Frantz, de François Ozon

 

Frantz (de François Ozon)

(depois de ver, no passado dia 10 de Janeiro, na RTP2, um filme belíssimo, que considero fazer parte dos filmes da minha vida)

Se há filmes – e o mesmo acontece com os livros – que têm o dom de nos agarrar logo de início, este é um deles, porque mergulha, com mestria, nas memórias e fantasmas da guerra. Um tempo em que se ama e que é o mesmo em que se morre. A guerra que um dia Paul Valéry definiu ironicamente como “um massacre entre pessoas que não se conhecem, para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram”.

Ozon conta-nos a história da frente para trás (que é também frente, a da batalha, onde descobrimos ter sido Adrien quem abateu Frantz, quando este apenas o olhava, desarmado, paralisado pelo medo, sem constituir qualquer ameaça). A mola do remorso que o impele a encontrar Anna, a noiva alemã de Frantz, e a visitar a campa onde este foi sepultado, revela-nos também uma verdadeira arqueologia do desconforto e do sofrimento psíquico. Um dia, porque o passado continuava a doer, rebentou o dique das emoções e ele contou-lhe a verdade.

A memória desse momento fatídico morde Adrien como um cão raivoso. E que dizer quando vemos Anna, mais tarde, a queimar no fogão de sala a carta que ele lhe manda – e na qual confessa aos pais de Frantz que foi ele que o matou – e a ler depois, aos sogros, o contrário daquilo que a carta dizia? Sim, às vezes mentir por amor é que é falar verdade. Às vezes, durante e depois do luto, é possível amar sem destilar vinganças, trocar o ódio pelo perdão e a compaixão.

Há uma espécie de monismo ideológico, de um pensamento mecanicista, previsível, segundo o qual uma guerra é sempre culpa do outro, do inimigo que não conhecemos, do que está no outro lado da barricada. Ozon procura (e consegue) subverter estes clichés: em qualquer guerra – e todas as guerras são absurdas, porque nelas só aparentemente há vencidos e vencedores – luta-se pelo mesmo em ambos os lados: pela vitória e pela sobrevivência, pela vontade de fragilizar ou eliminar o outro, para quem nós também somos “o outro” (vontade de poder, lhe chamou Nietzsche).

Frantz, de François Ozon (fotograma)Este filme de Ozon parece apontar para outro tipo de pensamento: já não o mecânico, mas o fragmentário, aquele que podemos encontrar, em doses mais ou menos generosas, em autores portugueses como Rui Nunes, Herberto Helder (onde é possível identificar caos e contínuo) e, sobretudo, em Maria Gabriela Llansol. Há mudanças subtis, imperceptíveis, a germinar todos os dias, à margem da contabilidade fria e calculista da História e do poder: será aquilo a que Llansol chama “a restante vida”; ou talvez, porque as utopias estão sempre a acontecer, a “comunidade que vem” de que fala Agamben. E aqui, estamos a falar de outra coisa: de pequenas erupções, que acontecem no mais recôndito do nosso ser, filiadas no domínio da ética e já não no da política.

Um filme casto. Só quase no final, na derradeira despedida de Anna e Adrien junto ao comboio, há o esboço de um beijo sempre reprimido. De um sobressalto. Naquele momento, ambos desejam que o tempo pare, para se despojarem de todos os artifícios do fingimento, lavarem a alma e serem autênticos e talvez felizes. Desejam suspender o tempo, porque o tempo, enquanto corria, suprimia inexoravelmente o prazer de estarem juntos.