Contra as touradas

leo Picasso, Corrida de Touros 5
Óleo de Pablo Picasso “Corrida de Touros 5”

Aconteceu agora outra vez. De tempos a tempos, lá voltam os argumentos contra e a favor das touradas e das transmissões televisivas dos espectáculos tauromáquicos. Sendo certo que só os vê quem quer, a questão de fundo é outra: deve a televisão pública financiar e publicitar tal prática? Falamos da televisão que depende dos subsídios do Estado e que é paga com os impostos dos contribuintes. Apetece dizer que se à RTP compete assegurar uma programação variada que vá de encontro ao interesse dos diferentes públicos, então deve brindar-nos com touradas, mas igualmente com espectáculos de ópera, música clássica, bons filmes e aconselhamento de boa poesia e bons romances, portugueses ou estrangeiros.

Aviso à navegação: não é meu fito alimentar a interminável polémica que se instalou ao redor das touradas. Sou contra e torno isso público. Apesar de não faltarem por aí armas de arremesso em qualquer das barricadas – do lado dos aficionados e do lado dos antitaurinos – não me move, nesta tomada de posição, qualquer intuito polémico ou qualquer propósito de superioridade moral. Nenhum cidadão será melhor do que outro só porque pensa diferente em relação a este assunto. Mais do que acusar quem pensa e sente de forma diversa, interessa-me fundamentar a posição que assumo. Trata-se de expor e não de impor pontos de vista. Do mesmo modo, dispenso rituais – por muito que lhes chamem antropológicos – de matança do porco em espaços públicos, com a justificação de se reavivar uma tradição que noutros tempos era privada e familiar.

Pode a antropologia afirmar que todas as festas onde se sacrificam animais representam uma celebração da vida e reforçam sentimentos de identidade. Só que amarrar, esfaquear e matar o porco, abafando os guinchos lancinantes com acordes de grupos folclóricos convidados para a festança, ou ver um touro picado, rasgado e a esvair-se em sangue por entre palmas, urros e olés de gente ululante e ávida de sensações fortes, está fora dos meus princípios. Por detrás do “frisson” gerado pela agonia de um touro é impossível descortinar qualquer intenção nobre. É um espectáculo que não me diverte enquanto forma de entretenimento público. Claro que a moral é relativa, existe a de uns e a de outros.

Há quem defenda, em nome da tradição, que não matar o touro na arena desvirtua a corrida. E há quem associe as touradas integrais a ritos antigos com influências religiosas e culturais evidentes. Sou contra as armadilhas da tradição como forma de legitimar as lides de touros na arena. Tradições há muitas. Umas devem ser preservadas, outras não. É importante saber distinguir a violência exercida em nome da tradição, que muitas vezes não é tradição mas uma forma inaceitável de dominação social (mutilação genital feminina, apedrejamento de mulheres adúlteras, oferecer uma filha em troca de um dote, entre outras) de costumes ancestrais que funcionam como contraponto moderno ao molde unificador da aldeia global. Não há inovação sem tradição, mas para que tal aconteça esta deve eliminar os traços mais chocantes em nome do progresso civilizacional. Foi também em nome do progresso (desta vez económico, não civilizacional) que há poucos anos um primeiro-ministro baniu o feriado de Carnaval, com o argumento de que os tempos que vivemos já não se compadecem com a tradição. Enfim, tradições há para todos os gostos e cada um serve-se delas conforme lhe dá mais jeito, mas as tradições a manter devem ser precisamente aquelas que não violam valores civilizacionais entretanto adquiridos.

As tradições não são apenas boas pela antiguidade do seu foral, mas pelas práticas que as caracterizam. O progresso humano tem sido e continuará a ser feito contra muitas tradições. Só pode manter-se como tradição o que engrandece a humanidade, não aquilo que a degrada ou embrutece. Se fossem ininterruptas, como muitos defendem, ainda hoje nos seria dado desfrutar das virtuosas tradições do Santo Ofício ou presenciar a queima de pessoas acusadas de bruxaria, os hereges e até gatos pretos, vistos durante muito tempo como encarnação do demónio. Ou, recuando uns séculos, assistir ao lançamento de cristãos às feras, acabando devorados por elas.

Enquanto as touradas não passarem a ser consideradas um capítulo triste da nossa História, não transpomos completamente o estado de natureza para o estado de cultura. Continuamos a ulular, em vez de dialogar, sem perceber que é a cultura que torna a humanidade mais sensível. O que não falta por aí é gente apostada em fazer regressar Portugal aos tempos do marquês de Marialva, perpetuado em bronze numa placa à entrada da praça do Campo Pequeno (eu, pecador me confesso: marquês por marquês, prefiro o de Sade).

Uma boa síntese de muitos dos defensores da “festa brava” pode ser lida na Cartilha do Marialva, de José Cardoso Pires. Ou no marialva que Alexandre O’Neill ridiculariza no poema “Fraco, mas forte”: “Bebo contigo /cerveja, whisky / p’ra que se veja / mais rubra a crista”.

Aqui fica o que penso das touradas. Fi-lo, porque prefiro a candeia que vai à frente do que a que permanece escondida debaixo do alqueire.