Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – II (ou o muito que falta esclarecer…)

 
1. Quando se fala de extinção ou agregação de freguesias, com tudo o que isso implica de redução orçamental e de funcionários, é indisfarçável, à direita e à esquerda – mas sobretudo nos partidos do arco da governação – o mal-estar e uma evidente falta de consenso. É que esta reforma não deixará de ser acompanhada por uma recomposição do mapa político e por isso vai afetar todos os partidos. Cabe, pois, começar por perguntar: a quem interessa alterar a contabilidade político-partidária nas eleições locais? Por que é que nenhum governo, ao longo de mais de 150 anos, ousou reformar a administração local onde coexistem  municípios despovoados e freguesias maiores que municípios?
 
2. Convém, no debate em curso, não ter memória curta e relembrar algumas verdades elementares: o memorando de entendimento com a troika foi avalizado pelo PS, pelo PSD e pelo CDS. Mas dizer isto é apenas uma meia-verdade. É preciso acrescentar que a Lei n.º 22/2012 não foi votada favoravelmente pelo PS, PCP e Bloco de Esquerda e que uma das medidas acordadas com a troika foi a redução do número de municípios. Isto é: não apenas juntas de freguesia mas também câmaras municipais. Outra das medidas que constam do memorando aponta para a necessidade de reduzir em 15% os quadros dirigentes da administração local. Curioso foi ouvir na mesma altura o então secretário de estado da administração local – o socialista José Junqueiro – referir que seriam poucas as câmaras municipais extintas ou fundidas. Já nessa altura de governação socialista se apontava para a redução do número de executivos e assembleias de freguesia. Apontava-se para um número que rondava as 1500, praticamente um terço das existentes. E quanto à redução de dirigentes autárquicos logo sentenciou António Costa: “é um absurdo”. E Rui Rio afinou pelo mesmo diapasão: “ é uma imbecilidade técnica” (1).  Que dizer de tudo isto? Apenas uma coisa: que nenhum dos grandes partidos do arco da governação está vivamente interessado em reduzir executivos camarários.
 
3. Isto, apesar das evidências mostrarem que nos últimos anos a evolução dos recursos humanos das autarquias andou em contraciclo com a contenção nos serviços centrais do Estado. Enquanto estes, entre 2005 e 2009 (e a assimetria será, hoje, com toda a probabilidade, ainda maior) reduziram em 8% o número de funcionários, o pessoal das câmaras aumentou 5,6% no mesmo período (2). Nada melhor, para iluminar esta questão, do que recuperar algumas ideias expressas pelo Eng.º Fernando Silva num lúcido e corajoso texto publicado no Jornal da Bairrada, a que deu o título Os Municípios e as Finanças do País. Entre outras verdades que ferem como punhais, afirma: “Para municípios com população entre 10.000 e 50.000 habitantes, os seus executivos camarários são compostos por 7 membros e as respetivas assembleias municipais terão em média cerca de 40 membros (…). Os membros dos executivos com pelouros atribuídos são remunerados e, após dois mandatos a tempo inteiro, têm assegurada uma reforma. O tempo de permanência em funções é também contado a dobrar para efeitos de reforma. Assim, ao fim de 37 anos de democracia temos várias dezenas de milhar de ex-autarcas com direito a reforma, e somas exorbitantes são gastas nos seus vencimentos”(3). A esta e a outras verdadeiras pedradas no charco dos interesses instalados ninguém ousou dizer nada. Apenas se lhe referiu, de raspão mas em tom concordante, o diretor do Jornal da Bairrada na edição de 19.05.2011. Tudo o resto ficou alagado em silêncio, que o caladinho é o melhor…
 
4. Relembre-se que o chamado “pacote autárquico” não se restringe apenas à controversa agregação de freguesias. Inclui também a legislação eleitoral autárquica e a da própria gestão municipal. A fazer fé no que vai sendo anunciado, o principal partido do governo terá já ultimado a sua proposta de lei eleitoral. Mas precisa de a negociar com o parceiro de coligação e em fase ulterior com o principal partido da oposição. Fala-se mesmo numa verdadeira revolução no poder local. No essencial essa proposta de lei contempla o seguinte: executivos homogéneos escolhidos pelo presidente da câmara – isto é: sem vereadores da oposição – como forma de se garantir a governabilidade; controlo político a cargo da assembleia municipal, que fica com poderes reforçados, entre os quais o de poder chumbar a lista de vereadores apresentada pelo presidente; os presidentes de junta (deputados municipais por inerência) não vão poder votar a composição do executivo municipal nem moções de censura aprovadas pela assembleia municipal; finalmente, a proposta de lei eleitoral aponta para uma forte redução no número de vereadores e de deputados municipais (4).
 
Que tem a dizer a isto a população do concelho? E os principais agentes políticos? Será que os presidentes de junta não se vão transformar em meras figuras decorativas se não puderem, pelo menos, votar em matérias que diretamente lhes dizem respeito, nos assuntos específicos da sua freguesia?  Concordam com a diminuição do número de vereadores e com as moções de censura autárquica, à semelhança do que acontece com o governo? Aprovam o reforço do poder das assembleias municipais e a constituição de executivos monocolores? Não serão estes incompatíveis com a filosofia do sistema proporcional que consagra a representação das minorias? Não funcionarão como uma espécie de maioria absoluta que tende a perpetuar os equilíbrios políticos atingidos? Com a proporcionalidade afetada, o que vai acontecer aos partidos com menor expressão eleitoral no concelho? É legítimo anular-se, assim de uma penada, a correspondência entre a percentagem de votos e a percentagem de deputados de cada partido? Subscrevem os cidadãos do concelho que o Presidente da Câmara possa escolher o seu executivo de entre todos os eleitos – incluindo os da oposição – e nessa medida possa igualmente destituí-los durante o mandato caso entenda – no que isso tem de subjetivo – não estarem a desempenhar bem o seu papel?
 
5 Regressemos à agregação de freguesias para perguntar: as que se situam no perímetro urbano devem acabar, transitando as respetivas competências para o município? E quanto aos concelhos: não seria de agregar alguns para lhes dar escala? Fará sentido continuar a existir um concelho como o de S. João da Madeira? E que dizer da limitação dos mandatos dos autarcas? Continua a fazer sentido, caso passem a ser controlados pelas moções de censura? E os autarcas condenados em processo: permanecem em funções ou devem ser pura e simplesmente demitidos e impedidos de se candidatar a novos mandatos? E por que não suspender o mandato, até à conclusão do processo, aos autarcas constituídos arguidos ou até acusados, substituindo-os pelo candidato posicionado imediatamente a seguir na lista vencedora? É que agregar freguesias deixando tudo o resto na mesma é um pouco o vira-odisco-e-tocao-mesmo de que já estamos a ficar cansados. Não é uma verdadeira reforma, mas sim uma caricatura distorcida dela própria. Tantas perguntas. Quantas respostas? Tudo isto ficou por dizer nas sessões de esclarecimento. Culpa da assembleia municipal? Não certamente. Culpa de todos nós, que parecemos distraídos e abstraídos do que se passa à nossa volta. O silêncio, que muitas vezes é uma forma de poder, pode ser também uma forma de consentimento.
 
6. Estas são algumas das questões urgentes e inadiáveis a que urge dar resposta. Não tanto por se encontrarem na ordem do dia, mas precisamente porque às vezes o não estão. Não se veja neste texto um libelo acusatório contra os partidos políticos, porque quem preza a democracia sabe que esta não existe sem eles. Nem uma rejeição liminar da reorganização administrativa territorial autárquica. Quando muito, assume-se contra “esta” reorganização. Acontece que se multiplicam os sinais de enfado para com a falta de qualidade da nossa democracia. Há sinais evidentes de descrédito e desconfiança. Por isso se exigem respostas claras e assertivas para problemas complexos.
 
Ninguém desconhece que nas estruturas partidárias a contestação interna é por vezes vista como uma forma de traição, sobretudo quando tornada pública. Como sublinhou o Eng.º Fernando Silva no texto já citado, muitas vezes não há oposição interna “pois isso poderia ser razão suficiente para ser excluído das listas de candidatos (…). Poucos são aqueles que, na praça pública, realmente dizem o que lhes vai na alma e também não o fazem nos locais próprios por receio de retaliação sobre si, seus familiares ou empresas”. Elucidativo, por vir de quem vem, de quem sabe do que fala.
 
Também por isso se saúda, no debate que está a ser travado sobre a agregação de freguesias, a independência de espírito e até o desassombro de alguns conhecidos militantes políticos, nomeadamente dos mais próximos ideologicamente do atual governo. Em blogues, ou até nas reuniões de esclarecimento, sabem colocar os interesses da sua terra, ou das populações do concelho, acima dos particulares interesses do partido em que militam. Dizendo abertamente que a Lei n.º 22/2012 é má e foi gizada à revelia dos autarcas. Neles, há ponderação e respeito por direitos conflituantes. Batalham pela razão quando outros procuram excitar as emoções que transformam os cidadãos em súbditos. Para eles, um aceno de simpatia.
 
Voltarei ao tema, para (talvez) então concluir. Porque, a pretexto da mudança, o objetivo não pode ser abafar as vozes discordantes em nome do irrefragável cumprimento da lei. 


(1) Expresso, 07.05.2011, p. 4.
(2) Público, 08.05.2011, p. 3.
(3) Jornal da Bairrada, 05.05.2011, p. 2.
(4) Expresso, 21.07.2012.

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – I (Reflexões em torno da reunião na Palhaça)

 

1. Introdução

Em boa hora a Assembleia Municipal de Oliveira do Bairro tomou a iniciativa de promover sessões de esclarecimento nas seis freguesias do concelho. A iniciativa vale ouro e é digna de registo, se tivermos em conta o fosso cavado entre as elites políticas e o resto duma população que pouco cultiva o exercício da cidadania.

O que aconteceu na Palhaça – e, segundo foi dito, em todas as outras freguesias do concelho – pode considerar-se uma verdadeira festa da democracia. Houve participação cívica, vontade de clarificar, debate intenso mas sem picardias ou ofensas gratuitas. Ninguém quis ter razão a qualquer preço. Mais do que convencer, houve disponibilidade aberta para cada um se deixar convencer e não para chamar o outro aos seus pontos de vista.  É isto que um verdadeiro diálogo tem de integrador. É assim que se ganha a confiança das populações numa matéria tão controversa e escaldante como esta. Não há entendimento mínimo onde não há confiança. E a confiança é o que a má-fé mais pretende roubar-nos.

Gratificante para as gentes da Palhaça foi ouvir dizer que esta reunião foi a que teve mais cidadãos a intervir. E aquela onde mais jovens deram o seu testemunho. Também aqui houve festa da democracia. A sua qualidade só pode melhorar com a participação dos mais novos. A eles cabe não permitir que a democracia fique esvaziada na sua componente de participação e intervenção popular nos assuntos públicos. Melhor que ninguém, os mais novos começam a perceber que não há vitórias sem luta nem luta sem empenhamento ou até algum sofrimento. Por isso não desarmam nem dão tréguas a quem governa, porque sabem que sem movimento não se gera a mudança.

2. O papel das freguesias

As freguesias sempre desempenharam em Portugal um papel de grande relevo. Ao prestarem às populações serviços públicos de proximidade, tornaram-se de há muito uma referência incontornável do poder local. São um património dos portugueses e não uma coutada de qualquer governo.

É nas eleições autárquicas que encontramos uma maior proximidade entre eleitores e eleitos. Nas pequenas freguesias até conhecemos os candidatos e, em muitos casos, mantemos com eles relações de amizade, proximidade e vizinhança. Quanto mais se enquadram em território do interior, mais pequenas, periféricas e distantes ficam da sedo do poder concelhio, tanto mais as populações dessas freguesias precisam de recorrer ao presidente de junta. Falamos de pessoas que muitas vezes apresentam níveis de instrução elementar, sem grande mobilidade geográfica e com um estatuto socioeconómico muito baixo, portanto com alguma dificuldade de integração social.

São sobretudo as pessoas idosas, as mais marcadas pelo passado e as de origem social mais modesta – de algum modo excluídas do crescimento económico e de outras dimensões do desenvolvimento – quem mais recorre e valoriza o papel do presidente de junta. Reconhecem-lhe ainda hoje uma importância idêntica, em termos de estatuto social, à que tinha um padre ou um professor nas sociedades predominantemente rurais que persistiam no início do século passado. O presidente da junta é, nestes casos concretos, “pau para toda a obra”: desbloqueia situações embaraçosas, estabelece contactos, ajuda a preencher documentos, enfim, funciona como elo de ligação entre os anseios das populações e os serviços de proximidade, encurta distâncias entre os centros de poder e as periferias. Por todo este esforço e dedicação recebem esses presidentes de junta uma contrapartida monetária que muitas vezes não chega para a gasolina que gastam nas andanças a resolver os problemas dos outros.

3. Efeitos da aplicação da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio

Através desta lei e sob o pretexto da reforma do poder local o governo definiu uma estratégia que assenta na extinção de freguesias e mantem inalterados os concelhos. Fê-lo “de régua e esquadro”, com base em critérios meramente quantitativos, sem obter consensos prévios, mandando às malvas a opinião dos autarcas. Quer cortar o mais possível e no prazo mais curto. Invoca, entre outros argumentos, o da diminuição das despesas. Nada de mais falacioso. Basta referir que o peso da despesa das freguesias no orçamento do estado é de 0,098%. Quanto se vai poupar, ninguém sabe. Veremos no futuro se os custos operacionais deste novo modelo de gestão autárquica diminuem ou não. E o pior de tudo isto é que uma genuína descentralização do poder raramente é compaginável com o declarado propósito governamental de controlo e consolidação das finanças públicas.

Não são, portanto, os critérios economicistas ou de base financeira que presidem ao reordenamento territorial. São critérios técnicos e administrativos – e, por que não dizê-lo? – de base política e vincadamente ideológicos. Ideológicos, sim, porque numa pura lógica de mercado se tende a valorizar tudo o que é média ou grande concentração urbana, por ser aí que confluem os fatores estratégicos de competitividade e decisão, sejam eles públicos ou privados. Ao invés, tudo o que é pequeno e singular tende a ser esquecido, desprezado ou rasgado do mapa. E assim se rasuram as freguesias de menor dimensão, precisamente aquelas que valorizam mais o património comum e as identidades socioculturais, numa luta constante contra o rolo compressor dum falso “progresso” que tudo esmaga e nivela à sua passagem, uma espécie de camartelo impiedoso que reduz a cacos as singularidades e a carga subjetiva e simbólica que esses pequenos agregados populacionais transportam. E conviria não esquecer que algumas dessas pequenas comunidades que a lei agora descarta entroncam as suas raízes nos primórdios da nacionalidade. São espaços onde habita gente “estranha” para um certo provincianismo bem-pensante que desvaloriza – quando não ridiculariza – quem gosta de preservar as suas tradições e a sua religiosidade, quem pauta, ou ainda o fez até há bem pouco tempo, os ritmos de trabalho e descanso pelos sinos da igreja, gente que nunca teve uns dias de férias e ainda confia na honra da palavra dada, sem precisar de passar os compromissos a papel e competente assinatura.

Enumera a Lei 22/2012, no artigo 2.º, alguns objetivos de reorganização administrativa, entre os quais se contam a coesão territorial, a melhoria e desenvolvimento dos serviços públicos de proximidade prestados pelas freguesias às populações e o alargamento das atribuições e competências das juntas de freguesia.

Como diz? Pode repetir? – apetece perguntar. Nenhuma destas miríficas vantagens foi confirmada por qualquer dos participantes no encontro da Palhaça (e, presume-se, nos encontros anteriores). Ninguém sabe que atribuições e competências vão ser cometidas às novas freguesias, para lá das que já existem. Como ninguém sabe dizer o que significam os 15% que vão beneficiar as freguesias criadas por agregação. Dará esse dinheiro para construir um fontanário? Talvez sim. Mas em que espaço físico da nova freguesia agregada vai ser construído?

Embora nos preocupe sobremaneira o que se passa no nosso concelho, a dimensão dos problemas que a aplicação desta lei coloca tem repercussões à escala nacional. Afeta as relações de poder e de prestação de serviços de proximidade em todo o território, com consequências ainda mais gravosas nas pequenas freguesias do interior e do mundo rural. Extingue freguesias nos territórios em vias de desertificação e onde as populações mais precisam delas e dos seus presidentes de junta. Ao proceder deste modo, deixa de salvaguardar os direitos e garantias de muitos cidadãos, especialmente dos que se encontram em situação de particular vulnerabilidade.  Ao promover a desertificação, em resultado do desaparecimento de alguns serviços essenciais, está a contribuir para um dos muitos fatores de perturbação da sociedade portuguesa contemporânea: o excesso de litoralização, com todo o seu cortejo de desempregados e multiplicação dos riscos e ameaças à coesão social.

A redefinição do território sempre foi matéria delicada e geradora de conflitos. As resistências locais ao reordenamento territorial não são de hoje. Se não deixa de ser legítimo que uma sociedade, no seu processo de evolução, procure redefinir o seu território, já não parece legítimo que o faça retirando importância a um corpo político – as juntas de freguesia – que por tradição sempre funcionou, a par dos municípios, como contraponto do poder central.

Não cabe nestas linhas tentar mostrar as razões pelas quais a verdadeira reforma – a dos municípios – fica por fazer. Mas se as juntas de freguesia, como afirmou o diretor do Jornal da Bairrada, já dependem hoje “mais das transferências de verba das câmaras e do governo central do que da vontade própria do seu presidente e fregueses” então porquê toda esta obstinação em as enfraquecer ainda mais, ao ponto de acabar com muitas delas?

Num tempo de recursos escassos a reorganização administrativa torna-se mais premente. Todos concordam que é preciso gastar menos, mas ninguém acaba com algumas empresas municipais de utilidade pública duvidosa e que se diz à boca cheia funcionarem como agências de emprego para os correligionários políticos que as promovem. Um estudo recente mostra que a grande maioria dos municípios portugueses não é sustentável. Falta-lhe escala para ter racionalidade económica. A solução apontada passa pela fusão de municípios. Então por que não se avança por aí? Malhas que o império (do poder municipal) tece…

Não é nas juntas de freguesia – pobres delas – que se multiplicam os cargos e as prebendas do costume. Não é nelas que se esbanjam dinheiros públicos em equipamentos desproporcionados e não raras vezes de gosto duvidoso. Também não é nas juntas de freguesia que encontramos alguns responsáveis políticos a contas com a justiça. E não foram os presidentes de junta, mas um presidente de câmara com responsabilidades acrescidas, por ser também presidente da Associação Nacional de Municípios, quem há anos atrás incitou outros autarcas a correr à pedrada os fiscais do ministério do Ambiente.

4. Da pronúncia da Assembleia Municipal

Segundo a Lei n.º 22/2012 cabe à Assembleia Municipal decidir quais as freguesias a agregar. Se o não fizer essa tarefa fica cometida a uma designada Unidade Técnica que funciona junto da Assembleia da República.  Não é fácil, há que reconhecer, encontrar critérios que apontem para uma solução justa.

Uma primeira questão que pode colocar-se reside em saber que solução serve melhor os interesses do concelho de Oliveira do Bairro: a pronúncia da Assembleia Municipal ou a da Unidade Técnica? No pressuposto de que só se gere bem aquilo que se conhece faz sentido que nos inclinemos para a Assembleia Municipal. Pensemos na Unidade Técnica a agregar, a partir de Lisboa, as freguesias de Bustos e Mamarrosa sem atender aos antecedentes históricos que determinaram a desanexação da primeira da freguesia-mãe em 1920. Bem sabemos que as relações entre as duas populações são cordiais e amistosas. Mas imaginemos essa agregação, ainda que por hipótese académica e que as instalações da futura junta de freguesia eram deslocalizadas de Bustos para a Mamarrosa. Não poderia tal decisão despertar alguns demónios porventura ainda adormecidos?

Mas pressionar a Assembleia Municipal a decidir exige que se pense previamente no seguinte: ao ser reconhecido, em todas as reuniões de esclarecimento, que estamos perante uma Lei de contornos muito discutíveis e ainda por cima cozinhada à revelia dos autarcas, ao assumir essa responsabilidade não está a Assembleia a legitimar uma Lei de que discorda frontalmente?

Não se duvida que na sua heterogeneidade a Assembleia Municipal trata todas as freguesias do concelho por igual. Obrigá-la a decidir as agregações é um pouco como obrigar um pai a decidir relativamente ao futuro dos seus filhos, sabendo de antemão que essa decisão vai certamente beneficiar uns e prejudicar os outros. Em suma, tal decisão – e decidir é desagradar – não deixa de configurar algum grau de violência. E perante isso apetece dizer: que fique com o odioso e arque com as responsabilidades e a ira das populações quem patrocinou estas medidas. Assim mesmo.

De nada vale elogiar o papel das freguesias e enaltecer as suas virtudes em prol do bem comum e ao mesmo tempo propor-lhes casamentos de conveniência de utilidade mais que duvidosa. Do que foi possível ouvir na reunião da Palhaça fica a ideia de que esta reforma dificilmente vai melhorar o serviço aos cidadãos ou a coesão das populações. Não é fácil assistir de ânimo leve à mais que provável extinção de freguesias que nos habituámos a ver recuperar, cuidar e manter vivas práticas culturais diferenciadoras. Com esta organização territorial muitas freguesias são discriminadas negativamente, ao verem desprezado o seu património material e imaterial.

Será ainda possível alterar ou revogar esta lei? Seja qual for a resposta, esperemos ao menos que o marketing político não prevaleça sobre a racionalidade das escolhas.

Do Largo, da Rotunda, da Memória

Há terras que se orgulham dos seus largos. Gostam tanto deles que nem o rolo compressor do progresso se atreve a roubar-lhes o encanto primitivo. São relicários da memória que é preciso conservar a todo o custo.

Mas há outras terras em que esses lugares de afecto se transformam, de um momento para o outro, num corpo sem alma. Ora lhe esventram as raízes e encurtam o espaço, ora lhe derrubam os muros circundantes ou arrancam as árvores frondosas, subtraindo-nos a frescura da sua sombra. Quando tal acontece, varrem-se os lugares de memória, apagam-se alguns trilhos que davam sentido à nossa existência. É certo que existir é ir perdendo, mas isso dói.

Como no belo conto de Manuel da Fonseca, o largo é um espaço que remete para as recordações da infância, para a solidão ou o companheirismo. O largo já não é, seguramente, o centro do mundo, o lugar onde quase tudo acontecia. Mas de cada vez que lhe alteram a fisionomia – agora até tem rotunda como apêndice –  mais se torna um vulgar e descaracterizado cruzamento de estradas, igual a tantos outros.

Ter um largo é raro privilégio. Ter dois ou três, como acontece na Palhaça, é já uma bênção. Um terra com largo tem outros horizontes, convida a parar, impele ao convívio, torna-se mais acolhedora para quem a visita.

É estranho, mas às vezes até parece que a Palhaça se envergonha dos seus largos: o de S. Pedro, o das escolas e o da feira do gado. É assim que gosto de lhes chamar. Todos são, para mim, lugares de remotíssimas lembranças, pois todos me recordam belos caudais da história antiga da nossa terra. Ao primeiro, que já foi murado, teve portões de ferro e barracões fixos, e onde os miúdos iam “achar” a seguir às feiras, resolveram crismá-lo, pomposamente, de Praça! Nem se deram conta que as praças são normalmente quadradas, ou nalguns casos rectangulares, e que o largo da feira… tem forma triangular!  Como se tivessem vergonha de dizer, simplesmente… o largo.

Com a mudança da feira para a periferia, o largo foi ajardinado e adquiriu a dignidade de sala de visitas da freguesia. Apesar das alterações, houve o bom senso de deixar intactos o coreto e os três fontanários. Está bonito, com alguns registos antigos, caldeando tradição e inovação.

A seguir, foi a vez do largo das escolas sofrer alterações. Aqui, não é a rotunda que entristece: é o derrube dos muros e das árvores, coisa que talvez pudesse ser evitada. Acaso não teria sido possível continuar a estacionar no interior do recinto respeitando mais a sua individualidade? Assim, como agora se nos apresenta, é uma caricatura do que já foi.

Podem até achá-lo mais bonito e funcional, gostos não se discutem. Mas é como se lhe tivessem vestido um fato novo, no interior do qual existe um corpo sem a memória antiga das cores e dos cheiros, sem o registo das traquinices cúmplices dos tempos em que íamos à escola, amputado do espaço onde se desenrolaram feiras, festas, romarias e folguedos, onde se jogava à bola e ao pião e onde os menos afortunados, de pé descalço, esgalhavam os dedos nas raízes salientes das árvores ou se cortavam nos vidros partidos, ou nos cacos de louça da última feira. Enfim, um lugar despido das alegrias e cansaços dos que com ele se cruzavam diariamente, à frente do carro de bois – ou com os bois a caminhar sozinhos até às terras de pão e semeadura, enquanto os donos ficavam para trás, a emborcar o traçado ou o tinto carrascão na taberna da Ti Angelina, que era a minha avó.

Agora é a vez do antigo largo da feira do gado ser intervencionado. Algumas árvores já foram abatidas. Ao que parece, tinha de ser. Nada temos contra os melhoramentos em curso, bem pelo contrário. Uma coisa é tropeçar nas armadilhas do passado e deixar tudo como está, sem atender ao sinal dos tempos, atitude própria dos fundamentalistas da tradição, ao ponto de não se importarem com o regresso a um estilo de vida em que se vivia sem água canalizada, sem estradas alcatroadas ou sem telefone; outra, bem diferente, é banir o que a tradição tem de melhor, não incorporando isso – quando tal é possível – no novo espaço renovado.

Entendamo-nos: o mundo progride a velocidade estonteante. Isso obriga-nos a inovar, a ser originais na forma de resolver as coisas. O que se pede é que, sem prejuízo do futuro, se atenda à importância das representações (imagens) mentais que os cidadãos têm da sua terra. Não é fácil assistir ao quebrar dos últimos elos de ligação às origens. Nem assistir, mesmo em nome do progresso, à falta de respeito pelo passado que nos identifica, e ao qual devemos ser fiéis.

Costuma dizer Eduardo Lourenço que somos um povo em incessante despedida. É isso que sentimos quando se apagam vestígios que chegaram até nós, que de algum modo acalentaram a nossa existência e de repente têm morte anunciada, irreversível.

Auto dos Reis Magos e Cortejo de Pastoras

A tradição volta a cumprir-se. Vamos ter novamente cortejo dos Reis na Palhaça. É uma festividade que continua a ter lugar também em outras freguesias do nosso concelho – Bustos e Mamarrosa – assim como, ainda há bem pouco tempo, em localidades próximas da cidade de Aveiro: S. Bernardo, Angeja, Cacia e Fermelã.

Embora a representação do auto dos Reis seja a mais comum, há casos em que se realiza apenas o cortejo das Pastoras. Na Palhaça, a primeira vez que se realizou o auto dos Reis Magos foi no dia 6 de Janeiro de 1925, num tempo em que a I República se encontrava já agonizante e em vésperas de ser derrubada. Essa novidade foi anunciada na imprensa da época como “espalhafatosa cerimónia dos Reis”, à qual não faltaram as pastoras com as suas ofertas.(1)

O Auto dos Reis é uma festividade religiosa que não dispensa o seu lado profano. Por isso se encontra tão entranhado na cultura popular. Curioso é saber-se que em séculos recuados a igreja oficial os tenha combatido e mesmo proibido, em obediência ao espírito de Trento, cujo concílio se iniciou em 1545. Empenhada em lutar contra a degradação dos costumes e o avanço do protestantismo, não admira que a hierarquia eclesiástica tenha feito a vida negra aos vários Autos de feição popular, onde se contam, além do dos Reis, o do Natal, o da Paixão e o da Primavera. Apesar de todos celebrarem o nascimento do Deus cristão, o Tribunal do Santo Ofício não se coibia de atear fogo aos folhetos que os transcreviam.(2)

Anos de chumbo esses, em que os pecados se redimiam através da purificação pelo fogo, tão do agrado dos inquisidores da época. Mas ainda bem que esses Autos chegaram até nós, apesar do combate que lhes moveram. Apenas não se sabe se intactos ou se aquilo a que assistimos hoje não são apenas “restos” do que foi possível recuperar dessas representações de outrora, a que se terão acrescentado alguns “enxertos” saídos da retorta da imaginação popular.

Pode dizer-se que a tradição de representar estes dois autos (ou cortejos) dos Reis e das Pastoras, uma vez que remonta a tempos imemoriais, só recentemente foi recuperada na nossa freguesia. O mérito vai todo para Manuel Simões da Silva, o saudoso Manuel Tomé: um exímio contador de histórias – pícaras ou com laivos moralizantes – um fazedor de amigos e também um amante da natureza. A mata que deixou, ali bem perto da sua casa e da fonte do Bebe-e-Vai-te, era bem o espelho do seu amor à natureza, com quem invariavelmente todos aprendem. Ele sabia da poda das árvores e dos enxertos, do plantar em tempo certo, da preferência emotiva por certas flores e arbustos. Tudo o que era beleza natural derramava-se-lhe na alma. Para além de tudo isso, era ensaiador de teatro – no qual participou também como actor – e gostava de escrever nos jornais.

Diz-nos António Capão que a representação dos Magos na aldeia “nasceu de um conjunto de esforços seus”, em resultado da insatisfação que sentia ao assistir a estas representações em povoações vizinhas, ao verificar que “não correspondiam às suas aspirações de verosimilhança com os factos históricos do nascimento de Cristo”.(3)

A Palhaça pode orgulhar-se, aliás, de possuir dois valiosos documentos alusivos a estes autos, ambos fixados em livro. O acima referido, registo de inegável valor etnográfico, e um outro, da autoria de António Capão, no qual se refere ser o auto dos Reis Magos “uma peça de teatro representada ao ar livre” e em que “o palco onde corre a cena é a aldeia inteira”(4). Ambos os trabalhos são merecedores do nosso mais vivo aplauso e da nossa gratidão.

Resta acrescentar que, para lá destes dois nomes, muitos outros continuam gravados na memória dos mais idosos e são dignos do nosso apreço, pelo contributo que ao longo dos anos foram dando para o brilho desta festividade. Entre os já desaparecidos, avultam os nomes de José Teixeira (José Cabreiro), o inesquecível Herodes; José do Nascimento Marques Moura, António Julião, Guilherme Barreto, Isidoro Amaral e o sempre impecável e aprumado doutor da lei António Lourenço.

No domingo, dia 11 de Janeiro, tudo aponta para que as festividades tenham o brilho do costume nesta terra que tem por orago S. Pedro. Estão de volta o velho Semião, o Anjo Anunciador, os Reis do Oriente – os “ilustres estrangeiros”, como lhes chama o astucioso Herodes, para os lisonjear – o escravo Cingo, os Doutores da Lei e outras personagens deste Auto que ainda encanta e resiste enquanto festa com lugar reservado nas comunidades cristãs.


(1) O Democrata, 17.01.1925

(2) Expresso [Revista], 06.01.1990, p. 58

(3) Manuel Simões da Silva, Auto dos Reis Magos da Palhaça. Edição do Museu S. Pedro da Palhaça, 1998, p. 15.

(4) António Capão, “As Janeiras, as Pastoras e os Reis”, in Aveiro e o seu Distrito, n.º 2, 3 e 4. Publicação semestral da Junta Distrital de Aveiro.

Eleições autárquicas na Palhaça: a emergência do feminino

Mulheres Autarquias1É nas eleições autárquicas que encontramos uma maior proximidade entre eleitores e eleitos. Nas pequenas freguesias até conhecemos os candidatos e, em muitos casos, mantemos com eles relações de amizade, proximidade e vizinhança. Se essa proximidade já nos agrada, é ainda maior o regozijo quando assistimos a uma participação crescente das mulheres na vida política da nossa terra. Cresce a esperança de novos rostos, de vermos um pouco mais humanizado o poder e um pouco mais diligente o cuidado do outro.

A participação das mulheres na política e a acção transformadora que podem exercer é uma aquisição muito recente em Portugal. Começa praticamente com a revolução de 25 de Abril de 1974. Antes disso, muito caminho foi trilhado, num tempo em que, confinadas ao lar, lhes estava exclusivamente reservado o papel de esposas e mães. Tiveram que lutar e protestar para fazer ouvir a sua voz e reclamar direitos cívicos e políticos, o mesmo é dizer, dignidade e emancipação, instrução e participação activa na sociedade.

Há precisamente cem anos, Ana de Castro Osório apresentou ao Congresso Republicano de 1909 uma proposta para que fosse consagrado no respectivo programa a questão do voto feminino. Instaurada a República no ano seguinte, o Partido Republicano esqueceu rapidamente as “amplas liberdades” que prometera no tempo da Monarquia. Apesar de nas Constituintes muitos deputados terem visto no direito de voto das mulheres uma proposta justa, apenas três tiveram a coragem de publicamente manter as suas afirmações (1). Já vem de longe quem nos empurra, quando falamos em compromissos rasgados ou promessas por cumprir. O que choca, a esta distância, é a insensibilidade dos políticos da época para resolver o problema.

Em matéria de voto feminino, muito somos devedores – homens e mulheres – à médica Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a exercer o direito de voto em 1911. Como era viúva, teve artes de aproveitar uma lacuna da lei, que conferia direito de voto aos “chefes de família” (figura jurídica entretanto abolida da Constituição da República) mas sem especificar o sexo dos mesmos. Ora Beatriz Ângelo era “chefe de família” e assim deu um empurrão importante na luta pelo direito ao voto feminino. A incomodidade foi tanta que a lei acabou por ser mudada logo a seguir, para que casos idênticos não viessem a repetir-se.

As mulheres da Palhaça que em 2009 integraram listas partidárias, e por maioria de razão as que as encabeçaram, como aconteceu com as do PS e do CDS, estão de parabéns. Atreveram-se a dar a cara e a desafiar preconceitos, numa terra em que são ainda visíveis algumas representações tradicionais sobre o papel que devem ter na sociedade. A crescente inserção no mercado de trabalho deu às mulheres outra independência e legitimidade para intervir. Ainda bem que assim é. É tempo de se valorizar o que são capazes de fazer em vez de esperarmos que sejam perfeitas – como se fosse possível aos seres humanos ser perfeitos… – uma estratégia cínica que só serve para as diminuir. É um acto de inteligência reconhecermos a sensibilidade e o voluntarismo que denotam para as causas sociais, ou a riqueza de experiências e realidades vividas de que são portadoras.

Mais do que ficar à espera dum sistema de cotas e leis da paridade, as mulheres – e os homens que com a razão da sua luta se identificam – devem continuar a pugnar pelos seus direitos. Convém não embarcar em lugares-comuns generalizados, na lengalenga dos que dizem que as mulheres são melhores em tudo, que são elas quem manda em casa, que exibem um maior quociente emocional, que com o tempo lá chegarão (ao poder), que por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher (quase sempre anulada, para que o homem brilhe…) e outras larachas do costume. Nada de mais falacioso neste discurso masculino que mais não faz que perpetuar, ainda que de um modo subliminar, diferentes formas de dominação. Como se houvesse um determinismo de género no exercício do poder. As mulheres não têm que estar atrás ou à frente dos homens. Devem caminhar a seu lado. Não tanto por uma questão de igualdade, mas como forma de afirmar a sua identidade e diferença e abolir desigualdades. Sim, porque como costumava dizer Maria de Lourdes Pintasilgo a igualdade perfeita não existe apenas na lei e nas formas, mas na vida toda.

As eleições são um jogo onde uns ganham e outros perdem. Mas participar já é ganhar. As mulheres da Palhaça que de forma corajosa se envolveram na disputa eleitoral autárquica saem vitoriosas desta contenda, qualquer que tenha sido o resultado. Há que lhes dar os parabéns. E se por causa da sua condição de mulheres algum arrufo de discórdia ou alguma atoarda integrista lhes foi arremessada durante a campanha, isso significa que a crescente exposição pública a que voluntariamente se submetem está a incomodar os habituais velhos do Restelo e que a melhor forma de apressar o tempo da igualdade de oportunidades é intervir socialmente.

As mulheres na política melhoram a qualidade da democracia e conferem-lhe uma nova dimensão: uma representatividade nos órgãos eleitos mais conforme à composição da sociedade. Se as diferentes comunidades são compostas por homens e mulheres, que razões ou argumentos impedem que quem as representa politicamente sejam homens e mulheres?

Responda quem souber…


(1) João Esteves, As Origens do Sufragismo Português, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998, p. 73.

Coisas de que ainda me lembro (III)

Dizem que amigos são os da infância. Que ao caminhar-se para a velhice escasseia o tu-cá-tu-lá das farras e cumplicidades. Entre os que tive e ainda conservo, há um com quem nunca mais falei: o Arrais (1). Morava em frente à Escola e trauteava canções a torto e a direito. Uma delas, muito curiosa, versava sobre pessoas da nossa terra e respectivas profissões. Está incompleta e não sei quem poderá ajudar a recuperá-la por inteiro. Começava assim:

O doutor é Presidente, (2)
Arquitecto, o Manuel Vicente, (3)
O Justino é carpinteiro,
O Mandato faz caixões, (4)
O Zé Feijão é barbeiro,  (5)
Faz a barba a dois tostões.

O Camilo assa leitões, (6)
A Aida coze enguias, (7)
O Artur tira fotografias (…) (8)

O Arrais cantarolava uma outra, muito engraçada, de sátira social às sogras, de que também retenho algumas passagens:

Certa noite à média luz,
P’ra jantar fui convidado,
Em casa de minha sogra, (bis)
Era dia de feriado…

Ela era muito minha amiga,
Fez tudo p’ra me agradar,
É por isso que hoje me lembro, (bis)
Daquele famoso jantar…

Comi canja de galinha,
E arroz de cabidela,
Cebolas à cafreal, (bis)
Com rabinho de vitela…

Fricassé de amendoim,
Com miolos de toupeira,
Uma lagosta a suar, (bis)
Com conhaque da Malveira…

Fumei depois um havano,
E já no fim do jantar,
Comi fruta para um ano, (bis)
Mas faltava terminar…

Bebi café de alcatrão,
Comi torta e fiquei torto,
E depois duma soneca, (bis)
Quando acordei estava morto!

Lembro-me de, na década de 1960, a PIDE – polícia política do Estado Novo – fazer das suas na Palhaça. Fechou tudo quanto era entrada e saída da aldeia e avançou para o Café Capri. Encontrou o que queria, a denúncia não era falsa. Para apanhar o tresmalhado do rebanho – que se disse, depois, ser de Salgueiro –  partiu tudo o que encontrou pela frente. À saída, enquanto era arrastado e espancado pela polícia, com gente da terra a assistir, uns no largo e outros à janela das próprias casas, o detido gritava, a plenos pulmões: Ó povo da Palhaça! Acudam-me, que eu sou democrata e eles são da Pide! Ninguém acudiu, ninguém esboçou um gesto de revolta. Quando tudo passou, só se ouvia murmurar: era gente muito educada. Partiram vidros e cadeiras, mas perguntaram quanto era e pagaram tudo…

A Pide, que não brincava em serviço, incomodou também pessoas da Palhaça, que chegaram a estar detidas. Histórias por contar, a merecer que alguém apanhe o fio à meada. Não era preciso muito para se ser preso. Um dos detidos foi César Barreto, dono do café que funcionava onde está hoje o Ponto Final. Em Março de 1951, o Presidente da Junta responde a um pedido de esclarecimento do Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro: “sou a responder que de facto o Snr. César Augusto Barreto, desta freguesia, foi preso pela então PVDE, por hostilidades à Casa do Povo”(9). Esta detenção terá ocorrido até 1945 e nunca depois dessa data. Isto porque foi nesse ano que a PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado] passou a chamar-se PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado].

Outros nomes devem acrescentar-se ao de César Barreto. Aqui vos deixo, para memória futura, os de José Colchete (Areeiro), Fabiano (Albergue), Silvério Cura (Vila Nova) e Manuel Tomé (Roque). Foram todos presos ao mesmo tempo, e como se tratava de gente séria e honrada, a freguesia ficou envolta num manto de profunda tristeza. Era tempo de Páscoa, a anunciar promessas de videiras a abrir pequeninos olhos verdes e viçosos; era o tempo em que os soalhos das salas onde se beijava o Senhor se esfregavam à mão com sabão amarelo e onde havia sempre, sobre a mesa, um cesto com rendinha branca que servia para transportar as ofertas, às vezes uma simples maçã ou laranja com uma moeda de cinco tostões em cima, que se dizia ser para o sermão.

No salão da velha Casa do Povo, onde mais tarde havia bailes, vimos nascer a televisão a preto e branco. Lá, e no café do Sr. César Barreto – feito na cafeteira e com máquina a petróleo – moravam as duas únicas televisões que a Palhaça se orgulhava de ter. Os sábados à noite eram verdadeiros dias de festa. Que saudades do convívio semanal com o Rintintin e a Lassie, mas sobretudo do Bonanza: dos quatro heróis desta série de culto, o bom gigante dos murros demolidores, Hoss de seu nome, era o meu favorito. E havia ainda o Mascarilha, a cavalgar na pradaria com o fiel amigo índio, o Tonto. Às vezes, a seguir às barrigadas de western, sucediam-se as barrigadas de ameixas, pela calada da noite, no interior dos muros da Escola, que ficava ali mesmo ao lado.

Aqui fui crescendo, Palhaça, alimentando-me da tua seiva. Deste-me a conhecer um léxico próprio, que chamava “camoecas” às bebedeiras, “alveitar” ao veterinário caseiro, “apaijar” a aturar, “burra” à bicicleta”, “bernicoques” aos maneirismos, “choninha” aos sonsos, “corrilhas” às rugas da cara, “enjorcar” a inventar, “endrominar” a mentir, “moinante” ao que não quer trabalhar, “zangarilhar” ao que tremia ou oscilava para os lados, a puxar pela bicicleta. E outras coisas mais, como um “trancanaz” de broa (um grande pedaço), ou um prato cheio “ao caramulo”, por alusão à serra que te vigia e contempla a nascente.

Tudo mudou, Palhaça. Já ninguém acredita em ti se disseres que os sapos podem cegar uma pessoa, esguichando para os olhos a urina venenosa. Aliás, já não há sapos de boca cosida a anunciar feitiçarias. Vão rir-se de ti se disseres que os cabelos de mulher, mergulhados na água, se transformam em cobras. Já ninguém manda miúdos à farmácia comprar pó de Maio, electricidade em pó, ou “pòzinhos de alembradura”. Já ninguém acredita em ti, se disseres que é pecado apontar o dedo ao céu e que o Senhor ralha…

Já não há cântaros à cabeça nem bilhas de barro a encher ou a quebrar-se na fonte. Desapareceu o ranger da nora sob o peso dos alcatruzes. Ninguém convida os carteiros a matar a sede, ou para dois dedos de conversa, na frescura das adegas, em horas de calor de fornalha (escorropichavam-se sempre dois copos, pois era mau agoiro ficar-se manco).  Mal se sente o cheiro que sobrava da fermentação rebelde do mosto, corre pouco o bagaço no alambique. Já não se prova o vinho novo, a onze de Novembro. “Pelo São Martinho, fura-se o vinho” – rezava o adágio popular, que tinha uma outra variante: “Pelo São Martinho, vai à adega e prova o vinho”. O provérbio era levado a preceito, num corrupio de adega em adega, já com as faces a denotar a exaltação do vinho novo. Assim se cumpriam os oito mandamentos da lei de Baco: “o primeiro bebe-se inteiro; o segundo até ao fundo; o terceiro como o primeiro e o quarto como o segundo; o quinto bebe-se todo; o sexto do mesmo modo; o sétimo bebe-se cheio e o oitavo duas vezes meio”.

Em terra de vindimas e adegas só às vezes fartas, com tonéis a estalar prenhes de vinho e agricultores redondos de alegria, todos conheciam os Dez Mandamentos do Vinho, que no fundo se resumiam a dois: comer bem e beber melhor. A saber:

1.º – Amarás o vinho de Portugal, água não lhe deitarás para que não te faça mal;
2.º – Não jurarás pela folha da laranjeira, que é ofensa que fazes à sua prima parreira;
3.º – Guardarás pão e vinho na algibeira e com ele beberás quando te der na goteira;
4.º – Honrarás o odre de vinho, o chapéu lhe tirarás se o encontrares no caminho;
5.º – Não matarás, só se for cabra ou bode, a carne lhe comerás e da pele farás um odre;
6.º – Não entornarás, só se for bilha grossa, a boca lhe apararás para que verter se não possa;
7.º – Não furtarás, só se for para beber, porque, se te fores confessar, sempre te hão-de absolver;
8.º – Não levantarás odre deitado, antes te deitarás do outro lado;
9.º – Não desejarás beber por vasilha pequena, desta que bota a espuma fora e lhe fica a cor morena;
10.º – Não cobiçarás a salada do pepino: é muito fresca no verão e muito contrária ao vinho

Quase não se ouve o cuco, ou o canto vespertino e mavioso do rouxinol a trinar entre os salgueirais. Verdelhões, poupas e tentilhões, alvéolas, calhandras, toutinegras e ferreirinhas, quase tudo isso levou sumiço, a golpes de adubos químicos, pesticidas e herbicidas. Já não se destrava a língua aos gaios, que eram os nossos papagaios caseiros. Onde, a massa a levedar na gamela, com a cruz traçada para proteger do mau olhado? Onde, os teus cabanais para secar milhos e pastos? Quantos ainda restam, para nos proteger do sol a pique em tardes esbraseadas, ou para encontros furtivos, quando os simples arremedos de namoro eram rigorosamente vigiados? Tinha razão o Cesário (9), quando, montado na bicicleta, se cruzava com um cabanal situado ali para os lados do Bebe-e-Vai-te e costumava dizer: Ah!, se este cabanal falasse…

Não há duas maneiras de te amar, Palhaça, assim como não há duas maneiras de amar a liberdade. Quero-te mais aldeia do que vila – sim, que ganhaste, até agora, em ser vila? – quero-te mais vila que cidade. Não deites fora os ares plácidos e lavados que bordaram o teu rosto de menina. Se puderes, conserva campos de cultivo,  o verde-amarelo e o verde-escuro de algumas vinhas e pinhais, umas tantas fontes e carreiros. Não deixes que as silvas cerquem a enxertia. Resiste às investidas galopantes do eucalipto. Evita que os teus cafés virem espaços onde se trocam letras e influências, esgrimem cifrões e taxas de juro. Renega a construção em altura, ao menos no teu largo primitivo. Não coqueteies com arquitectos ou engenheiros a perda do teu carácter: nada pode substituir a beleza de um céu de anil encaixilhado no teu coreto singelo, encimado pela sentinela cívica que é o nosso padroeiro.

Agora é tudo tão rápido, Palhaça. Foram-se os abraços e beijos das escarpeladelas, sempre que alguém, mais afortunado, encontrava uma espiga vermelha. Desapareceram os bailes da “mi-careme”, tolerados na terceira semana da Quaresma para aliviar os rigores e a abstinência que ela nos impunha. Deixo-te aqui, e agora, onde cresci e apesar de tudo fui feliz, mesmo sem ter conhecido a tua Banda Filarmónica – regida por Adelino Ferreira Pinhal – ou a tua Troupe Dramática; mesmo sem ter assistido a festividades em honra do apóstolo Santo André, já no estertor da Monarquia, com jantar de bacalhau com baratas às 4 da tarde e sobremesa de castanhas e nozes. O vinho, esse, era tirado do cântaro de 20 litros, servindo de copo a medida de 5 litros (3). Malhavam-lhe bem, os teus homens de antanho. As minhas festas são já as do Mártir S. Sebastião e de Nossa Senhora da Memória. Ajoelhei à passagem dos teus andores e integrei as tuas procissões. Lembro-me bem: numa delas – era dia de comunhão solene –  fiz o percurso com as mãos em prece, mas ao chegar à zona dos cafés, apinhada de gente, deu-me a vergonha e coloquei-as atrás das costas. Sei que me perdoas esse vacilar duma fé que parecia indestrutível.

Deixo-te agora (está a custar, sabes?). É preciso voltar a página. Talvez saudades do futuro. Talvez. Agora, pelo menos, já não morre ninguém à sacholada, por causa da mudança dos marcos, ou do desvio de um veio de água. Entre aquilo que de melhor e pior já foste, e o que de melhor e pior possas ainda vir a ser, mon coeur balance.


 

(1) António Martins Pereira Arrais, filho de Augusto e Rosa Arrais. Morava ao lado do edifício das antigas Escolas Primárias, na estrada que da Palhaça sai para Sosa.

(2) O Presidente de Junta era o médico Manuel Ferreira Rebolo, formado na Universidade de Coimbra em 1935.

(3) Manuel Ferreira Vicente Júnior construtor civil, que construiu o edifício das Escolas Primárias.

(4) Manuel Mandato. Apenas construía caixões pequenos, para os “anjinhos”.

(5) José do Nascimento Marques Moura.

(6) Camilo Jacinto, casado com Mabília Cerveira da Silva e pai de António da Silva Jacinto (Camilo), Joaquim Cerveira da Silva, Fernando, Raul e Mabília (Bila).

(7) Conhecida por Aida Feijoa. Vivia, à época, numa casa situada ao lado (para nascente) do actual café Ponto Final. Irmã de Joaquim (alfaiate e com casa de pasto aberta aos dias de feira) e José Feijão.

(8) Artur Lemos Silva, também conhecido por Artur Calcinhas. Chegou a integrar (era “caixa”, como então se dizia) a Banda da Mamarrosa.

(9) Ofício n.º 13/51, de 8 de Março de 1951, endereçado pelo Presidente de Junta de Freguesia da Palhaça ao Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro.

Coisas de que ainda me lembro (II)

Revejo-te Palhaça, e quase não sei quem és. A mais antiga memória que de ti guardo é talvez a do pacato ambiente da tua hoje embelezada sala de visitas. O largo em terra batida, o coreto enegrecido e exposto à incúria dos que deviam tratar-te com esmero. A chiadeira arrastada dos carros de bois, as bosteiras quentes que os animais largavam na estrada esburacada e que um ou outro carro mais ronceiro calcava, salpicando as paredes das casas mais próximas.

Aqui cresci e aprendi a reconhecer a natureza lírica das tuas fontes, a saborear a frescura dos tanques de água fresca, a rebolar-me no coradouro dos Carregais: lugar ameno, ladeado de vergueiros e regatos mansos, circundado por manchas de pinhais a bordar o horizonte, onde, pelo Natal, ia apanhar tufos de musgo verde-claro para o presépio. Local idílico de paragem obrigatória no regresso a casa, mal terminava a missa de domingo na igreja de Vila Nova.

Aqui percorri as tuas ruas breves, sem nome ou com nomes improváveis; calcorreei as tuas vinhas à procura de ninhos e rebusco; saboreei o tempo das amoras; devassei o interior dos teus campos de milho a armar costelos; aprendi nomes de pássaros, alguns não dicionarizados, que conhecia pelo tamanho e a plumagem. Uns “caíam” nos costelos, outros não: sombrias (as mais apetecidas) boeiras, taralhões, cagachins, rêchêchês, vale-de-abóboras, landriscas, felosas, pardais, melros, calhandras, codornizes (nunca soube porquê, mas as que se apanhavam era quase sempre nos campos semeados de azevém), piscos, narcejas (es)torninhos, sarrazinas, pintarroxos e carriças.

Muito antes disso, deste-me a conhecer, inadvertidamente, a violência da morte dos animais: bovinos a tombar com fragor no matadouro do Sr. José Marques, que ficava ao fundo do talho, rios de sangue a escorrer pelo chão de cimento, a seguir à estocada, de um só golpe, com um ferro de dois gumes a que chamavam choupa; porcos sangrados ao alvorecer, nos rigores do frio e no tempo das salgadeiras, uma grande algazarra de gente e azáfama de alguidares, e eu na cama, tolhido de medo, com os dois indicadores espetados por longos minutos nos ouvidos, à espera que o estertor do animal esvaído em sangue calasse de vez os guinchos lancinantes; carneiros imolados pelo Zé Teixeira, a céu aberto, nas vésperas da Páscoa, num espaço onde se situa hoje o snack-bar S. Pedro. Parecia pedir-lhes desculpa, pois afagava-os mansamente – talvez à procura do ponto mais vulnerável – antes de os abater, abandonando-os, já sem vida, com olhos redondos e abertos de espanto.

Compreenderás agora, Palhaça, porque não estou presente no ritual antropológico que em tua honra se celebra todos os anos no largo das Escolas: a matança do porco à moda antiga, o rancho folclórico a tocar, néons, padarias e instituições bancárias a espreitar. A goela hiante do tempo tudo devora à sua passagem; devagar ou mais depressa, a vida é perda: vamos perdendo tudo, aos poucos. Sei que me desculpas a ausência em cenário tão artificial e diferente do antigo. Ausência não pelo cenário, mas pelo espectáculo que encerra. Sabes que tento honrar as tuas tradições por outras formas, e isso me basta.

Prefiro lembrar o som inconfundível do repicar dos teus sinos ou o toque das trindades. Ou a obrigação instituída de ficar em jejum três horas antes de comungar. Em tempo de comunhões – fiz todas: a primeira, a segunda, a terceira e a quarta, mais a profissão de fé – abalava do largo de S. Pedro com minha Mãe, às cinco ou seis da manhã, calcorreava a rua de Vila Nova no mais opaco e espesso silêncio – ainda ouço, às vezes, os passos apressados que ela me devolvia – entrava na igreja, assistia à missa, fazia a genuflexão – joelhos nus contra o lajedo frio situado em frente do altar, lugar reservado aos homens, as mulheres ficavam na retaguarda – enfim, cumpria regras que ajudavam a definir a tua identidade. Respeitava-te, pois. À saída da igreja lá estava a recompensa: numas bancas improvisadas, meia pada de pão, sem nada dentro, e uns tremoços, para combater o jejum e não deixar que o estômago continuasse colado às costas.

E também me lembro de, pela Páscoa, cumprir outro preceito, uma espécie de estreita aliança entre os desígnios de Deus e os de César: ia confessar-me e logo a seguir tinha que passar pela sacristia, para “desarriscar” o nome. Era uma das tuas muitas formas de nos controlar, avisando-nos que só está bem integrado num meio quem lhe aceita as regras e as limitações.

Aqui te deixo por agora, após relembrar pedaços soltos de um tempo em que a garotada se sentia agasalhada de ternura quando o dia fechava sem qualquer tareia de verga, cinto, cordas ou adival. Miúdos que também sucumbiam, muito mais do que hoje, às doença e à miséria e não propriamente por gostarem de viajar até ao céu. Um tempo em que homens e mulheres suavam camarinhas nas terras de pão, ou enchiam açafates de canseiras, substituindo-se, quando era preciso, aos animais de tracção à frente de charruas e arados.

Encerro esta espécie de balada de uma infância antiga, a um tempo difícil mas feliz,  povoada de medos do escuro, de ir ao alpendre mal iluminado procurar achas para a fogueira, ou à adega encher a pucheira de vinho tirado ao torno. Medo, também, de corujas e mochos de piar agoirento, ou de lobisomens que se dizia aparecerem nas encruzilhadas, podendo assumir diversas formas, como pipas a saltar e a rolar sozinhas.

Melhor que tudo isso era brincar à bilharda ou ao pião, ou até ajudar em pequenas tarefas como tocar o boi em volta do poço de rega, ou reunir uns ramos de gilbardeira que serviam de vassoura para colocar junto ao borralho, onde sabia tão bem adormecer, em tempos de rigorosa invernia, à sonolência da lareira.

Foi aqui, onde crescemos juntos, que tudo aconteceu. Eras então aldeia pequena, perdida nas brumas do passado. Como eu, largaste os calções, engravataste-te, cresceste de forma um tanto desajeitada, às vezes pões moderno onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno. Dores de crescimento, presumo.

 

Coisas de que ainda me lembro (I)

Tenho seguido, com curiosidade e particular agrado, esta espécie de romagem ao passado que gente mais nova e dinâmica, com ponto de encontro marcado no blog Palhaça Cívica, resolveu empreender. Bem hajam por isso, sobretudo por trazerem à cena gente de carne e osso, que uma vez desaparecida do nosso convívio tem permanecido no limbo – bem sei que já não existe limbo… – do esquecimento.  É um meritório exercício de memória e de retorno à infância que não esconde algumas saudades daquilo que já não há.

Diz bem o Sérgio Pelicano: “Façamos de conta que todos vivemos tempos de felicidade na Palhaça. Façamos de conta que todos queremos (re)viver esses momentos.” Sejamos então claros: nem todos viveram no passado – refiro-me a muitos dos que neste cantinho têm sido evocados – tempos de felicidade. Há traços característicos dessa época que não podem deixar saudades. Pobreza e miséria eram coisas que abundavam e cresciam como cogumelos. Quase toda a gente vivia curvada ao peso da terra, num tempo em que a agricultura era vista como a arte de empobrecer alegremente.

Do passado que tem sido evocado, há alusão a algumas pessoas  com um traço comum, uma espécie de paisagem humana com tonalidades sem contraste: o da miséria extrema. Confesso-vos que a princípio senti alguma relutância em acrescentar mais nomes a esses que também conheci. Porquê? Talvez por me parecer doloroso recordar a via sacra que foi a sua vida terrena. Talvez por escrupuloso respeito por essa gente sem eira nem beira, desprovida das mais elementares rações de afecto, seres humanos para quem a vida foi madrasta e até cruel, sobre a qual ouvi, por uma ou outra vez, juízos menos benevolentes, coisa que me desagrada, por não gostar que se escarneça da miséria. Gente a quem faltou sempre qualquer coisa em pequena: amparo ou berço, escola ou amor.

Após breve hesitação pensei melhor: não, esta gente não foi propriamente marginalizada pelas pessoas da nossa terra. No meio da desgraça teve sempre algum amparo, uma mão amiga, um caldo para aquecer o estômago. Há exemplos até, muito exaltantes e de dimensão humana inquestionável, de quem lhes tenha dado verdadeira protecção, a troco de nada e de coisa nenhuma. Pelo simples gosto de praticar o bem, apenas isso. Pura dádiva aos outros, pois dar é dar-se. E daí concluí: esta gente merece ser lembrada como qualquer outra. Respeitosamente, como o tem sido até agora. Sem ser preciso apagar registos antigos. Para o bem e para o mal, foi gente da nossa gente. Pobre, às vezes muito pobre, mas séria e digna.

Juntar à morte física uma segunda morte, a do esquecimento e do anonimato destas pessoas, seria, isso sim, ocasião de escândalo. “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”, gravou alguém, talvez em apelo lancinante, na superfície de uma pedra do campo de extermínio nazi de Bergen Belsen.

Decido-me então a acrescentar mais alguns pormenores a pessoas da nossa terra que têm desfilado nos últimos textos, gente que também quis ser feliz, teve sonhos, anseios e ambições. Fecho este primeiro texto com elas, é a minha singela homenagem. Pena que só hoje consiga carregar nos pedais da memória e puxar alguns fios soltos de remotas e às vezes delidas lembranças. Então aí vai.

Conheci obviamente a Sofia e o Zé Pequeno. De ambos retenho gratas recordações. Ela cumprimentava-me sempre (ou eu a ela) quando nos cruzávamos na rua. Raramente parava. Quando o fazia, naquele seu jeito muito peculiar de arrastar a perna, dirigia-se a  mim, de forma repentina, e dizia: Olá Carlos!, e pespegava-me dois beijos. Acontecia sempre assim quando decilitrava em demasia. Mas nunca foi inconveniente, ou faltou ao respeito a quem quer que fosse, que eu saiba.

O Zé Pequeno, esse, mantive com ele longas e demoradas conversas, quase sempre junto à taberna dos meus tios, na esquina do largo de S. Pedro. Era de uma educação esmerada, valores que lhe tinham sido inculcados na Casa Pia. Orgulhava-se de ter sido um “ganso”, contou-me algumas histórias desse seu tempo juvenil que infelizmente não retive. Mas do que não me esqueço é da enorme resistência que se desprendia daquele corpo aparentemente tão frágil. Vi-o algumas vezes com sacos de batatas às costas, até o camião estar completamente carregado, sem nunca desfalecer. A ele e ao Pompeu, também franzino mas resistente, ambos de boina basca. Ao Pompeu, já em fase decadente, vi-o algumas vezes correr os miúdos à pedrada. Era a resposta que dava aos que, abeirando-se dele e logo fugindo, gritavam: pum, pum! Do Zé Pequeno guardo ainda a memória de o ver fumar “mata-ratos”, ao mesmo tempo que desenhava, com traço firme e preciso,  balizas e guarda-redes a voar para o esférico. Era o publicista de serviço, quando se tratava de anunciar jogos de futebol entre a Palhaça e qualquer outra equipa. Como não havia fotocopiadoras, o Zé Pequeno lá tinha que executar dois ou três esboços muito idênticos, com assinalável qualidade estética, normalmente em papel pardo. Os anúncios eram afixados nas tabernas ou mercearias mais visitadas da freguesia. Eeram, por assim dizer, os cartazes publicitários da época.

Conheci também a mãe do Pompeu, a Maria Zé Caixas. E o António dos Pardais, que vivia isolado e cercado de silêncios. Dele disse a Dra. Dulce Vieira: “As ovelhas eram suas irmãs, suas amigas as pombas, os gorjeios dos pardais, a música de fundo de uma existência viúva de alegrias” [1]. Recordo o Arlindo Gamelas, proveniente não sei bem de que colónia de África, que vivia de esmolas e sempre que me encontrava esboçava um sorriso de dentes bastos e me chamava “menino”, mesmo quando já era crescidote. Lembro, finalmente, a Maria Pita dos meus medos de infância. Morava na Chousa e ao que parece não fazia mal a ninguém, mas os miúdos temiam-na, atribuindo-lhe dotes de bruxaria. Era de tez morena, vestia saias até ao chão e usava, em vez de brincos, alfinetes de segurança a baloiçar-lhe nas orelhas.


[1] Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua Monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, pp. 58-59.