos três primeiros encontros de escritores e jornalistas da Bairrada, no quais via “a expressão mais flagrante de um movimento cultural-literário que pretendeu, e pretende, ir até às fronteiras da identidade regional”.[4] Entre as múltiplas iniciativas e propostas,  contam-se a organização de encontros e colóquios, a promoção de cursos de jornalismo, o apoio à edição de publicações, a instituição de prémios, a promoção de viagens de estudo, a aquisição da casa onde viveu Manuel Rodrigues Lapa, ou mesmo o reconhecimento do inegável interesse da imprensa regional como valor documental insubstituível.

A proposta para comemorar, em 1994, o centenário do nascimento de António de Cértima, avultava entre as restantes: pela figura do homenageado, pelas personalidades e entidades envolvidas, pelas iniciativas a empreender e por ter decorrido durante um período de tempo pouco habitual, praticamente seis meses. Para lá de organizar e ser o principal impulsionador das comemorações, AM profere a conferência “António de Cértima, a Bairrada e a Crítica” e realiza (com ideia e guião) o vídeo “António de Cértima” sobre a vida e obra deste escritor e diplomata bairradino.

Ao fundar, em 1990, a AJEB – Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada – a cuja direção presidiu durante quatro mandatos, a região adquire um dinamismo cultural e fervilha de entusiasmo como há muito não se via. Convocam-se reuniões, sucedem-se encontros, editam-se livros e antologias, cria-se o suplemento literário Terra Verde, instituem-se prémios literários e homenageiam-se escritores. Todas as iniciativas têm a participação activa e a marca inconfundível de AM. Para lá disso, organiza Letras Bairrradinas (1990), uma antologia de poetas e prosadores que cantaram ou deram testemunho da região; publica Estudos Regionais sobre a Bairrada (1993), o estudo biográfico António de Cértima – Vida, Obra e Inéditos (1994), organiza o livro António de Cértima – Colectânea de estudos no centenário do seu nascimento (1995) e publica ainda Pela Bairrada (1998) e Figuras das Letras e Artes na Bairrada (2001).

Estudos regionais bairradaNum tempo de esbatimento acelerado das identidades, de choque cada vez mais agudo entre o velho e o novo, entre o passado e o futuro, entre tradição e inovação, ninguém como AM lançou sobre a Bairrada o olhar regional com que sempre a quis ver. Ninguém como ele mostrou um pensamento tão articulado e consistente, procurando isolar o que se encontra em crescente processo de integração ou diferenciar o que está submetido a processos de homogeneização. Acreditava que só uma vigorosa intervenção cultural de matriz regional seria capaz de travar o rolo compressor da massificação acelerada, que tudo esmaga à sua passagem. Por isso encetou uma luta sem tréguas contra as formulações localistas redutoras, contra os que “insistem em reduzir a região à escala mesquinha das suas terreolas”.[5]

Estimular a reivindicação regional significa “ver” e planificar para lá dos interesses e da vontade das elites locais, não reduzir a história e a geografia desses lugares ao folclorismo pitoresco, ou ao eruditismo balofo, conferindo importância acrescida a entidades com competência cultural específica, às maneiras de sentir, pensar e agir das populações em estudos integradores ou de síntese – sobre um determinado espaço enquanto condensação de múltiplas manifestações sociais – que nos devolvam, com nitidez, a coesão e a coerência interna de uma dada região. Só dessa forma nos será revelada uma região com contornos específicos e não reprodutíveis em qualquer outro espaço geográfico.

Entende também AM que a aspiração à universalidade se tem mostrado inimiga da análise regional: ao esquecer que todo o universal tem o seu chão, ela tende a remeter os estudos regionais para um lugar subalterno no quadro mais geral da cultura, sem se dar conta que a genuína universalidade não dispensa as marcas de tempo e de lugar. Uma obra que é digna desse nome “não dilui na vaguidade de intenção universalista as suas marcas de origem”, na exacta medida em que no universo da cultura estão presentes, necessariamente, “todas as culturas nacionais, regionais e locais existentes, cada uma delas imbuída da sua própria especificidade, isto é, com os respectivos traços de originalidade inconfundível e vazada numa peculiar expressão linguística”. [6]

Foram estes, em breve síntese, os inestimáveis contributos de AM para os estudos regionais sobre a Bairrada, pela qual nutre um acrisolado amor e à qual dedicaria ainda, em 2008, já depois de sair de cena, o surpreendente e enternecedor Leitão Ciclista em Busca do  Paraíso, talvez o fecho desta sua aventura regional. Fábula sobre uma região com uns tantos centros mas sem cento nenhum, por se obstinar em não querer perder nenhum deles. A obra, na qual podemos entrever vestígios biográficos de quem sente saudade e vai da cidade à terra natal, mas logo se desencanta por ver tudo mudado, é mais um hino e uma ode à Bairrada, pois o leitão e as bicicletas são nela reconhecíveis traços identitários.Leitão Ciclista

Cansado de “pesos mortos” e de “rivalidades mesquinhas”, AM acabaria por sair de cena em finais de 2002. Com estrondo. Abandonou a Associação de que foi o primeiro fundador, um dedicado presidente e o principal dinamizador.

E daí para cá – vá lá saber-se porquê – a Bairrada mergulhou de novo numa apagada e vil tristeza cultural. É outra vez, a esse nível, uma seca, fera e estéril região.

(Texto publicado no catálogo do Museu do Neo-Realismo, pp. 21-26, no âmbito da homenagem ao escritor Arsénio Mota, que decorreu em Vila Franca de Xira e incluiu uma exposição patente ao público entre 1 de Novembro de 2014 e Fevereiro de 2015).


[1] Jornal da Bairrada, nº. 985, 21.07.1989, p. 24.

[2] Arsénio Mota, «Do Buçaco ao Vouga», Jornal da Bairrada, nº. 986, 28.07.1989.

[3] Idem, “Enfim, Seroadas Fulvas”,  Terra Verde, n.º 16, 07.08.1992, Suplemento mensal do Jornal da Bairrada.

[4] Idem, Encontros de Escritores e Jornalistas da Bairrada – Comunicações. Edição da AJEB, Abril de 1991, p. 7.

[5] Idem, “Para além das aparências”, Jornal da Bairrada (Suplemento Terra Verde, n.º 11, 07.03.1992). Texto incluído em Arsénio Mota, Pela Bairrada, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 1998, p. 39.

[6] Idem, Estudos Regionais sobre a Bairrada, Editora Figueirinhas, Porto/Lisboa, 1993, p. 16.

— Ó Pai, a Terra é redonda

A ceia de Natal em família é uma tradição secular, que principiou nos Judeus para solenizar os dias festivos e chegou aos nossos dias para festejar o nascimento de Jesus. Mas, enquanto no tempo dos Judeus se comia a carne do Cordeiro Pascal com pão ázimo e legumes, no nosso tempo a imolação do cordeiro assado no forno foi substituída pelo bacalhau pescado nas costas da Noruega ou nos Bancos da Terra Nova.
Esta ceia sempre foi uma refeição mais substancial que o normal quotidiano nas aldeias da nossa região. Há sempre nela aquele prato tradicional e indispensável do bacalhau cozido, cujas postas são escolhidas e cortadas ao longo da espinha dorsal dum alentado garnisé e que, bem demolhadas, constituem a delícia dos apreciadores do fiel amigo que tão raramente aparece, agora, são e escorreito nas mercearias do nosso apagado burgo.
Nas cidades, nas vilas e nas aldeias, sempre se festejou o Natal, com a ceia da véspera, em que a família se reúne em volta de uma fogueira acolhedora. Mas ao passo que nas cidades e vilas andam as criadas a servir os seus patrões, engalanadas em punhos de renda e alva crista bordada, nas aldeias, uma enorme travessa redonda, farta e recheada, é posta sobre a mesa da cozinha, de onde pais e filhos comem espetando o garfo nos alimentos que se encontram na linha recta da sua posição à mesa, sendo-lhes absolutamente proibido invadir a área ocupada por outrém, para não tercejarem lanças em posição diagonal que poderia produzir um conflito familiar de graves consequências, aleivosas para a paz santa da família que se ama em liberdade e respeito.
Conta-se com uma certa graça que numa dessas ceias de Natal, em casa de um dos mais abastados proprietários ali do nosso vizinho lugar do Cercal, se passou a cena seguinte: depois de todos estarem sentados à mesa aguardando o apetitoso bacalhau, as claras batatas arran-banner, as tenras couves da horta, cortadas momentos antes, foi colocada entre todos, ainda fumegante, uma rica travessa de postas de bacalhau com alguns centímetros de lombo.
Em frente do chefe de família ficou uma posta que luzia pelo seu tamanho e apetecia pela sua altura, em lascas sobrepostas, como as folhas de um livro que a gente anseia por abrir, na avidez da sua leitura. O filho mais velho do casal, que cursara oito anos de liceu, não tirava os olhos daquele naco apetício e, antes que a mãe distribuísse por todos os garfos para a luta, diz o Abel, em tom de mestre-escola:
– Ó pai, a terra é redonda! E acompanha os seus conhecimentos de cosmografia agarrando nos bordos da travessa e dando-lhe uma volta demonstrativa da configuração e movimentos do planeta em que habitamos, levando para o seu lado e colocando na sua frente a posta de bacalhau que “era de gritos”. Mas o pai, inteligente e rábula, embora menos versado que o filho nos estudos dos filósofos gregos que explicaram a forma e os movimentos da Terra, mas tendo compreendido até onde queria chegar a atitude do seu filho, responde-lhe:
– Deves ter razão, meu filho, a Terra é redonda, tanto anda como desanda! E leva para o seu lado, novamente, o naco de bacalhau que deslumbrava a assistência, ante a passividade inquieta dos outros filhos que aguardavam, ansiosos, o fim do debate metafísico! Tinham caído por terra as conclusões a que chegaram Anaxímenes e Pitágoras, pois o velho Roças tinha demonstrado ao filho que a Terra tanto anda como desanda, isto é, tanto anda para a frente como anda para trás!

E nós, em face dos tempos que vão correndo e no desejo de imprimir um caminho recto e seguro aos nossos ideais e uma unidade clara a todos os nossos actos, talvez acabemos por dar razão ao velho Roças, do Cercal.

(Texto de Miguel França Martins, publicado no Jornal da Bairrada, n.º 52, de 14.02.1953).

No lançamento de Estórias d’Escritas, de Jorge Mendonça

Pecado original: este livro não abre com um prefácio. O autor resolveu prescindir da nota preambular, trocando-a por um naipe de curtos depoimentos que solicitou a pessoas do seu círculo de amizades. Delegou nos amigos as possíveis advertências para a ementa que nos serve logo a seguir. Ou, quem sabe, talvez tenha apenas sabido resistir à tentação com que certos autores escrevem o prefácio para se antecipar às bicadas dos seus mais severos críticos.

Estórias d'EscritasPode haver, nessa girândola de impressões sobre o primeiro livro de Jorge Mendonça (JM), um ou outro exagero no que ao rude ofício da escrita diz respeito. Tudo isso faz parte da cegueira da amizade. O autor não é contista no sentido canónico de aprendizagem de um conjunto de técnicas específicas. É-o à sua maneira e – atrevo-me a dizê-lo – por graça da sua intuição, abalançando-se nos caminhos da sua própria descoberta. Mas o retrato de corpo inteiro que os amigos lhe traçaram, recorrendo à paleta variegada dos afectos, esse, não mente: pintaram-lhe a alma, espelhando nela aquilo que o ser humano tem de mais gratificante.

Outra curiosidade tem a ver com a prevenção que o autor coloca estrategicamente num ou noutro texto: “qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência”. À laia de aviso, parece jogar na ambiguidade: tanto pode querer enredar-nos no jogo ficcional, como – para citar Mário de Carvalho – lograr precisamente o contrário daquilo que declara e fazer soltar a mola da curiosidade bisbilhoteira.

Bisbilhotemos, então, este livro de estórias e de contos. Começando por dizer que o conto, enquanto género literário ou sub-género da ficção narrativa curta, é tudo menos um género menor, já que requer um conjunto de qualidades que o torna um dos mais difíceis no vasto campo da ficção. O espaço mais limitado do conto, ao contrário do que acontece com o romance, requer que se condensem as imagens mais impressivas, joeiradas entre tantas outras. E por isso tem, entre os que escrevem, alguns cultores de excelência. Para o caso português basta citar, entre outros, Alexandre Herculano, Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, José Rodrigues Miguéis, José Cardoso Pires, Manuel da Fonseca, Sophia de Mello Breyner ou Mário de Carvalho. E, fora de portas, Machado de Assis, Ruben Braga, Curzio Malaparte, ou Anton Tchekhov são apenas algumas de entre as muitas referências possíveis de grandes contistas.

Pois bem: estes contos – e outros textos – que em boa hora JM entendeu publicar, revelam o estilo e a sensibilidade do autor, o poder de captação do real e uma arte muito própria de narrar. Desvendam o seu imaginário, a capacidade analítica e os temas que vincam o exercício da sua cidadania. E só não representam uma autêntica revelação para quem já teve o privilégio de ler antes aguns deles, publicados em blogues ou na imprensa regional bairradina.

Estas estórias vivem da capacidade de efabulação e de uma escrita simples e desataviada. Sendo o conto vizinho da fábula, a feição moralizante de alguns textos não podia deixar de estar presente. A ironia, umas vezes mais subtil, outras mais corrosiva, está ao serviço da crítica ao lodaçal da política videirinha. Uma crítica que não poupa a hipocrisia e a adulação reverente dos serventuários do poder, a dizer-nos, como no famoso conto de Andersen, que o rei vai nu apesar dos vassalos não o dizerem abertamente, para não perderm as suas graças.

Embora a paródia seja uma constante na descrição de alguns eventos políticos concelhios, a política não é depreciada. É tratada com seriedade, porque a política tem de ser moral para ser eficaz. Tudo o que é dito pretende formar, mas sem influenciar. O autor pensa pela sua cabeça e afirma claramente as suas ideias. Podemos não concordar com uma ou outra, mas revemo-nos nos princípios e atitudes que as norteiam.

JM não é indiferente ao que o rodeia, porque sabe que a indiferença é a paralisia da alma. (Re)constrói personagens – muitas delas suas conhecidas –  e episódios do quotidiano, como acontece No Centro de Saúde, transformando esses materiais numa avaliação profunda das condutas humanas. Revela também uma observação atenta aos fait-divers, aos encontros e desencontros da natureza humana, às paixões e amores não correspondidos, à verbalização do desejo e dos seus demónios, às crenças, usos e costumes tradicionais da região, fazendo ressaltar as aporias entre o sagrado e o profano que caracterizam as festas populares. Da espessura do tempo e da própria vida irrompem situações inesperadas que dão sentido e valorizam estas estórias.

Um dos contos mais impressivos é O pescador de peixes, que nos revela o saber de experiência feito de Job, a personagem central, velho pescador de Perrães que calcorreia as “bordaduras do parque do Carreiro Velho” e que conhece “cada palmo e cada centímetro daquelas águas turvas e lamacentas”, um território quase sagrado, ou não fizesse ele parte do seu corpo e da sua vida. Ninguém como ele conhece esse “mistério que os pescadores sentem ao passarem horas a fio, imóveis, de olhar fixo, até sentirem qualquer coisa a remexer-se debaixo de água”.

Job é assim um nome ajustado à natureza destas tarefas, paciente e sábio, com óbvias conotações bíblicas. Sangra por dentro ao ver descaracterizar-se o velho parque, agora virado do avesso, para em seu lugar nascer um renovado espaço de reunião e convívio. Sofre por ver desaparecer um lugar de memória que sempre lhe foi familiar, que conhecia como as palmas das mãos. Essa dor não resulta de outra coisa senão do confronto entre o velho e o novo e da perda acelerada de referências que ajudaram a construir uma identidade singular.

Já a roçar o batente dos oitenta, Job tem consciência que tudo na vida é precário e irrepetível e que por isso o Carreiro Velho da sua infância não voltará a ser o mesmo. Mas ironiza com a inauguração do novo espaço, porque  ao radar das suas manhas não escapa que tal inauguração não passa de mera caça ao voto dos cidadãos desprevenidos. Agora apenas uma coisa o contenta: o facto do parque de merendas não ter sombras, apesar de terem sido gastos rios de dinheiro. JM projecta na personalidade deste pescador bairradino o saber de uma longa experiência de enganos na sua relação com as diferentes instâncias do poder. Job pressente que o parque não vai ser invadido por visitantes, o que lhe permite continuar a usufruir dele e do seu silêncio. Assim será porque, afinal, se escreveu direito por linhas tortas: porque – suprema das ironias – “os pescadores de votos se lembraram dos pescadores de peixes”…

Algumas estórias não são propriamente contos, pois a narrativa nem sempre é encaminhada para epílogos enigmáticos geralmente adiados até aos derradeiros instantes. São textos mais indefinidos, um misto de relato ou reportagem de acontecimentos do quotidiano, caldeando por vezes referências ao real concreto com a sua representação ficcional. Isso não invalida que tais estórias não valham pelo estilo e pela substância com que são embrulhadas e nos são oferecidas.

Em A festa das associações evoca-se o renascimento da quinta-feira da Ascensão como dia de feriado municipal em Oliveira do Bairro. O autor lamenta que os actos comemorativos estejam a subverter a tradição, que na noite dos festejos não tenha sido distribuída “uma simples espiga ou um singelo raminho de plantas campestres”. Nesse raminho, a espiga de trigo simbolizava o pão, podendo juntar-se-lhe o raminho de oliveira (paz), o malmequer (dinheiro) e o alecrim (saúde).  Algo que fizesse relembrar o Dia da Espiga ou até o Dia dos Namorados. Mandava a tradição que o ramo da espiga fosse colocado atrás da porta de entrada de cada casa. Depois, saboreavam-se os farnéis à sombra dos arvoredos, às vezes em alegre romaria até ao Buçaco. Triste é que nesta data genuinamente portuguesa os festejos ficassem marcados pela importação de culturas e modelos estrangeiros. Em vez de ranchos populares, o feriado concelhio foi animado por cantares da Tunísia, fenómeno revelador de que o que parece preocupar o poder polítco municipal não é a recuperação genuína das tradições mas uma cultura de tasquinhas e porco no espeto para satisfazer o regular funcionamento do estômago dos munícipes.

Em Carta à tia Assunção, mas sobretudo em Divagações sobre a R.A.T.A., o autor manuseia habilmente, com ironia e de forma às vezes hilariante, o acrónimo de Reorganização Administrativa Territorial Autárquica. Não deixa de falar em coisas sérias, mostrando-se a favor de uma reorgaização administrativa mas contra a que nos foi imposta com régua e esquadro. Diz o que sente, sem recorrer a meias-tintas, porque sabe que o exercício da cidadania deve ser polifónico, acolher e respeitar as vozes discordantes. Por isso se insurge, em Parábola do Silêncio, contra os que na tentativa de abafar as vozes discordantes tratam os adversários políticos por “escribas desalinhados e mentirosos”.

Entre outros textos interessantes – e são vinte e oito, ao todo – não percam os leitores o que se intitula Poder vs Oposição. Nele, JM recorre à metáfora futebolística para retratar e caricaturar os duelos entre o poder e a oposição municipal. Nesse strep-tease do poder oliveirense o jargão da bola funciona como um látego da ironia. Em acção vemos um verdadeiro rei dos toques, com passes de calcanhar e pontapés-moínho. Um virtuoso que a equipa do poder municipal só consegue travar com sucessivas rasteiras na grande área da demagogia. O problema é que nunca se marca um penalty e o jogo fica desvirtuado. Árbitros comprados, é bom de ver…

Se em Estórias d’Escritas se pode vislumbrar uma marca distintiva, a que parece sobressair é a do apego aos valores humanistas. Eles estão presentes na crítica da sociedade do espectáculo, nos abusos das praxes académicas ou na comovente homenagem aos colegas de curso já falecidos. Sendo as suas primícias literárias, oxalá que estas estórias funcionem como rampa de lançamento e espaço de incubação de outros textos ficcionais. Porque nesta escrita de inventário e de balanço das responsabilidades de cada um, JM cultiva o salutar vício de não se calar. Ora isso promete outros voos e deixa-nos com água na boca.

Uma palavra final para a capa e para os desenhos de Lara Roseiro, que em muito ajudam a transformar o livro num objecto estético. As ilustrações, onde a leveza feminina está presente, falam sempre aos olhos. O resultado é um livro escrito com o coração e a sensibilidade.

      

Armor Pires Mota: a justa homenagem a um vedor da autenticidade popular

Como forma de reconhecer o mérito profissional e de assinalar os 50 anos de actividade literária de Armor Pires Mota [APM] o Rotary Club de Oliveira do Bairro vai prestar-lhe uma justa homenagem.

armormotaAviso à navegação: não tenho estado sempre de acordo com o que APM tem escrito ao longo dos anos, quer em textos de cunho vincadamente político, quer noutros centrados na área da investigação histórica, ou em alguns fragmentos das várias monografias que publicou. Isso não me impede de lhe reconhecer nobreza de carácter na defesa dos pontos de vista em que acredita. Nem de lhe creditar inestimáveis contributos para o conhecimento da história local de algumas terras do concelho de Oliveira do Bairro.  Toda a terra merece ter a sua história e algumas não a tinham. Ou porque quem a poderia escrever desapareceu cedo do mundo dos vivos – é o caso do padre Acúrcio, ou de Miguel França Martins, em Oliveira do Bairro – ou porque simplesmente outros não se sentiram capazes de levar a cabo tal empreendimento, ou não atribuíram ao conhecimento do passado a dignidade que lhe é devida.

No que à investigação histórica diz respeito, convém ainda dizer que a História não é uma ciência exacta e que ser isento não é o mesmo que ser neutro. Com toda a frontalidade, APM reconhece, por exemplo, que a “República do Troviscal” é um capítulo “altamente polémico” (1) e que portanto pode ser objecto de diferentes interpretações. A visão histórico-cultural que nos deixou do Troviscal é a “sua” e pode não coincidir, em alguns pontos, com a nossa. Mas manda a verdade dizer que a produziu baseado em documentos e testemunhos. E que não ilude ou omite os factos para afirmar ideologias. Os factos estão lá, apenas os interpreta à sua maneira, podendo outros iluminá-los de modo diferente, mas não necessariamente de forma mais objectiva. Dir-se-á, então, que para se reconhecer a validade de um pensamento se dispensam as afinidades pessoais ou as convergências ideológicas. Importante é reconhecer o talento e os relevantes serviços prestados à cultura e à região, como é o caso.

À minha frente está o texto em que APM anuncia a sua despedida como chefe de redacção do Jornal da Bairrada (2). Recortei-o e guardei-o por várias razões: em primeiro lugar, porque é um marco e um virar de página no itinerário de vida do escritor; depois, porque espelha a lucidez e a sabedoria de quem sabe retirar-se a tempo e não tem medo de dar lugar aos novos; finalmente, porque essa tocante mensagem de despedida é também um comovente hino de louvor à Bairrada que traz no coração. A hemoglobina social e cultural da região percorre-lhe as veias. Uma região da qual conhece as terras e as gentes – que são a sua raiz e alma – como poucos. Arrisco dizer: como mais ninguém.

Dos escritores nascidos na Bairrada, e que escreveram sobre ela, o bustuense Arsénio Mota é para mim o que melhor mostra perceber a importância dos estudos regionais e o que mais contributos tem adiantado para um estudo sistemático da região. Tem esboçado as grandes linhas de descrição regional e mostrado a importância do regional enquanto escala de abordagem e espaço cultural significativo e dotado de valor e identidade próprios. Já APM é o que melhor tem captado a essência e as subtilezas da Bairrada, assumindo-se como o seu genuíno e mais representativo aedo.

Ao plasmar os motivos locais em algumas das suas obras – recolha de lendas, costumes, folclore, romarias, jogos tradicionais – tem prestado um assinalável serviço à divulgação e afirmação da identidade regional da Bairrada. Mas é sobretudo em alguns livros de ficção, nomeadamente os que albergam contos com indiscutível sabor ao chão, às gentes e ao ambiente da Bairrada – leia-se O Vendedor de Tapetes, ou As Vinhas da Memória – que APM mais se parece cumprir como escritor. É aí que alguns elementos identificadores da matriz bairradina mais se evidenciam: descreve com mestria as manhas, os truques e os ardis do aldeão pacato e curvado ao peso da terra, mas ao mesmo tempo matreiro e astucioso, que ninguém engana quando se trata de defender o que lhe pertence.  APM escava uma galeria “de povo arrancado à terra, ao trabalho, aos costumes, à religiosidade, aos impulsos, aos sonhos de que é feita a vida do bairradino” ensinando-nos a ver, “com olhos a um tempo realistas e amorosos, a aldeia portuguesa, que ele soube surpreender a partir do grande conhecimento que tem da região onde vive (3).

À medida que as identidades individuais e colectivas se forem esbatendo por força dos processos de globalização, os livros de APM vão permanecer como testemunho do que foi possível fixar enquanto presença das realidades regionais nas obras literárias e vão ganhar uma nova dimensão: a de uma espécie de relicário da memória, onde poderemos então matar saudades de mundividências que já não há.

É este homem, que tanto nos tem ajudado a respeitar a grande matriz, que o Rotary vai homenagear. Na já extensa folha de serviços prestados à cultura e à região, cabem o poeta de Cidade Perdida ou Baga-Baga; o autor de monografias históricas como Mamarrosa Milenária  ou Oiã, Terras e Gentes; o cronista de Tarrafo, um diário escrito sob a emoção da guerra na Guiné, ou de romances de literatura colonial como Cabo Donato, Pastor de Raparigas e Estranha Noiva de Guerra; o perscrutador da alma e das Histórias de Artesãos, que retratou em pinceladas coloridas, num tempo em que o artesanato era uma disciplina importante da escola da vida; o estudioso de Santa Casa, Vida e Obra, livro que ajuda a conhecer melhor mais um pedaço do passado concelhio, a evolução e as personalidades que ajudaram a manter viva a Misericórdia de Oliveira do Bairro; o conhecedor atento das Irmandades das Almas e de outro património religioso, alternando trabalhos como O Préstimo a Caminho de Lisboa, os Bombeiros de Vagos, ou os Falcões do Cértima; enfim, o jornalista tarimbado e de observação aguda da Soberania do Povo e do Jornal da Bairrada, fascinado pela crónica e a reportagem, com vasta colaboração dispersa por muitos outros jornais e revistas.

Apetece dizer, a quem é dono de uma vida assim tão preenchida: não pode dar-se mais quem tanto já se deu por inteiro. Venha de lá a homenagem, que deve ser, tanto quanto possível, uma comunhão ritual, isto é, uma convicção e não uma convenção.


(1) Armor Pires Mota, Troviscal. Visão histórico-cultural, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 2005, p. 8.
(2) Armor Pires Mota, “Laços de despedida”, Jornal da Bairrada, 02.01.2008, p. 2.
(3) Joaquim Correia, recensão a O Vendedor de Tapetes, Jornal da Bairrada, 28.06.2001, p. 12.

Figuras da Bairrada — Miguel França Martins, o “Zil de França”

Além de Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, Miguel França Martins, que usava o pseudónimo “Zil de França”, foi conservador do Registo Civil, presidente da União Nacional concelhia, Provedor da Misericórdia, jornalista e poeta da Plêiade Bairradina.

Colaborou com regularidade no Alma Popular, sobretudo com poesias, e no Jornal da Bairrada, onde assinava a rubrica Tempos Idos, versando temas oliveirenses. Dirigiu também o Correio de Cértima, um jornal regionalista lançado em Oliveira do Bairro em 1930, para atender aos interesses da região. Nele se assumia que a principal riqueza era o vinho, embora reconhecendo ser o mesmo, em geral, de “deficiente fabricação”.[1]

A nobre utopia ia ao ponto de idealizar que a Bairrada, mais cedo ou mais tarde, iria fatalmente apresentar no mercado mundial de vinhos “um tipo consagrado”. Curiosa, também, neste mesmo número do jornal, uma notícia sobre a Palhaça, cuja população queria ver desanexada a freguesia do concelho de Oliveira do Bairro. Tudo terá começado por causa da imposição camarária da cobrança a dinheiro do imposto braçal, medida que visava, segundo o jornal, “acabar com a bandalheira de pagar ao encarregado dos serviços camarários um dia de trabalho por um copo de vinho na adega”[2].

Como Miguel França Martins nunca publicou qualquer livro, quase ninguém conhece os saborosos textos que derramou na imprensa, sem esquecer os dedicados ao teatro popular e versos para cortejos populares, igualmente inéditos[3]. Viria a falecer prematuramente em 20 de Agosto de 1959, contava então 59 anos de idade. Era casado com Noémia Clementina Figueira, também ela conservadora do Registo Civil no nosso concelho[4].

Tenho em meu poder um número significativo de textos que Miguel França Martins publicou no Jornal da Bairrada. É prosa bem esgalhada, com ritmo, capaz de prender o leitor logo nas primeiras linhas. Uma escrita viva, atraente, que recolhe usos e costumes de tempos idos, evoca figuras típicas da região e narra episódios com laivos picarescos, de inegável cunho popular. Peças importantes, a meu ver, para uma sociologia dos costumes bairradinos. Estes textos mereciam ser reunidos em livro, para prazer e conhecimento de todos. Duvidam? Deixo aqui só um cheirinho dessa prosa fluente e saborosa, coberta ainda com o pó do esquecimento. Foi publicada no Jornal da Bairrada de 28 de Novembro de 1953 e tem por título PÃO E VINHO … PÃO E VINHO…

“Na doce esperança de que no outro Mundo a Morte é Vida – Vita Mutatur, non tollitur – ainda, há pouco tempo, na nossa região, se festejava a Morte como um simples acontecimento transitório da Vida, para uma outra vida melhor. Sim, ainda há muito poucos anos que foi abolida, nos funerais da nossa região, a patuscada nos enterros, com que, lautamente, se banqueteavam à custa do morto todos aqueles que acompanhavam o féretro ao cemitério. E, misturados com coroas, em cujas dedicatórias se liam, a letras doiradas, saudades eternas e últimos beijos, se conduziam à cabeça das mulheres, de luto, canastras de pão alvo da Ti Joana Padeira, que regalava os olhos e abria o apetite. Canastras de pão e almudes de vinho e, às vezes, até queijo amanteigado da serra a esbarrondar-se da casca, ante os olhos ávidos do acompanhamento, que seguia, no silêncio das grandes dores.

Estas iguarias eram conduzidas para um estabelecimento da vila e ali se estabelecia, então, o Festim Post Mortem que, às vezes, até acabava com pancadaria, muito principalmente se metesse queijo e se alguns dos assistentes o fossem distribuindo pelos bolsos.

Ficou tradicional a interpretação dos sons que provinham das torres que tinham três sinos. Quando falecia um remediado, só tocavam dois, cujo som se assemelhava ou era interpretado com a letra da seguinte frase: “Pão e vinho … Pão e Vinho …”. Mas quando falecia, na terra, um rico lavrador, entrava, então, a tocar, também, o terceiro sino. Com som mais cavo, mais doloroso e mais profundo, que mais longe levava o som lúgrube dos seus gemidos e a ementa da merenda, completava-se a frase: “E… queijo…. e… queijo…”.

A patuscada nas lojas desapareceu para dar lugar à abertura da porta da adega, em casa do morto.

Quando faleceu a mulher do nosso engraçado Manuel João, o vizinho Marcos Vela foi apresentar, ao seu amigo enlutado, os sentimentos da sua dor e o Manuel João, em vez de agradecer as condolências sinceras que o Marcos lhe apresentava, diz:

– Olha, ó Marcos, vai abrir a porta da adega, bebe e dá de beber a essa gente.

Esta atitude é já uma última reminiscência dos velhos e apagados costumes do “Pão e Vinho… Pão e Vinho… e Queijo…”.

Estes costumes desapareceram, mas o que não desaparece, nos corações das pessoas bem formadas, é que, realmente – Vita mutatur, non tollitur”.


[1] Correio de Cértima, n.º 3, 30.08.1930.

[2] Idem, n.º 6, 25.10.1930.

[3] Arsénio Mota, Figuras das Letras e Artes na Bairrada, Porto, Campo das Letras, 2001, pp. 93-94.

[4] Jornal da Bairrada, Ano IX, n.º 217, 29.08.1959.