Fronteiras: as literárias e as outras

GRANTAFronteiras, linhas de demarcação, baias, barreiras físicas ou psicológicas, há muitas e para todos os gostos: as visíveis e as invisíveis, as civilizacionais e as culturais, as políticas e as ideológicas, as fechadas e as de cooperação, as económicas e as demográficas, as das trevas e as do conhecimento. As que se deixam galgar e as que nos obrigam a ficar do lado de cá. As terrestres e as marítimas. As que separam a dignidade da abjecção, distinguem o amor do ódio, demarcam o prazer do sofrimento, apartam a esperança da desilusão.

As fronteiras delimitam espaços onde se condensam manifestações sociais e culturais que conferem traços identitários a quem neles habita, aquilo que nos une e distingue dos demais. Só que, num mundo em permanente mudança e a deslizar cada vez mais para o cosmopolitismo, as fronteiras que definem um limite de vizinhança entre entidades diferenciadas não podem ser estanques, apenas voltadas para si próprias, graníticas, à prova de bala. Têm de ser porosas, precisam de se deixar contaminar, porque os sentimentos de pertença ou de diferença (cuja afirmação pode ser positiva ou meramente ressentida) não podem constituir um entrave à percepção ou à fruição do que de bom se espraia para lá do lugar em que habitamos. Devem ser permeáveis à troca de bens culturais, ao intercâmbio de pessoas e à partilha de ideias.

A cultura, por exemplo, não pode estar emparedada ou acantonada em espaços exíguos, bacteriologicamente puros. A hemoglobina cultural precisa de circular, de esbarrondar fronteiras, de iluminar em vez de obscurecer, de acrescentar em vez de substituir, de projectar uma nova luz na tela dos conhecimentos que já existem, porque a história da cultura não é linear, mas cumulativa. Só assim é possível valorizar o lugar matricial, evitando que enquiste, ou definhe para sempre. A fronteira tem de ser cada vez mais lugar de cooperação e enriquecimento, de inclusão e não de exclusão.

Traçar uma fronteira é definir, e definir é sempre limitar. O último número da revista Granta apresenta como tema de capa as fronteiras e quer dar a volta a essa limitação. A revista pretende ser transatlântica, ao reconhecer distâncias e manifestar desejos de aproximação literária com o que está do outro lado do mar. Ler os outros é vencer barreiras e ultrapassar fronteiras.

Como refere Carlos Vaz Marques na nota de abertura, numa alusão ao que considera um dos paradoxos admiráveis da literatura, “sou mais eu sendo outro”. Palavras que nos remetem, procurando animar este novo espírito de aproximação e de encontro com o outro – e já que não podemos engolir o Atlântico – para o incontornável pequeno-grande poema onde Mário de Sá-Carneiro, na sua ânsia de Infinito, parece estar a meio caminho entre o que é (“o pilar da ponte do tédio”) e o que aspira a ser.

Ponte (ver poema de Mário Sá-CarneiroEu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

 

Mário de Sá-Carneiro, Indícios de Oiro
(Publicado no nº1 da Revista Orpheu, em 1915).