Dois curtos textos anticlericais

São apenas dois recortes de imprensa que fazem parte da tradição anticlerical portuguesa. Quase certo é tratar-se de textos inseridos na imprensa da Bairrada durante os tempos conturbados da I República. Ambos devem ser lidos nesse contexto. Neles, a Igreja e os padres são os bombos da festa. O primeiro está assinado por um auto–intitulado ex-padre, de seu nome Manuel Pinto dos Santos, e procura retirar crédito à Confissão. O segundo é uma pequena história de conteúdo humorístico, entre muitas outras que enxameavam a imprensa da época com o intuito de rebaixar figuras clericais. As mais conhecidas anedotas versavam a licenciosidade dos padres, que supostamente andariam metidos com uma mulher casada, cujo marido não estava habitualmente em casa. Não queiras potro/Nem mulher de outro era, à época, provérbio habitual de aviso aos padres para não desejarem aquilo que ainda não é, nem o que já não é (1).

06278.04910

Aqui se dão à estampa os dois curtos documentos, sem mais comentários.

I – A Confissão

“A confissão foi instituída no ano de 1215, no auge da perseguição; porque não se instituiu antes? Nunca antes daquela data se julgou precisa a confissão; porém, desde que se atravessava uma época inquisitorial, necessário era buscar um elemento poderoso de subjugação e disciplina.

Vendo Roma que o tribunal da penitência lhe dava bons resultados, decretou a confissão obrigatória a todos os fiéis, sob pena de não salvarem as suas almas. Parece que antes de existir a confissão nenhuma alma se salvou! A confissão é anti-liberal; a adoração a Deus não é. O confessionário é uma escola de imoralidade.

Eu, como já fui padre, já confessei e já disse missa, posso dizer o que de verdadeiro há sobre tal assunto. Não se avaliam facilmente os efeitos perigosos do confessionário, quantos fanatismos promove, quantas discórdias levanta entre as famílias, as suspeitas que gera no coração de duas almas, enfim, uma série de corrupções que tornam cada vez pior o nosso meio social, que tantas podridões já contém.

Para se avaliar dos efeitos do que preceitua a igreja católica, basta dizer-se que o maior patife, o mais terrível dos algozes, desde que se confesse e se finja arrependido, obtém um atestado de bom comportamento; mas se o homem mais digno, caritativo e esmoler se não confessar, é escusado pensar em obter semelhante atestado”.

II – “Ridendo…

“Corre por ai, como verídico, o seguinte: certo prior duma freguesia não muito distante, tido e havido como conquistador afamado, fora, um dia, não sabemos com que propósito, a casa dum seu paroquiano. Este, porém, não estava, mas sua mulher, com a franqueza que caracteriza a gente do campo, ofereceu ao visitante uma caneca de vinho na adega. O sr. padre aceitando, dirigiu entretanto umas palavras menos reverentes à esposa de Pedro – assim se chamava o paroquiano do sr. prior – a qual, indignada, contou ao marido a audaciosa tentativa do D. Juan. Todavia, Pedro continuou, embora aparentemente, de boas relações com o clérigo, até que um dia reuniu em sua casa vários amigos, para uma côdea, tendo comparecido também o sr. prior.

No final da refeição Pedro ofereceu-lhes vinho branco, tendo previamente ordenado que uma garrafa contivesse urina – garrafa cautelosamente dada à mão do sr. prior que, ao provar o néctar, bradou estupefacto:

– Pedro, isto é vinho?!… Tão salgado!!!…

– É, sim, sr. prior, e tirado da pipa que o sr. queria furar…

Ridendo castigat mores.”


(1) Paulo Correia de Melo, Anedotas e outras Expressões de Anticlericalismo na Etnografia Portuguesa, Lisboa, Roma Editora, 2005, p. 198.