Coisas de que ainda me lembro (II)

Revejo-te Palhaça, e quase não sei quem és. A mais antiga memória que de ti guardo é talvez a do pacato ambiente da tua hoje embelezada sala de visitas. O largo em terra batida, o coreto enegrecido e exposto à incúria dos que deviam tratar-te com esmero. A chiadeira arrastada dos carros de bois, as bosteiras quentes que os animais largavam na estrada esburacada e que um ou outro carro mais ronceiro calcava, salpicando as paredes das casas mais próximas.

Aqui cresci e aprendi a reconhecer a natureza lírica das tuas fontes, a saborear a frescura dos tanques de água fresca, a rebolar-me no coradouro dos Carregais: lugar ameno, ladeado de vergueiros e regatos mansos, circundado por manchas de pinhais a bordar o horizonte, onde, pelo Natal, ia apanhar tufos de musgo verde-claro para o presépio. Local idílico de paragem obrigatória no regresso a casa, mal terminava a missa de domingo na igreja de Vila Nova.

Aqui percorri as tuas ruas breves, sem nome ou com nomes improváveis; calcorreei as tuas vinhas à procura de ninhos e rebusco; saboreei o tempo das amoras; devassei o interior dos teus campos de milho a armar costelos; aprendi nomes de pássaros, alguns não dicionarizados, que conhecia pelo tamanho e a plumagem. Uns “caíam” nos costelos, outros não: sombrias (as mais apetecidas) boeiras, taralhões, cagachins, rêchêchês, vale-de-abóboras, landriscas, felosas, pardais, melros, calhandras, codornizes (nunca soube porquê, mas as que se apanhavam era quase sempre nos campos semeados de azevém), piscos, narcejas (es)torninhos, sarrazinas, pintarroxos e carriças.

Muito antes disso, deste-me a conhecer, inadvertidamente, a violência da morte dos animais: bovinos a tombar com fragor no matadouro do Sr. José Marques, que ficava ao fundo do talho, rios de sangue a escorrer pelo chão de cimento, a seguir à estocada, de um só golpe, com um ferro de dois gumes a que chamavam choupa; porcos sangrados ao alvorecer, nos rigores do frio e no tempo das salgadeiras, uma grande algazarra de gente e azáfama de alguidares, e eu na cama, tolhido de medo, com os dois indicadores espetados por longos minutos nos ouvidos, à espera que o estertor do animal esvaído em sangue calasse de vez os guinchos lancinantes; carneiros imolados pelo Zé Teixeira, a céu aberto, nas vésperas da Páscoa, num espaço onde se situa hoje o snack-bar S. Pedro. Parecia pedir-lhes desculpa, pois afagava-os mansamente – talvez à procura do ponto mais vulnerável – antes de os abater, abandonando-os, já sem vida, com olhos redondos e abertos de espanto.

Compreenderás agora, Palhaça, porque não estou presente no ritual antropológico que em tua honra se celebra todos os anos no largo das Escolas: a matança do porco à moda antiga, o rancho folclórico a tocar, néons, padarias e instituições bancárias a espreitar. A goela hiante do tempo tudo devora à sua passagem; devagar ou mais depressa, a vida é perda: vamos perdendo tudo, aos poucos. Sei que me desculpas a ausência em cenário tão artificial e diferente do antigo. Ausência não pelo cenário, mas pelo espectáculo que encerra. Sabes que tento honrar as tuas tradições por outras formas, e isso me basta.

Prefiro lembrar o som inconfundível do repicar dos teus sinos ou o toque das trindades. Ou a obrigação instituída de ficar em jejum três horas antes de comungar. Em tempo de comunhões – fiz todas: a primeira, a segunda, a terceira e a quarta, mais a profissão de fé – abalava do largo de S. Pedro com minha Mãe, às cinco ou seis da manhã, calcorreava a rua de Vila Nova no mais opaco e espesso silêncio – ainda ouço, às vezes, os passos apressados que ela me devolvia – entrava na igreja, assistia à missa, fazia a genuflexão – joelhos nus contra o lajedo frio situado em frente do altar, lugar reservado aos homens, as mulheres ficavam na retaguarda – enfim, cumpria regras que ajudavam a definir a tua identidade. Respeitava-te, pois. À saída da igreja lá estava a recompensa: numas bancas improvisadas, meia pada de pão, sem nada dentro, e uns tremoços, para combater o jejum e não deixar que o estômago continuasse colado às costas.

E também me lembro de, pela Páscoa, cumprir outro preceito, uma espécie de estreita aliança entre os desígnios de Deus e os de César: ia confessar-me e logo a seguir tinha que passar pela sacristia, para “desarriscar” o nome. Era uma das tuas muitas formas de nos controlar, avisando-nos que só está bem integrado num meio quem lhe aceita as regras e as limitações.

Aqui te deixo por agora, após relembrar pedaços soltos de um tempo em que a garotada se sentia agasalhada de ternura quando o dia fechava sem qualquer tareia de verga, cinto, cordas ou adival. Miúdos que também sucumbiam, muito mais do que hoje, às doença e à miséria e não propriamente por gostarem de viajar até ao céu. Um tempo em que homens e mulheres suavam camarinhas nas terras de pão, ou enchiam açafates de canseiras, substituindo-se, quando era preciso, aos animais de tracção à frente de charruas e arados.

Encerro esta espécie de balada de uma infância antiga, a um tempo difícil mas feliz,  povoada de medos do escuro, de ir ao alpendre mal iluminado procurar achas para a fogueira, ou à adega encher a pucheira de vinho tirado ao torno. Medo, também, de corujas e mochos de piar agoirento, ou de lobisomens que se dizia aparecerem nas encruzilhadas, podendo assumir diversas formas, como pipas a saltar e a rolar sozinhas.

Melhor que tudo isso era brincar à bilharda ou ao pião, ou até ajudar em pequenas tarefas como tocar o boi em volta do poço de rega, ou reunir uns ramos de gilbardeira que serviam de vassoura para colocar junto ao borralho, onde sabia tão bem adormecer, em tempos de rigorosa invernia, à sonolência da lareira.

Foi aqui, onde crescemos juntos, que tudo aconteceu. Eras então aldeia pequena, perdida nas brumas do passado. Como eu, largaste os calções, engravataste-te, cresceste de forma um tanto desajeitada, às vezes pões moderno onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno. Dores de crescimento, presumo.