Do Paleo-Cartaz ao Cartaz Camaleónico: breve história da comunicação visual

Cartaz camaleónicoQuatro anos depois de nos ter brindado com Comunicação Visual, Design e Publicidade, Francisco Mesquita publica agora um novo trabalho: Do Paleo-Cartaz ao Cartaz Camaleónico: Design, Criatividade, Inovação e Tecnologia. Em qualquer dos livros encontramos áreas disciplinares que o autor bem conhece e nas quais se especializou ao longo dos anos. Doutorado em Engenharia Têxtil, com um mestrado em Design e Marketing e licenciatura em Engenharia Publicitária, este professor da Universidade Fernando Pessoa move-se com natural à-vontade nestes domínios específicos do saber.

Vivemos na civilização da imagem, em que o cartaz, meio de comunicação por excelência, ocupa um lugar especial enquanto elemento gráfico. Na base deste novo trabalho, onde se cruzam áreas distintas como o Design, a Poesia e a Tecnologia, está a comunicação visual, nomeadamente a que irradia do cartaz. Falar de tecnologia, no caso em apreço, tem a ver com a “utilização de pigmentos reativos a determinados impulsos ambientais, produtos que se inserem nos chamados materiais inteligentes”. São estes “materiais inteligentes” que ajudam a diferenciar o cartaz camaleónico – que muda de cor mediante determinadas condições ambientais – de todos os que o precederam. Esse salto qualitativo reside na capacidade que evidencia para “mudar a mensagem que emite durante o tempo de exposição”.[1]

Nesta obra de carácter eminentemente pedagógico o leitor viaja, como uma fita no tempo, pela história do cartaz desde a antiguidade aos nossos dias. O livro realça os contributos fundamentais e decisivos para o desenvolvimento do cartaz moderno, convocando grandes cartazistas como Jules Chéret, Eugène Grasset, Toulouse-Lautrec ou Alphonse Mucha (nome cimeiro do movimento Arte Nova) entre outros.

Já na parte final do livro, é o estudo aprofundado sobre o cartaz camaleónico que deixa marcas mais impressivas, nomeadamente quando aborda as várias questões que o mesmo suscita, os campos de intervenção que nele desaguam ou para ele convergem, ou até á forma como esses campos se imbricam, para lá da dimensão plástica do cartaz propriamente dito.

Anota o autor, referindo-se às condições de emergência do cartaz moderno em finais do século XIX, que ele viria a atingir nas décadas seguintes “um protagonismo de visibilidade que apenas a televisão (meados do século XX) e mais tarde a internet (finais do século XX) tentaram ofuscar”.[2] Ora talvez se possa dizer, com mais propriedade, que a televisão e a internet, considerando o poder que irradiam, se perfilaram como uma ameaça ao cartaz. Na verdade, o que a história dos media nos ensina é que os diferentes meios de comunicação são mais complementares que conflituantes.

Não é de hoje, nem de ontem, a resistência ao que é novo e inovador. Vale a pena lembrar que o aparecimento da escrita não se fez sem inquietação. Enquanto representação do saber, ela afectou profundamente o mundo grego, a sua filosofia e a sua cultura. Por isso assistimos, com Sócrates, à condenação da escrita, por recear que ela acabasse de vez com o ideal socrático da “palavra plena”. Mais tarde, com o livro impresso, aconteceu a mesma coisa. Quando apareceu, gerou à sua volta um ambiente de grande euforia. Primeiro médium de massas nascido da impressão, acabaria por tornar obsoletos os anteriores livros manuscritos. Acontece que a introdução do livro no ensino foi ocasião de grande escândalo. Argumentava-se que o livro não podia ter a autoridade dos mestres, sobretudo quando estes falavam directamente com os alunos.

A seguir ao livro seria o audiovisual a ficar sob suspeita. A eficácia da imagem tudo parecia querer cilindrar, conferindo ao real uma autenticidade nova que o carácter polissémico e ambíguo da palavra impressa não conseguia transmitir. Mas o que hoje sabemos é que o futuro do livro impresso não está assim tão ameaçado pela civilização da imagem. Para sobreviver, o livro foi capaz de se adaptar, substituindo a homogeneidade das folhas sempre iguais – em resultado da repetibilidade mecânica – por uma forma mais atraente de combinar a imagem gráfica com o texto. O livro digital aí está para nos demonstrar essa capacidade de adaptação: também o podemos folhear, fazer voltar atrás, ou mesmo, com a introdução de sons e imagens, alargar as nossas capacidades de compreensão e memorização, ao apelar a vários sentidos em simultâneo. A obra do historiador Georges Duby, O Tempo das Catedrais, foi uma das primeiras a ser transposta para documento audiovisual. Um êxito retumbante, já que a câmara dava a ver as obras de arte de ângulos e planos inteiramente novos, que o texto impresso jamais conseguiria descrever. Também a música de acompanhamento, produzida na época de construção das catedrais, transmitia uma envolvência que nenhum silêncio de leitura pode dar.

Sabemos hoje que o livro soube resistir ao audiovisual, a imprensa à rádio, a rádio à televisão e ao cinema. Tudo leva, pois, a crer que também o cartaz saberá resistir à televisão e à internet. Como refere Francisco Mesquita, “ainda hoje o cartaz continua muito presente. As ruas, avenidas e praças das nossas grandes cidades espelham bem a importância do grande cartaz no espaço público”. E quando aborda o cartaz hodierno, acrescenta: “o cartaz, que com a banalização da televisão e mais recentemente da internet parecia estar em declínio, surge aqui em toda a sua forma e esplendor”.[3]

O cartaz está vivo e recomenda-se. Razão para falarmos daquele que muitos consideram ser o pai do cartaz moderno: Jules Chéret (1836-1932). Não deixando de conferir à imagem um papel central no cartaz, Chéret acreditava que ela era indesligável do texto, que funcionaria como uma espécie de chave que a decifrava. Mas outros pintores dariam igualmente contributos relevantes para o desenvolvimento do cartaz. É o caso de Toulouse-Lautrec, que não deixando de valorizar o binómio imagem-texto, “conferiu ao cartaz uma função narrativa imediata e metafórica”.[4]

La Goulue
Toulouse-Lautrec (Moulin Rouge- La Goulue, 1891)

Sobre o seu primeiro cartaz, disse Toulouse-Lautrec: “Diverti-me imenso. Senti uma sensação nova para mim, de autoridade sobre a oficina inteira”. Curiosamente, não seria esse primeiro cartaz, mas um dos primeiros, a constituir um verdadeiro sucesso. Chéret tinha entregue um projecto para o Moulin Rouge, inaugurado a 5 de Outubro de 1889. Toulouse-Lautrec avança com um projecto alternativo, de sua autoria, que se distingue claramente dos cartazes anteriores através do “M” maiúsculo que abarca uma tripla repetição do nome em letras vermelhas”. Para além deste grafismo, o pintor e litógrafo francês fez avançar para o primeiro plano do cartaz duas estrelas do Moulin Rouge. Foi tudo isso que conferiu a esta composição uma inovação radical: “o escalonamento de três silhuetas estilizadas que produziam, ainda mais do que a pintura, um redemoinho visual que arrasta o observador consigo”.[5]

Alude Francisco Mesquita, abonando a favor da inovação em Toulouse Lautrec, ao “tratamento gráfico com fundo de silhuetas negras para destacar um plano intermédio, influências claras da xilogravura japonesa”. E acrescenta: “Os cartazes de Lautrec assumem quase que uma perspectiva da arte do retrato, na medida em que a imagem é apresentada em várias camadas, umas mais próximas, outras mais afastadas”.[6]Ora são precisamente essas características de distanciamento e aproximação que encontramos bem patentes no cartaz de Lautrec acima referenciado – uma litografia a quatro cores – que tem por título Moulin Rouge – La Goulue (1891). Quanto às influências da xilogravura japonesa nos pintores franceses, refira-se que elas tiveram impacto não apenas nos impressionistas mas também em tendências artísticas posteriores. Essa arte, que ficou conhecida pelo nome de japonismo, contaminou não apenas a pintura mas também a arquitectura e as artes decorativas na Europa e nos Estados Unidos da América, em finais do século XIX e inícios do século XX.

Interessante é também a abordagem que o autor faz ao factores estéticos (para além dos tecnológicos, socioeconómicos e socioculturais) que determinaram o aparecimento do cartaz moderno. São arrolados autores como Monet (impressionista) Van Gogh (pós-impressionista) ou Seurat (pontilhista), para nos dizer que uma exposição de gravuras japonesas em Paris viria a operar neles, a partir de 1867, uma renovação de conceitos e opções estéticas até então marcadamente realistas, e que passaram a contemplar uma maior subjectividade. Todos eles encontraram na arte japonesa a possibilidade de utilizar novas formas, motivos ou sugestões. Algumas características do movimento Arte Nova não seriam inteligíveis sem a alusão aos modelos japoneses.

É conhecida, nas primeiras décadas do século XX, a estreita cumplicidade do cartaz moderno com a pintura. Como é sabido, a história da arte é a história da cor, pois até as pinturas das cavernas tinham cores. Mas não são apenas os pintores que concorrem para o desenvolvimento do cartaz moderno nos seus primórdios. Também os movimentos artísticos são importantes. É o caso da Arte Nova, sobretudo pelo facto “dos artistas publicitários serem também artistas pintores”.[7]O esteticismo teve influência na Arte Nova, através do uso de motivos retirados da Natureza, sendo que a partir de finais do século XIX falar de esteticismo passa a ser o mesmo que falar de “arte pela arte”: uma teoria que postula a autonomia da arte, a noção de que esta deve ter como objectivo proporcionar prazer estético, alheando-se de quaisquer outros fins ou valores. Influência decisiva no cartaz teve também a Stijl, com a sua relação ao suprematismo de Malevitch. E a Bauhaus, até se chegar à utilização de técnicas fotográficas, com os Estados Unidos a afirmarem o seu pioneirismo. Todos estes pintores ou movimentos artísticos influenciaram as diferentes expressões visuais do cartaz.

As condições para a emergência do cartaz digital surgem nos anos 90, coincidindo com o aparecimento do computador pessoal, com a miscigenação das imagens e com o esbatimento das diferenças entre fotografia, ilustração e pintura. Assim como o computador, a internet e as redes sociais protagonizam uma verdadeira revolução digital e introduzem alterações profundas na sociedade actual, também o cartaz sofre alterações profundas, desdobrando-se a partir de então em formatos distintos. É o tempo dos aparelhos digitais, que com a sua mobilidade transformam qualquer lugar num posto de trabalho e fazem de todo o tempo um tempo de trabalho. Para utilizar as palavras de Byung-Chul Han, entramos na era em que se assiste à formação de uma nova “massa”, a do “enxame digital”, muito diferente das “massas clássicas” estudadas por Marx ou Elias Canetti.[8]

O momento de transição do cartaz convencional – onde não deve incluir-se o cartaz digital interactivo – para o cartaz camaleónico, assinala uma verdadeira ruptura. No cartaz convencional, quaisquer que sejam os seus suportes e independentemente das evoluções gráficas ou cromáticas, o que temos é apenas uma única mensagem disponível para o receptor durante o seu tempo de vida.

O livro fecha com uma abordagem do cartaz camaleónico, que o autor caracteriza como “um trabalho de cruzamento entre várias áreas, que tem na utilização dos pigmentos “inteligentes” o factor de diferenciação e de inovação, na medida em que eles permitem que a obra possa emitir diferentes mensagens num certo período de tempo”.[9] São, pois, as características mutantes destes pigmentos – activados por uma fonte de calor ou por raios UV – que abrem caminho a um cartaz verdadeiramente revolucionário e de tipo novo, ao transmitir aos seus destinatários não uma, mas várias mensagens.

É muito curiosa a forma como Francisco Mesquita nos dá a ver, no seu projecto de cariz experimental, esse desdobramento da mensagem publicitária, recorrendo a uma fonte de calor “artificial” (secadores de cabelo) para criar obras visuais com mensagens poéticas de autores como Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade ou Corsino Fortes. O poeta dos heterónimos assenta que nem uma luva no que se pretende transmitir, na medida em que é possível estabelecer uma analogia entre o desdobramento do “eu” do poeta em várias personalidades e o desdobramento de uma mensagem publicitária em outras mensagens carregadas de diferentes sentidos. Estamos a falar de uma “imagem múltipla”, ou mutante, que se move em diferentes lugares do espaço gráfico.

Lisboa revisitada
Lisboa Revisitada, de Álvaro de Campos (extracto)

A multiplicidade de significados que é possível apreender ao visualizar o cartaz camaleónico é comparável à ambiguidade de sentimentos e estados de alma que se desprendem destes versos do engenheiro naval Álvaro de Campos, no poema Ao Volante do Chevrolet pela Estrada de Sintra, que nos mostra a inconstância do poeta que não se sente bem em sítio nenhum: “vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa / Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa”. O mesmo acontece em Lisboa Revisitada, um dos poemas de Álvaro de Campos seleccionados para ilustrar o trabalho sobre o cartaz camaleónico: assim como o sujeito poético já não reconhece aquela Lisboa que tem diante dos olhos e anseia pelo retorno mítico à Lisboa da sua infância, também no cartaz camaleónico o receptor deixa de ter acesso à imagem primitiva, entretanto alterada pelos “pigmentos inteligentes”.

O que o poeta e o destinatário da mensagem observam já não é a mesma coisa que tinham visto antes: assistem à metamorfose do real que têm diante dos olhos (e o papel da visão é essencial enquanto órgão de testemunho poético e de meditação do mundo). Dir-se-á, então, que Álvaro de Campos olha para uma Lisboa transfigurada do mesmo modo que um transeunte vê transformar-se, à sua frente, a imagem publicitária que o cartaz camaleónico difunde.

Eis um livro sedutor e que vivamente se recomenda, não apenas para os interessados na história da evolução do cartaz e da comunicação visual, mas também para os amantes das artes e dos movimentos artísticos em geral.


[1]Francisco Mesquita, Do Paleo-Cartaz ao Cartaz Camaleónico: Design, Criatividade, Inovação e Tecnologia, editora Adverte (1.ª edição), 2018, p. 13.

[2]Idem, p. 33.

[3]Idem, pp. 33 e 55-56.

[4]Idem, p. 40.

[5]Henri de Toulouse-Lautrec. Vida e Obra. Miniguia de Arte, 2001, p. 42.

[6]Francisco Mesquita, obra citada, p. 41.

[7]Idem, p. 36.

[8]Byung-Chul Han, No Enxame: reflexões sobre o digital, Lisboa, Relógio D’Água, 2016.

[9]Francisco Mesquita, obra citada, p. 61.