Histórias de Artesãos — de Armor Pires Mota

ArtesãosSabem os mais novos, e também muitos da geração actual, como e onde se fabricam as esteiras e qual a sua utilidade? E para que serve uma ladra? E um galricho? A resposta a esta e a muitas outras questões pode o leitor encontrá-la no excelente livro de Armor Pires Mota, a que deu o título de Histórias de Artesãos.

Ao proceder a um levantamento «daqueles que, por bem, nos entravam em casa [e] de que nenhuma família se podia alhear» (p. 9) o autor vem prestar mais um inestimável contributo à memória e à cultura da Bairrada. Por este seu trabalho perpassam objectos utilitários que foram outrora indispensáveis ao pulsar da vida em meio rural, marcas de um tempo que o rolo compressor do progresso tende a esmagar à sua passagem e a deportar da nossa memória colectiva.

Alfaiates, sapateiros, latoeiros, costureiras e tanoeiros, amoladores e ferreiros, esteireiras e moleiros, eis algumas categorias de artesãos que desfilam nas páginas deste livro enternecedor. E mal vão os que vêem nele a história de gente pouco importante. Estes homens e mulheres pautaram o ritmos de vida das nossas gentes durante muitos anos. Reuni-los em livro é uma forma superior de os homenagear, ao mesmo tempo que se divulga a história das comunidades, das artes e ofícios tradicionais e dos estilos de vida das populações e se reforça o sentido de pertença a uma terra e a um povo.

Evocar o que produzia cada um deles, «com as suas grandes ou pequenas tarefas, com as suas artes mais limpas ou mais sujas, mais pesadas ou mais leves» (p. 10) não pode ser entendido apenas como um voo nostálgico ao passado. É também uma vitória da memória sobre o esquecimento, que Armor Pires Mota nos oferece generosamente, projectando no futuro uma esperança: a de que será proibido esquecer a singularidade destes homens e mulheres, que à sua maneira ajudaram a suavizar vidas curvadas sobre a terra, existências difíceis e quase sempre viúvas de alegrias.

O acto de fixar estas memórias do passado ajuda-nos a perceber melhor as bruscas mudanças por que passaram as comunidades rurais. Conhecer como viviam e trabalhavam estes artesãos ajuda a reforçar o sentimento de pertença de cada leitor à comunidade em que se integra. É através dessa ligação profunda entre o património e a comunidade que se geram os laços de identificação de cada um de nós com o meio envolvente.

Este livro valoriza e divulga uma parte importante do património cultural da Bairrada, ao mesmo tempo que ajuda a estabelecer uma ligação íntima entre as gerações passadas e a nossa. Não será propriamente uma passagem de testemunho, disso não tenhamos ilusões. A goela hiante do progresso vai engolindo, uma atrás de outra, de forma impiedosa, as artes especiosas destes artesãos. Mas nem tudo está perdido: no futuro, outras gerações poderão dizer que nos primórdios do século XXI houve alguém, na Bairrada, que não deixou cair na vala comum do esquecimento tão importante repositório cultural.

Armor Pires Mota soube, a seu modo, acautelar o futuro. O livro é uma chamada de atenção para a memória das raízes. Num tempo cada vez mais incaracterístico e perigosamente uniformizador, não deixar secar as raízes é uma forma de dar sentido ao nosso viver do presente. Na verdade, não podemos nem devemos deixar cair no olvido, ou pura e simplesmente renegar, os registos antigos.

Numa altura em que as nossas terras de pão estão em grande parte abandonadas, em que muitos emigraram e no regresso se sentem já desintegrados da terra-mãe que de novo os acolhe no seu regaço, um livro destes é precioso, ao fornecer vínculos de ligação que só uma memória comum permite manter. É a argamassa, o traço de união dessa tal memória comum. Uma verdadeira relíquia com que Armor Pires Mota nos presenteia, se tivermos em conta a forma como aduba os valores da nossa própria identidade.

E parece fazê-lo sem saudosismos piegas, mas sim como acto de resistência à desumanização acelerada dos tempos que correm. Um dos seus grandes méritos é perceber que a memória, sendo passado, é também presente em que assenta o futuro.

Enquanto forma de expressão intemporal, o artesanato define a alma de um povo. Assim sendo, o carácter rural da Bairrada confere uma marca distintiva a algum do seu artesanato. E molda-lhe também uma alma muito própria.

Foi essa alma que Armor Pires Mota retratou, com pinceladas firmes e seguras, retiradas da paleta de um tempo em que o artesanato era uma disciplina importante da escola da vida.


(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 30.06.2004).