Injúrias parlamentares e duelos no campo da honra

Desavenças por motivos políticos, expressas em palavras consideradas ofensivas, dúvidas sobre a honorabilidade pessoal, eis os ingredientes da recente troca de mimos entre um deputado socialista e outro social-democrata. É só mais um rombo na credibilidade do Parlamento. O insulto na política perde-se na memória dos tempos. Mas o que verdadeiramente põe a democracia de rastos nem é o insulto inteligente; é a linguagem grosseira dos que se colocam em bicos de pés, procurando tapar, com a altura que não têm, a pequenez da estatura que sempre tiveram.

Tempos houve, já depois da implantação da República, em que as ofensas davam lugar a duelos travados no espaço público e não ainda no Parlamento. Apesar de um decreto de 1911 substituir os duelos pelos tribunais de honra, os adversários políticos continuavam a ser desafiados para se bater em duelo. Recusar o desforço pelas armas equivalia a ser considerado covarde, a não querer defender a própria dignidade, a sofrer a excomunhão dos amigos. Correspondia, naquele tempo, a uma desqualificação social pura e simples.

Quando, enfim, o Parlamento passou a ser o “campo da honra”, as coisas não se tornaram mais edificantes. Entre muitos outros, ficou célebre um episódio que mostra bem a personalidade forte de Homem Cristo, o celebrado panfletário de O Povo de Aveiro, a quem Guerra Junqueiro chamava “um brutamontes com ideias”. Corriam os anos vinte. Um discurso duro e impiedoso que proferiu na Câmara dos Deputados contra Leonardo Coimbra – a quem chamava “o Imbra”, por ter perdido o apêndice… – transformou a sessão numa grande algazarra. O grupo de Leonardo, que tinha abandonado a sala quando Homem Cristo discursava, reentra aos poucos no hemiciclo e lança ao orador apartes provocadores. Quando resolvem avançar para a agressão física, dispostos a correr com o orador a pontapés, tendo à frente, ameaçador, o Abade de Penude, Homem Cristo meteu a mão ao bolso, sacou de uma pistola e afrontou corajosamente os adversários:

– O primeiro que avançar, estoiro-lhe os miolos! O Abade deu um salto para trás e todos os outros se detiveram. O orador continuou a falar, a acusar, cada vez mais brutal, cada vez mais cáustico (1).

Em tempos bem mais recentes, ficou célebre o “Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”, uma catilinária política de Carlos Candal, antigo deputado socialista pelo círculo de Aveiro e homem de língua afiada, que há poucos dias aconselhou o seu partido a responder com “uns chutos” (leia-se: exclusão da lista de deputados) às tropelias sem freio do poeta Manuel Alegre. No Manifesto, Portas é alcunhado de “democrata precário”. Referindo-se a ele e ao “excursionista” Pacheco Pereira, os intrusos lisboetas que no ano de 1995 concorriam às legislativas pelo círculo de Aveiro, terminava assim o Manifesto: “Na noite do próximo dia 1 de Outubro, espero poder pendurar no meu cinto de caça política as tais duas aves de arribação – espécies exóticas lisboetas pouco apreciadas na região cinegética de Aveiro: um garnisé-cantante e um pavão-de-monco-caído” (2).

Enfim, o verbo até pode delirar, ou o adjectivo derrapar. Os portugueses, aliás, esfregam as mãos de contentes por uma boa polémica. Triste é quando o espírito polémico ultrapassa as tiradas do mais fino recorte literário e descamba para certas insânias, como cenas de tiros ou cabeças rachadas. Ou, pior do que isso, para a ofensa ou o palavrão gratuito, como aconteceu agora no Parlamento, onde o deputado laranja José Eduardo Martins resvalou para a indignidade ao lançar um insulto soez ao deputado rosa Afonso Candal.

Enfim, sempre que em política os adversários desprezam o debate de ideias, o que sobressai é a atávica impreparação dos contendores. Ceder à tentação do rótulo excessivo, ou da insinuação malévola sobre valores morais ou costumes, nunca foi a melhor via para ganhar o crédito dos eleitores.

Senhores deputados: não deixem que o insulto empurre ainda mais o nosso desprestigiado Parlamento para as ruas da amargura. O que se vos exige é apenas isto: um pouco mais de cordura. Pode ser?…


(1) Barradas de Carvalho, “Homem Cristo, o dragão de Aveiro”, in As Grandes Polémicas Portuguesas, Vitorino Nemésio (dir.), 2.º vol., Lisboa, Editorial Verbo, 1967, pp. 377-399.

(2) Litoral, n.º 1868, 15.09.1995.