Courbet e A Origem do Mundo: censura, erotismo, pornografia

Espreitar maniacamente os outros sempre foi uma tentação dos moralistas mais tacanhos, para os quais qualquer alusão à sexualidade é “pornografia”. E a hipocrisia também não costuma andar arredada de tais gestos, como nos mostra Jorge de Sena na descrição desta breve mas deliciosa história: um cavalheiro, pai de família, que tinha várias filhas e vivia numa cidade de província, foi um dia queixar-se à Câmara contra a construção de um urinol no extremo oposto da praça pública onde estava a sua casa. O presidente da Câmara observou-lhe que era absurda a queixa, dado que, sendo a praça muito grande, a casa dele estava muito longe do urinol. Ao que ele respondeu dignamente: – Mas é que as minhas filhas usam o binóculo (1).

Vem isto a propósito da recente apreensão de alguns livros que reproduziam na capa o quadro A Origem do Mundo, de Courbet. Aconteceu na cidade de Braga, a “idolátrica” e “episcopal”, como lhe chamou um dia Luís Pacheco. A PSP encheu-se de brios, irrompeu feira do livro adentro e confiscou vários exemplares. A pintura é de 1866, o que prova que alguns mortos-vivos do século XIX ainda incomodam alguns vivos-mortos do século XXI, sempre dispostos a praticar atávicos actos censórios. Apetece dizer que não defendem “os bons costumes”, ou a “ordem pública” – como gostam de referir – mas o próprio passado que são.

Antes de avançar, convém referir o seguinte: a simples representação do nu na pintura, na fotografia, no desenho, ou noutras artes, como o teatro ou o cinema, tem sido ao longo do tempo objecto da maior controvérsia. Neste caso concreto, o quadro mostra-nos um close up, o grande plano realista de um sexo feminino. Isto, por si, levanta desde logo questões importantes: o estatuto de obra de arte retira-lhe, à partida, o eventual conteúdo pornográfico? Essa obra pode ser vista sem reservas? Onde acaba o erotismo e começa a pornografia? Na cabeça de quem produz a obra (seja ela uma pintura, um livro, ou um filme), ou na cabeça da pessoa que a lê ou vê? Ou quando o que se produz é anti-estético e rejeita o envolvimento da inteligência? Não assiste ao cidadão comum o direito de se sentir agredido por uma imagem como esta?

Parece-me que a cultura, a abordagem que cada um faz do que deve ser o objecto artístico e a própria sensibilidade individual são decisivas na abordagem desta matéria. Como decisiva é a noção de liberdade que lhe é inerente. Quem não se choca com imagens como esta, deve no entanto admitir que em democracia as pessoas podem reclamar valores diferentes, como forma de recusar a unificação das consciências. Trata-se de exercitar a tolerância, que para Voltaire significava podermos estar totalmente em desacordo com a opinião de outrem e, ao mesmo tempo, dispostos a combater pelo direito do outro a perfilhar essa opinião. Cumpre a uma sociedade verdadeiramente pluralista garantir que nenhum grupo infrinja as liberdades dos outros.

Como refere Miguel Sousa Tavares no Expresso desta semana, a liberdade não consiste em fazer tudo o que se quer. Pois não, acrescento eu. Mas uma coisa é estarmos dispostos a respeitar a opinião dos outros; outra, bem diferente, é alguém, em nome desses outros, suprimir ou censurar aquilo a que também nos achamos com direito de fruir esteticamente. Ora o quadro até está exposto em Paris, no museu d’Orsay. Aquilo que lá se afigura como normal e pode ser visto por toda a gente, é por cá entendido como sendo pornografia mais grosseira.

Sejamos claros: muito do que aqui está em causa passa pelo uso dos tais binóculos a que recorriam as meninas de que falava Jorge de Sena. Abro a televisão e deparo com um filme que me choca? É tão fácil mudar de canal… Passeio na feira do livro e deparo com a capa de um livro que me perturba? Viro a cara e passo à frente… Fará sentido que qualquer coisa que me escandaliza tenha de ser imediatamente suprimida, sem levar em conta a opinião dos outros? Quantos pais dos que se queixaram à PSP não farão também uso dos binóculos? Quantos deles se preocupam, verdadeiramente, com o que por aí circula na Internet ou até pendurado em alguns quiosques de jornais e revistas? Se calhar, em vez de falarmos de “bons costumes” dominantes, devemos antes falar de hipocrisia dominante. Que nome dar ao que se passa em certos Estados americanos, onde é crime que marido e esposa pratiquem, na intimidade conjugal, actos sexuais que se afastem da posição aprovada por teólogos e moralistas para fins reprodutivos?…

Sempre que no passado se agitou o papão da pornografia, isso correspondeu a inconfessados desejos de restrição das liberdades e abuso das regras normais de policiamento de uma sociedade. Já lá vai o tempo – embora ainda haja quem se lembre – em que, no Portugal de Salazar, um simples beijo mais apaixonado num filme era suficiente para que a censura dissesse: “corta!”. Livro que ousasse incluir nus de pintores famosos (Rembrandt, Velásquez, Goya ou Picasso) era coisa que os censores não perdoavam, considerando essas obras-primas um produto de mentes ordinárias. Em 1966, ano em que foi publicada a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, escritores e poetas da estirpe de Natália Correia, Ary dos Santos, Mário Cesariny de Vasconcelos e Herberto Hélder, para só citar alguns dos mais conceituados, foram acusados de pornografia, obscenidade e atentado à moral pública e obrigados a prestar contas à Justiça. É a esse tempo que se quer regressar?

Aos que gostam de subtrair aos outros o prazer que a si incomoda, apetece dizer que não metam o nariz na vida alheia, que deixem em paz os que não pensam como eles, e que a grande virtude não consiste em suprimir as tentações, mas em saber resistir-lhes…


(1) Jorge de Sena, Dialécticas Teóricas da Literatura, Lisboa, Edições 70, p. 284.