Curiosidades de uma viagem a Malta

1. Ir de férias é deixar para trás a floresta cerrada dos dias iguais e arrastados do trabalho, a rotina que cerca e encharca até aos ossos. Partir significa estar mais perto do desejo, acalentado ao longo do ano, de passar momentos diferentes, menos monótonos e repetitivos. De certo modo, as viagens reconduzem-nos a um tempo há muito perdido: o da leveza dos dias sem horários para cumprir, sem pressas ou compromissos. Tempo de inteira liberdade, de regresso ao castelo encantado da infância, onde habita a matéria de que são feitos os sonhos e os segredos mais temerários. Ao viajar soltamos o pé do lodo da vida. Iludimos o labirinto dos lugares habituais. Vamos ao encontro de um outro para quem também somos o outro.

2. Sem que nada o fizesse prever, aconteceu-me ir a Malta. Da ilha – dito de modo mais correcto: do arquipélago encravado entre a Europa e a África, no Mediterrâneo central – conhecia vagamente a situação geográfica e ouvira falar, também de forma vaga, dos célebres Cavaleiros de Malta. Associava até o nome do país ao título de um livro de Dashiell Hammett, O Falcão de Malta, um policial famoso inspirado nos cavaleiros que pagavam um imposto anual de um falcão vivo ao rei de Espanha. Era tudo, e esse tudo era tão pouco, o que sabia de Malta…

3. Regressa-se sempre, naturalmente, mais enriquecido. No bornal dos conhecimentos históricos guardo notas sobre algumas civilizações que ocuparam as ilhas desde tempos imemoriais: cartagineses e romanos, bizantinos e muçulmanos, normandos e espanhóis, franceses e britânicos (as 8 pontas da cruz que é símbolo dos Cavaleiros de Malta correspondem a outras tantas línguas originais da Ordem); sobre estes cavaleiros, aprendi que construíram Valetta, palácios e fortificações, e que derrotaram os turcos que os cercaram no século XVI, desferindo um golpe fatal nas pretensões muçulmanas no mediterrâneo central.

Como curiosidade, e a atestar a presença portuguesa nos quatro cantos do mundo, encontrei, com alguma emoção, uma placa comemorativa afixada num aqueduto em La Valetta onde pode ler-se: “Em memória do almirante Marquês de Niza e dos marinheiros portugueses sob o seu comando, que morreram combatendo lado a lado com os malteses durante a insurreição popular de 2 de Setembro de 1798 contra o domínio francês”.

De facto, Napoleão conquistara Malta em 1798. À semelhança do que aconteceu em Portugal durante as invasões francesas, tudo o que era valioso foi pilhado pelos ocupantes. Os malteses revoltaram-se e pediram ajuda aos britânicos. Os portugueses, embora em menor número, também deram o seu contributo para derrotar os franceses.

4. Visitar palácios e templos, igrejas e catedrais; povoações piscatórias com seus barcos tradicionais de cores vivas, a balouçar na baía azul e um mercado diário que lembra muito a feira da Palhaça, pois para lá do peixe fresco vende-se todo o tipo de roupas, produtos hortícolas, CDs, lembranças e óculos de sol, entre outras bugigangas; saborear a gastronomia local; aceder às várias ilhas em excursões de barco ou através do ferry; conhecer praias de água cristalina, que convidam ao mergulho retemperador quando o sol dardeja raios inclementes que nos mordem a pele; apreciar a solenidade de penhascos e baías, falésias e enseadas, zonas naturais de cortar a respiração, particularmente belas ao entardecer; sentir a terra avermelhada a contrastar com o verde dos pomares; contactar com a música e o folclore da região; dar uma saltada à aldeia do Popeye, recriada para o filme deste herói lendário que faz as delícias da criançada. Tudo isto nos oferece Malta, miscelânia de lazer e cultura que só pode purificar o corpo e o espírito.

5. Comino, a meio caminho entre Malta e Gozo, é a ilha mais pequena do arquipélago. Para mim, também a mais paradisíaca, porque desabitada e intacta, com a sua Lagoa Azul e os aromas intensos a cominho (que lhe dá o nome) e outras ervas aromáticas.

As águas oscilam entre um azul-turquesa e um verde-esmeralda que inebriam os sentidos. E depois, a luminosidade, a claridade azul difícil de descrever, os aromas adocicados suspensos no ar. Dir-se-ia que os deuses andaram por aqui, que deixaram a sua marca neste lugar único e desde sempre pressentido. Espaço mágico e íntimo, ainda não manchado pela intervenção humana, onde nos sentimos felizes e reconciliados com a natureza e por algum tempo lavados das feridas da existência.

6. Se nas viagens se procura sempre algum exotismo, em Malta ele surge-nos diante dos olhos nos autocarros que datam seguramente de há meio século. São lentos, de um amarelo torrado com uma risca laranja. Conduz-se pela esquerda e os preços são bastante convidativos. Em todos eles encontramos iconografia religiosa, complementada com dizeres do tipo: In God we believe/We believe in God. Se não tocamos à campainha (puxando um fio que percorre o interior do tejadilho) o autocarro não pára e só podemos sair na estação seguinte. O parque automóvel é degradado, com carros (normalmente italianos) que já não circulam em países europeus mais desenvolvidos e ainda assim em mau estado de conservação: espelhos retrovisores partidos ou inexistentes, latas amolgadas ou riscadas.

7. Finalmente, e porque não há bela sem senão, nas águas cristalinas de Malta vivem e ensaiam graciosos passos de dança as temíveis medusas (jellyfish, peixe gelatina), conhecidas entre nós por alforrecas. Picam (ou queimam?) que se farta e há avisos a anunciar a sua presença por tudo quanto é sítio. Digamos que sobre o paraíso se abateu, pronta a retirar-lhe alguma beleza e encantamento, a urticante maldição das alforrecas.

8. Todos os sítios de Malta são já e só uma lembrança do tempo em que, andando muito a pé, mal se dava pelo cansaço. Dias em que parecia andarmos nas nuvens, portanto sem colocar os pés no chão.

Recordar agora esses dias é regressar a uma alegria que não se extingue, porque os grandes dias são aqueles em que o tempo passa sem darmos conta disso e nos parecem mais pequenos. Alegria breve – mas duradoura.