Idosos: vozes (cada vez mais) anoitecidas

“Idosos descartáveis” – assim titulou Armor Pires Mota a sua oportuna crónica no Jornal da Bairrada do dia 4 de Fevereiro de 2009. O mesmo título, embora na interrogativa, colou o escritor Arsénio Mota, da vizinha vila de Bustos, a um post do seu blog em Junho de 2008. Aproveito a embalagem para escrever também sobre um tema que merece séria reflexão.

Idosas

Lamentavelmente, o abandono dos idosos, a negligência e até os maus tratos a que tantas vezes são sujeitos, devem merecer a nossa melhor atenção e também o nosso mais veemente repúdio.

Para mistificar a realidade, a chamada sociedade pós-moderna transforma, em passes de mágica falaciosa, os idosos em “seniores”, como se a velhice fosse coisa sem sentido, não arrastasse consigo algumas moléstias, como a dependência, o desamparo e a solidão, não prenunciasse o aproximar da morte, ou não suprimisse progressivamente os prazeres que a vida realmente vivida proporciona.

Os eufemismos funcionam, na sociedade actual, como escudo protector e como arte de dissimulação. Exemplos? Tudo se faz para suavizar a nossos olhos a velhice dos outros. Os velhos, além de “seniores”, encerram um paradoxo: a sociedade que exibe a longevidade como valor supremo é a mesma que os trata como um fardo e um problema. Estamos cercados de idosos mas quase não os vemos. Encaixotados em lares de gosto duvidoso, duram tempo demais e dão cabo do erário público. Deixou de fazer sentido a ideia segundo a qual por cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece.

Este artifício retórico dos “seniores” podia ser evitado. Bastava que os que a ele recorrem tivessem a percepção do valor e dos benefícios da idade avançada que outras sociedades – países africanos e asiáticos, por exemplo – lhes reconhecem. Se nessas sociedades os velhos são descritos como “aqueles que ganharam sabedoria”, na cultura ocidental esses valores encontram-se em erosão acelerada. O envelhecimento é visto como uma “perturbação” e não como uma oportunidade de utilizar recursos adquiridos ao longo da vida; os idosos representam um fardo, esquecendo-se o apoio que muitas vezes alguns deles ainda podem prestar à família e mesmo à comunidade.

Não é só a sociedade que está em crise. É também a solidariedade, e os valores morais. E por isso falham cada vez mais as respostas do Estado e o modelo tradicional de obrigações filiais. Todos os anos, pelo Natal, assistimos ao espectáculo indecoroso de gente que interna os seus pais ou avós nos hospitais e os deixa por lá, sem a menor ponta de remorso ou o menor estremecimento de desconforto. Entretanto, os idosos têm “alta”, o hospital contacta, mas as famílias não aparecem. Despachado o fardo incómodo, demandam outras paragens onde vão passar o Natal e o Ano Novo, libertos de preocupações, mas atolados no egoísmo e na desumanidade, agindo como se os seus familiares fossem seres desprovidos de direitos.

Estamos a falar de crimes sem castigo. Quem faz isto, ou coloca os seus idosos em lares clandestinos de vão de escada, devia ser acusado de crime de abandono. A indiferença pelos direitos do nosso semelhante é uma forma de cumplicidade no atentado a esses mesmos direitos.

Enquanto as coisas continuarem como estão, estes actos ignóbeis tendem a transformar-se em rotina no quotidiano. A pressa, a ligeireza e o desinteresse (que é desconsideração) pelos outros, são a imagem de marca do nosso tempo. Na sociedade em que o ter se substituiu ao ser, em que cada um já não vale pelo que é mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.

Dizia Cícero – orador romano que nasceu e viveu antes de Cristo – que a velhice todos a buscam alcançar, mas quando a alcançam, deploram-na. Para ser possível suportar mais facilmente o envelhecimento só parece existir um caminho: devolver a vez e a voz aos idosos.


(Artigo publicado em Pretextos – Revista do Instituto da Segurança Social, I. P., n.º 36, Dezembro 2009, p. 4).