Com tanta Agustina, a malta já nem atina

Agustina com gatoE, de repente, todos desatam a falar de Agustina. Tanta Agustina, ontem e hoje, talvez porque o post mortem continue a ser o estado mais propício ao aguçar do reconhecimento público.

Há quem aluda a uma imagem mitificada: uns, dizendo que tem uma escrita difícil, “barroca”; outros, colando-lhe o rótulo apressado de “perversa”. Outros ainda, habituados a contrabandear arte com ideologia – sem aparentemente perceberem que o que a obra de arte tem em si de maravilhoso é o facto de existir por si mesma – a declarar que sim senhora, é uma excelente escritora, mas que não lhe perdoam o ter consentido que um livro seu acabasse por ocupar o lugar de um outro, entretanto censurado. Pouco se importaria ela com estes mimos, pois sempre confessou não se levar muito a sério: “É a melhor maneira de viver. Aquele que se leva a sério está sempre numa situação de inferioridade perante a vida”.

Em 1994, escrevia a observadora de olhos penetrantes, crítica de tudo o que a rodeava, com a ironia corrosiva que a caracterizava: “Decorre a apresentação do livro de Cavaco Silva no salão nobre (do Centro Cultural de Belém), e os carros pretos do ministério sobem a rampa com uma lentidão consular (…). Freitas do Amaral acaba também de escrever um livro e é saudado triunfalmente. Eu escrevi cinquenta e não me prestam tanta atenção. Pelo que fico, por um momento, desencorajada”.

Acontece que, nos doze anos seguintes, Agustina continuou a escrever de forma torrencial. Sem contar, seguramente, com cerca de um milhar de textos na imprensa, terá dado à estampa, entre romances, novelas, teatro, crónicas e biografias, perto de cem livros. Agora que nos deixou de vez – na verdade, já a partir de 2006 que renunciara à escrita e à vida pública e um círculo de silêncio se abatera sobre o seu nome – há quem assevere, aqui no Facebook, ter lido toda a sua obra. Quase cem livros – pasme-se!

Agustina vista por António (1989)
Caricatura de António (1989)

Coisa de espantar, pois ao contrário da poesia, um romance leva tempo a ler, e nós somos, por regra, preguiçosos do corpo e das meninges. Há também quem afiance que a leu desde o princípio, muito antes de estar na moda. Louve-se a precocidade de tão iluminados leitores. Se os conhecesse, Agustina não deixaria de se rir e de ripostar como o fez em relação a um político da nossa praça, que lhe confessou ser grande admirador dela, assim como a própria mulher, que também já tinha lido toda a sua obra: “Ora, eu gostava era de ter a sua opinião, não digo sobre todos, mas ao menos sobre um dos meus livros”.

Receoso de poder sucumbir ao peso esmagador de tanta cultura, li apenas dois dos catorze livros que tenho da autora de Vale Abraão, não contando com mais alguns sobre a sua obra romanesca. Razão de sobra para não me atrever a dissecar – palavra tão ao gosto dos estruturalistas – nenhum dos seus romances.

Contento-me em deixar aqui, pela segunda vez, esta história deliciosa que ela costumava contar quando vinha à baila o nome do grande amigo Eugénio de Andrade, que via nela a grande romancista da aristocracia rural e da burguesia decadente. Ao chegar a sua casa, dizia Eugénio: Maria Agustina, que flores maravilhosas são aquelas no lago da entrada? E ela respondia: são nenúfares, Eugénio, e você está farto de os mencionar na sua poesia…

Agustina por André Carrilho
Caricatura de André Carrilho

Parece que Agustina tinha por hábito beber uma taça de champanhe ao almoço e outra ao jantar. Quem assim tanto gostava de celebrar a vida, merece que brindemos por ela. Não tanto para plantar saudades no passado, mas para reflorir no futuro a majestosa catedral de papel que nos legou.

Gente deliciosa esta, cada vez mais apartada do nosso convívio.