In Memoriam de António Hespanha (1945-2019)

António Hespanha
Foto: António Pedro Ferreira

Desapareceu há dias do nosso convívio o historiador António Hespanha. Um dos docentes que mais me marcou, como marcou várias gerações de outros historiadores, com uma obra original e profunda sobre o discurso historiográfico e sobre as instituições do período moderno.

Preocupou-se em aplicar à História aquilo que, mutatis mutandis, a crítica moderna fez com o palimpsesto para analisar a interinfluência dos textos literários: um texto, por mais original que pareça, uma vez raspado com as minúcias da crítica, desvenda-nos um outro texto sob a superfície do mais recente. No mestrado em História e Sociologia do Poder, o Professor Hespanha ajudou-nos a perceber como o discurso político se constrói sobre elementos que lhe são anteriores, sobre uma linguagem pré-existente e já carregada de sentidos. E sobre imagens, metáforas e dispositivos retóricos importados de outros discursos, desde discursos do senso comum até aos discursos de saberes especializados.

Esta era uma forma de identificar modelos intelectuais que pré-condicionam a reflexão sobre a sociedade e o poder. Nas suas aulas, cada estudante era obrigado a explorar, procedendo a uma “leitura densa”, um texto significativo. Exigia-nos uma leitura em profundidade, capaz de recusar o sentido comum e de subverter uma leitura calmante do passado. Um trabalho de recuperação dos sentidos originais, onde o sentido superficial deve ser arredado para abrir caminho às camadas sucessivas de sentidos subjacentes.

Tratava-se, para o Professor Hespanha, de recuperar a estranheza e não a familiaridade do que é dito. Em vez de acolher leituras pacíficas, obrigava os alunos a reflectir, a levantar porquês a cada palavra e a cada conceito, a cada evidência de senso comum, porque a História já não é um campo de certezas, mas muito mais o lugar que reclama o exercício da interrogação permanente das ideias adquiridas.[1]

António Hespanha (Leviathan)Foi este exercício da interrogação permanente que António Hespanha reclamou quando presidiu à Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. Mais do que reproduzir uma visão poética dos Descobrimentos, cantar feitos gloriosos da epopeia, interessavam-lhe os olhares plurais e sobretudo o olhar do outro – e não apenas o ponto de vista europeu – sobre os portugueses, procurando lidar de uma forma saudável com a diferença. Tratava-se, em suma, de romper com os estereótipos nacionalistas que escamoteavam alguns pontos negros do contacto dos portugueses com outros povos e dar a conhecer a complexidade dos Descobrimentos dum ponto de vista europeu, indiano e brasileiro. Uma visão, digamos, menos “lusocentrada” que as anteriores e muito menos preocupada com as façanhas e a tradicional gesta guerreira dos portugueses.[2]

Uma visão, também, que sem esquecer a representação memorial e unificadora do passado, incorporasse em simultâneo a sua visão crítica. O Vasco da Gama herói e comandante da primeira armada que realizou o trajecto marítimo entre a Europa e a Índia, corresponde à representação memorial; à representação crítica corresponde o Vasco da Gama das atrocidades que cometeu na região: um barco afundado com meia centena de peregrinos muçulmanos e o capitão que não se inibe de torturar um embaixador de Calecute: “Depois de lhe cortar os lábios e as orelhas, mandando coser as de um cão no seu lugar, devolveu-o ao seu senhor”.[3]

Era assim António Hespanha, um homem sempre pronto a questionar ideias feitas em torno dos Descobrimentos e da colonização portuguesa. O império construído pelos portugueses tem muitos rostos e não apenas o daquele império brando que ao longo dos séculos foi sendo maquilhado pela ideologia do poder oficial. Recordo agora com saudade as suas aulas, mas sobretudo o lugar onde, no final, elas costumavam desaguar: os corredores do Instituto de Ciências Sociais. Era neles que o Professor gostava de confraternizar com os seus alunos, amena cavaqueira onde a sua desarmante ironia estava sempre presente.

Numa dessas conversas, em meados dos anos 90, ao saber que o meu trabalho de investigação era uma biografia de contexto sobre uma personalidade de Aveiro, perguntou-me se eu era de lá. Respondi que sim e ele retorquiu:

– Mesmo de Aveiro?

– Não – respondi. De uma aldeia com um nome patusco: Palhaça.

– Conheço bem. O meu pai era juiz, trabalhou alguns anos como notário em Oliveira do Bairro (sede do concelho a que a minha freguesia pertence) e costumava frequentar o Café Trianon, em Aveiro, e a tertúlia reunida em torno da figura de Mário Sacramento. A seguir voltou a perguntar:

– Mas diga-me lá, o que pretende provar com a sua tese, qual é a questão central?

António Hespanha (Poder)A minha resposta baseou-se no conhecimento rudimentar que então tinha do jornalista e panfletário Homem Cristo: alguém que fundara um jornal republicano mas não aderira à malograda intentona de 31 de Janeiro de 1891, que visava derrubar a Monarquia e implantar a República; sabia que esse jornal republicano tinha sido suspenso em Outubro de 1910, já depois de proclamada a República, e que esta obrigara o jornalista a exilar-se; sabia que em 1912 o republicano Homem Cristo funda em Paris O Povo de Aveiro no Exílio, um jornal abertamente contra o poder republicano instalado em Portugal e que contava com o apoio dos monárquicos exilados. Tudo isto me levou a responder-lhe:

– A questão central do meu trabalho de investigação é tentar encontrar a racionalidade do seu comportamento político-ideológico, a matriz ética na qual entroncam os seus desencontros com a produção de valores, representações e mundividências do poder republicano.

O Professor Hespanha respondeu qualquer coisa parecida com isto:

– Aconselho-o a não ir por aí. Não tem que procurar qualquer racionalidade de comportamento no percurso político de Homem Cristo. Na base das práticas e dos comportamentos humanos encontram-se opções em face de determinadas situações concretas e conjunturais. Estas situações são avaliadas de acordo com disposições espirituais, cognitivas ou emocionais, que ditam também o tipo de reacções dos sujeitos e a origem dos sentidos autênticos das suas práticas.

Anotei estas preciosas dicas metodológicas, que generosamente costumava oferecer em conversas amenas, no fim das aulas. Até sempre, querido Mestre e Amigo.


1 – António Manuel Hespanha, “Linhas de força de uma nova história política e institucional”. Textos de apoio para o Mestrado em História e Sociologia do Poder – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

2 – “António Hespanha, Olhares Plurais” [entrevista de Rui Rocha], Revista do Expresso, 03.08.1996, pp. 75-79.

3 – Paulo Jorge de Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? 100 Perguntas sobre Factos, Dúvidas e Curiosidades dos Descobrimentos. Edição A Esfera dos Livros, Outubro de 2013.