Da Arte de Furtar ao Discurso Sobre o Filho-da-Puta

Berardo1Cansado, muito cansado. Das personagens grotescas. Da falta de vergonha. Do riso alarve do comendador, que ao rir-se de nós e para nós parece ultrapassar em estupidez todos os outros animais. Duas vezes condecorado por outros tantos Presidentes,  como se mandassem bilhetes de pêsames a um regime decadente e do qual a tão propalada ética republicana parece cada vez mais arredada.

Cansado, muito cansado. De quem trafulha e de quem deixa trafulhar. Da rendição do poder político ao poder económico. Da escandalosa mancebia em que se envolvem. Do leito de esterco da impunidade em que convivem.

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Cansado, muito cansado. Da crescente bifurcação dos jogos de influência. Da mancha viscosa da corrupção que não pára de alastrar. De uma sociedade cada vez mais armadilhada de aldrabices, a precisar de uma boa barrela, capaz de lhe devolver a  ecologia dos valores humanos, onde cada um vale pelo que é e não pelo que tem ou ostenta. Cansado de gente “importante”, que não se dá conta que só os medíocres se babam da própria mediocridade. Cansado de gente “séria”, mas capaz de alojar as maiores vigarices numa alma só aparentemente imaculada.

Gente deste calibre tem um nome: filhos da puta! Assim mesmo, tal como um dia os retratou Alberto Pimenta no seu pequeno-grande livro “Discurso Sobre o Filho-da- Puta”:

O filho-da-puta, por si, nunca se define à primeira vista, e esse é o primeiro e o principal dos seus traços distintivos. À primeira vista, o filho-da-puta mostra-se sempre bem disposto, acima de tudo disposto a viver e a deixar viver. À primeira vista, o filho-da-puta diz quase sempre sim senhor (…). É só depois, às vezes muito depois, que o filho-da-puta diz que não, não senhor e mostra que não está disposto: nem a viver nem a deixar viver (…). O filho da-puta acha que o mais importante é conseguir toda a espécie de vantagens com os outros e assim ocupa a vida com essa preocupação, isto é, ocupa a vida preocupando-se com o modo de conseguir sempre o melhor”.

PimentaOs filhos da puta (e esse é ainda outro traço seu, o terceiro traço distintivo) conhecem-se bem uns aos outros pelos lugares que ocupam e só podem ser ocupados por eles; deste modo é fácil associarem-se para fazer as coisas mencionadas e outras, muitas outras, públicas e particulares. Por vezes, negoceiam particularmente o bem público; se isto porém é dito publicamente, ofendem-se porque consideram que se trata de uma ingerência na sua vida particular. Todo o filho-da-puta é altamente cioso da sua vida particular, porque a vida particular dos filhos-da-puta é quase sempre, de uma ou outra maneira, pública (…). Por isso, sempre que o filho-da-puta especializado em fazer faz um acordo, é difícil saber se é um acordo público que traz vantagens particulares ou se é um acordo particular que traz desvantagens públicas”.

Berardo2Que sociedade é esta, em que os mais desprotegidos são atirados sem remorso para a cadeia (às vezes por roubarem o que lhes falta em casa para matar a fome aos filhos), enquanto as práticas ilícitas dos todo-poderosos gozam da maior impunidade? Que Estado é este, que dispõe de meios técnicos e tecnológicos para nos controlar até ao mais ínfimo pormenor, e não se mostra capaz de desatar os nós e os laços apertados entre políticos e especuladores financeiros que o lesam e desfalcam? Então quem rouba milhões fica apenas sem condecorações? Então quem premeditadamente blinda a colecção de arte, para mais tarde a oferecer aos Bancos como garantia dos milhões que recebe, fica apenas sem a medalha e a comenda? Esta criminosa condescendência do poder político e judicial para com os abusos e as ilegalidades espelha bem o triste fado lusitano, a miséria portuguesa, mais mental do que outra coisa qualquer.

(Aqui fica o desabafo magoado de quem, não sendo um “água-bórica”, sente uma força a crescer-lhe nos dedos e uma raiva a nascer-lhe nos dentes. Afinal, Joe Berardo tem menos património para penhorar que o autor destas linhas – uma simples garagem no Funchal – e por isso pagará, seguramente, menos impostos ao Estado. Para os que, mesmo assim, não compreendem um desabafo que é filho da indignação, só mais este verso de Álvaro de Campos: “Merda! Sou lúcido”).