Coisas de que ainda me lembro (III)

Dizem que amigos são os da infância. Que ao caminhar-se para a velhice escasseia o tu-cá-tu-lá das farras e cumplicidades. Entre os que tive e ainda conservo, há um com quem nunca mais falei: o Arrais (1). Morava em frente à Escola e trauteava canções a torto e a direito. Uma delas, muito curiosa, versava sobre pessoas da nossa terra e respectivas profissões. Está incompleta e não sei quem poderá ajudar a recuperá-la por inteiro. Começava assim:

O doutor é Presidente, (2)
Arquitecto, o Manuel Vicente, (3)
O Justino é carpinteiro,
O Mandato faz caixões, (4)
O Zé Feijão é barbeiro,  (5)
Faz a barba a dois tostões.

O Camilo assa leitões, (6)
A Aida coze enguias, (7)
O Artur tira fotografias (…) (8)

O Arrais cantarolava uma outra, muito engraçada, de sátira social às sogras, de que também retenho algumas passagens:

Certa noite à média luz,
P’ra jantar fui convidado,
Em casa de minha sogra, (bis)
Era dia de feriado…

Ela era muito minha amiga,
Fez tudo p’ra me agradar,
É por isso que hoje me lembro, (bis)
Daquele famoso jantar…

Comi canja de galinha,
E arroz de cabidela,
Cebolas à cafreal, (bis)
Com rabinho de vitela…

Fricassé de amendoim,
Com miolos de toupeira,
Uma lagosta a suar, (bis)
Com conhaque da Malveira…

Fumei depois um havano,
E já no fim do jantar,
Comi fruta para um ano, (bis)
Mas faltava terminar…

Bebi café de alcatrão,
Comi torta e fiquei torto,
E depois duma soneca, (bis)
Quando acordei estava morto!

Lembro-me de, na década de 1960, a PIDE – polícia política do Estado Novo – fazer das suas na Palhaça. Fechou tudo quanto era entrada e saída da aldeia e avançou para o Café Capri. Encontrou o que queria, a denúncia não era falsa. Para apanhar o tresmalhado do rebanho – que se disse, depois, ser de Salgueiro –  partiu tudo o que encontrou pela frente. À saída, enquanto era arrastado e espancado pela polícia, com gente da terra a assistir, uns no largo e outros à janela das próprias casas, o detido gritava, a plenos pulmões: Ó povo da Palhaça! Acudam-me, que eu sou democrata e eles são da Pide! Ninguém acudiu, ninguém esboçou um gesto de revolta. Quando tudo passou, só se ouvia murmurar: era gente muito educada. Partiram vidros e cadeiras, mas perguntaram quanto era e pagaram tudo…

A Pide, que não brincava em serviço, incomodou também pessoas da Palhaça, que chegaram a estar detidas. Histórias por contar, a merecer que alguém apanhe o fio à meada. Não era preciso muito para se ser preso. Um dos detidos foi César Barreto, dono do café que funcionava onde está hoje o Ponto Final. Em Março de 1951, o Presidente da Junta responde a um pedido de esclarecimento do Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro: “sou a responder que de facto o Snr. César Augusto Barreto, desta freguesia, foi preso pela então PVDE, por hostilidades à Casa do Povo”(9). Esta detenção terá ocorrido até 1945 e nunca depois dessa data. Isto porque foi nesse ano que a PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado] passou a chamar-se PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado].

Outros nomes devem acrescentar-se ao de César Barreto. Aqui vos deixo, para memória futura, os de José Colchete (Areeiro), Fabiano (Albergue), Silvério Cura (Vila Nova) e Manuel Tomé (Roque). Foram todos presos ao mesmo tempo, e como se tratava de gente séria e honrada, a freguesia ficou envolta num manto de profunda tristeza. Era tempo de Páscoa, a anunciar promessas de videiras a abrir pequeninos olhos verdes e viçosos; era o tempo em que os soalhos das salas onde se beijava o Senhor se esfregavam à mão com sabão amarelo e onde havia sempre, sobre a mesa, um cesto com rendinha branca que servia para transportar as ofertas, às vezes uma simples maçã ou laranja com uma moeda de cinco tostões em cima, que se dizia ser para o sermão.

No salão da velha Casa do Povo, onde mais tarde havia bailes, vimos nascer a televisão a preto e branco. Lá, e no café do Sr. César Barreto – feito na cafeteira e com máquina a petróleo – moravam as duas únicas televisões que a Palhaça se orgulhava de ter. Os sábados à noite eram verdadeiros dias de festa. Que saudades do convívio semanal com o Rintintin e a Lassie, mas sobretudo do Bonanza: dos quatro heróis desta série de culto, o bom gigante dos murros demolidores, Hoss de seu nome, era o meu favorito. E havia ainda o Mascarilha, a cavalgar na pradaria com o fiel amigo índio, o Tonto. Às vezes, a seguir às barrigadas de western, sucediam-se as barrigadas de ameixas, pela calada da noite, no interior dos muros da Escola, que ficava ali mesmo ao lado.

Aqui fui crescendo, Palhaça, alimentando-me da tua seiva. Deste-me a conhecer um léxico próprio, que chamava “camoecas” às bebedeiras, “alveitar” ao veterinário caseiro, “apaijar” a aturar, “burra” à bicicleta”, “bernicoques” aos maneirismos, “choninha” aos sonsos, “corrilhas” às rugas da cara, “enjorcar” a inventar, “endrominar” a mentir, “moinante” ao que não quer trabalhar, “zangarilhar” ao que tremia ou oscilava para os lados, a puxar pela bicicleta. E outras coisas mais, como um “trancanaz” de broa (um grande pedaço), ou um prato cheio “ao caramulo”, por alusão à serra que te vigia e contempla a nascente.

Tudo mudou, Palhaça. Já ninguém acredita em ti se disseres que os sapos podem cegar uma pessoa, esguichando para os olhos a urina venenosa. Aliás, já não há sapos de boca cosida a anunciar feitiçarias. Vão rir-se de ti se disseres que os cabelos de mulher, mergulhados na água, se transformam em cobras. Já ninguém manda miúdos à farmácia comprar pó de Maio, electricidade em pó, ou “pòzinhos de alembradura”. Já ninguém acredita em ti, se disseres que é pecado apontar o dedo ao céu e que o Senhor ralha…

Já não há cântaros à cabeça nem bilhas de barro a encher ou a quebrar-se na fonte. Desapareceu o ranger da nora sob o peso dos alcatruzes. Ninguém convida os carteiros a matar a sede, ou para dois dedos de conversa, na frescura das adegas, em horas de calor de fornalha (escorropichavam-se sempre dois copos, pois era mau agoiro ficar-se manco).  Mal se sente o cheiro que sobrava da fermentação rebelde do mosto, corre pouco o bagaço no alambique. Já não se prova o vinho novo, a onze de Novembro. “Pelo São Martinho, fura-se o vinho” – rezava o adágio popular, que tinha uma outra variante: “Pelo São Martinho, vai à adega e prova o vinho”. O provérbio era levado a preceito, num corrupio de adega em adega, já com as faces a denotar a exaltação do vinho novo. Assim se cumpriam os oito mandamentos da lei de Baco: “o primeiro bebe-se inteiro; o segundo até ao fundo; o terceiro como o primeiro e o quarto como o segundo; o quinto bebe-se todo; o sexto do mesmo modo; o sétimo bebe-se cheio e o oitavo duas vezes meio”.

Em terra de vindimas e adegas só às vezes fartas, com tonéis a estalar prenhes de vinho e agricultores redondos de alegria, todos conheciam os Dez Mandamentos do Vinho, que no fundo se resumiam a dois: comer bem e beber melhor. A saber:

1.º – Amarás o vinho de Portugal, água não lhe deitarás para que não te faça mal;
2.º – Não jurarás pela folha da laranjeira, que é ofensa que fazes à sua prima parreira;
3.º – Guardarás pão e vinho na algibeira e com ele beberás quando te der na goteira;
4.º – Honrarás o odre de vinho, o chapéu lhe tirarás se o encontrares no caminho;
5.º – Não matarás, só se for cabra ou bode, a carne lhe comerás e da pele farás um odre;
6.º – Não entornarás, só se for bilha grossa, a boca lhe apararás para que verter se não possa;
7.º – Não furtarás, só se for para beber, porque, se te fores confessar, sempre te hão-de absolver;
8.º – Não levantarás odre deitado, antes te deitarás do outro lado;
9.º – Não desejarás beber por vasilha pequena, desta que bota a espuma fora e lhe fica a cor morena;
10.º – Não cobiçarás a salada do pepino: é muito fresca no verão e muito contrária ao vinho

Quase não se ouve o cuco, ou o canto vespertino e mavioso do rouxinol a trinar entre os salgueirais. Verdelhões, poupas e tentilhões, alvéolas, calhandras, toutinegras e ferreirinhas, quase tudo isso levou sumiço, a golpes de adubos químicos, pesticidas e herbicidas. Já não se destrava a língua aos gaios, que eram os nossos papagaios caseiros. Onde, a massa a levedar na gamela, com a cruz traçada para proteger do mau olhado? Onde, os teus cabanais para secar milhos e pastos? Quantos ainda restam, para nos proteger do sol a pique em tardes esbraseadas, ou para encontros furtivos, quando os simples arremedos de namoro eram rigorosamente vigiados? Tinha razão o Cesário (9), quando, montado na bicicleta, se cruzava com um cabanal situado ali para os lados do Bebe-e-Vai-te e costumava dizer: Ah!, se este cabanal falasse…

Não há duas maneiras de te amar, Palhaça, assim como não há duas maneiras de amar a liberdade. Quero-te mais aldeia do que vila – sim, que ganhaste, até agora, em ser vila? – quero-te mais vila que cidade. Não deites fora os ares plácidos e lavados que bordaram o teu rosto de menina. Se puderes, conserva campos de cultivo,  o verde-amarelo e o verde-escuro de algumas vinhas e pinhais, umas tantas fontes e carreiros. Não deixes que as silvas cerquem a enxertia. Resiste às investidas galopantes do eucalipto. Evita que os teus cafés virem espaços onde se trocam letras e influências, esgrimem cifrões e taxas de juro. Renega a construção em altura, ao menos no teu largo primitivo. Não coqueteies com arquitectos ou engenheiros a perda do teu carácter: nada pode substituir a beleza de um céu de anil encaixilhado no teu coreto singelo, encimado pela sentinela cívica que é o nosso padroeiro.

Agora é tudo tão rápido, Palhaça. Foram-se os abraços e beijos das escarpeladelas, sempre que alguém, mais afortunado, encontrava uma espiga vermelha. Desapareceram os bailes da “mi-careme”, tolerados na terceira semana da Quaresma para aliviar os rigores e a abstinência que ela nos impunha. Deixo-te aqui, e agora, onde cresci e apesar de tudo fui feliz, mesmo sem ter conhecido a tua Banda Filarmónica – regida por Adelino Ferreira Pinhal – ou a tua Troupe Dramática; mesmo sem ter assistido a festividades em honra do apóstolo Santo André, já no estertor da Monarquia, com jantar de bacalhau com baratas às 4 da tarde e sobremesa de castanhas e nozes. O vinho, esse, era tirado do cântaro de 20 litros, servindo de copo a medida de 5 litros (3). Malhavam-lhe bem, os teus homens de antanho. As minhas festas são já as do Mártir S. Sebastião e de Nossa Senhora da Memória. Ajoelhei à passagem dos teus andores e integrei as tuas procissões. Lembro-me bem: numa delas – era dia de comunhão solene –  fiz o percurso com as mãos em prece, mas ao chegar à zona dos cafés, apinhada de gente, deu-me a vergonha e coloquei-as atrás das costas. Sei que me perdoas esse vacilar duma fé que parecia indestrutível.

Deixo-te agora (está a custar, sabes?). É preciso voltar a página. Talvez saudades do futuro. Talvez. Agora, pelo menos, já não morre ninguém à sacholada, por causa da mudança dos marcos, ou do desvio de um veio de água. Entre aquilo que de melhor e pior já foste, e o que de melhor e pior possas ainda vir a ser, mon coeur balance.


 

(1) António Martins Pereira Arrais, filho de Augusto e Rosa Arrais. Morava ao lado do edifício das antigas Escolas Primárias, na estrada que da Palhaça sai para Sosa.

(2) O Presidente de Junta era o médico Manuel Ferreira Rebolo, formado na Universidade de Coimbra em 1935.

(3) Manuel Ferreira Vicente Júnior construtor civil, que construiu o edifício das Escolas Primárias.

(4) Manuel Mandato. Apenas construía caixões pequenos, para os “anjinhos”.

(5) José do Nascimento Marques Moura.

(6) Camilo Jacinto, casado com Mabília Cerveira da Silva e pai de António da Silva Jacinto (Camilo), Joaquim Cerveira da Silva, Fernando, Raul e Mabília (Bila).

(7) Conhecida por Aida Feijoa. Vivia, à época, numa casa situada ao lado (para nascente) do actual café Ponto Final. Irmã de Joaquim (alfaiate e com casa de pasto aberta aos dias de feira) e José Feijão.

(8) Artur Lemos Silva, também conhecido por Artur Calcinhas. Chegou a integrar (era “caixa”, como então se dizia) a Banda da Mamarrosa.

(9) Ofício n.º 13/51, de 8 de Março de 1951, endereçado pelo Presidente de Junta de Freguesia da Palhaça ao Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro.