Laureano Barros e Luiz Pacheco: o bibliófilo e o libertino

O Grilo na VarandaVi há dias na RTP-2, com particular agrado, o anunciado documentário sobre a vida e obra do grande bibliófilo que foi Laureano Barros, que em vida reuniu uma das mais importantes bibliotecas privadas portuguesas da segunda metade do século XX. Entre outras coisas com interesse, muito curiosa é a correspondência que trocou com Luiz Pacheco, o editor e escritor libertino que colecionava escândalos.

O Grilo na Varanda reúne essa correspondência de 35 anos. Foi o primeiro livro que levei para a praia e li no Verão passado. A obra assemelha-se a um verdadeiro recife de corais, onde em cada toca se alojam a ironia e a mordacidade, o látego com que Luiz Pacheco fustiga o meio literário português. Depois de tanto insistirem para que escrevesse um romance, qualquer coisa de grande fôlego, é com refinada ironia que ele desabafa ao amigo Laureano: “Andavam a pedir-me há que tempos uma obra de fôlego, esquecendo-se que sou asmático hereditário”.[1] Talvez um dia tenha sonhado escrever esse romance, para se afirmar de vez no silvedo que era o meio literário do seu tempo. A urgência do dia a dia nunca lho terá permitido. Às vezes o homem sonha. A obra é que nem sempre nasce.

Sempre me perguntei como foi possível esta relação improvável, esta deliciosa troca epistolar entre duas pessoas tão diferentes: dum lado, um proprietário abastado, um homem organizado, que apreciava o conforto material; do outro, o editor eternamente falido, um escriba  desalinhado, ácido e irreverente, a pernoitar em tugúrios, prisões e hospitais, sem um chavo na carteira, a viver de cravanços e expedientes (para comer, para pagar a renda da casa, ou até para tirar a máquina de escrever do prego), a praticar o rude ofício da escrita nas piores e mais precárias condições, o crítico literário mais dado a demolir do que a construir, como o são todos os panfletários.

O traço de união para tamanha empatia, capaz de criar laços entre duas personalidades tão distantes e tão distintas, só pode ser este: o amor e a paixão que ambos nutrem pelos livros e pela literatura. Como seria de esperar, as cartas que integram o livro são apenas as de Pacheco para Laureano. As que deste recebeu o autor de Comunidade terão levado sumiço, perdidas na voragem de uma vida aos repelões, como o próprio nómada impenitente confessa: “Há anos, desde que deixei Massamá, que fazia de saltimbanco, por vários poisos em Lisboa, Montijo, Lagos, Condeixa-a-Nova, etc.”.[2]   Numa outra carta, acrescenta: “Em Setúbal, deixei eu muita papelada. E na Parede, há anos, uma caminheta cheia de livros e papéis, entre os quais todo o espólio que salvara do António Maria Lisboa”.[3] Tudo isso e mais a consabida falta de saúde, as fugas e fintas à autoridade dos costumes, à justiça e aos credores, fizeram o resto. Uma vida a tocar as raias do abjeccionismo, que também cultivou.

Ao espírito do matemático que colecionava raridades bibliográficas ficamos a dever o conhecimento de grande parte dos manuscritos de Luiz Pacheco, de que foi fiel depositário. E também o conhecimento da sua compulsão epistolar, da sua existência precária e da sua vida atribulada. Tanto basta para que lhe fiquemos gratos para sempre.

Falemos, então, um pouco mais do homem que ousou viver sem rede de segurança, com filhos dispersos ou entregues à Casa Pia. Do iconoclasta em equilíbrio precário no fio da navalha que foi a sua vida itinerante, passada quase toda ela em quartos alugados: “Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler”.[4]

Assumiu fraquezas e fracassos, a bissexualidade, a atracção por ninfetas e efebos. O Pacheco de costela maldizente desceu aos infernos e ao fundo da noite, tudo fez para os habitar e nada para os evitar, embora capaz de resistir, por largo tempo, ao caruncho do corpo e dos dias. Nada disso o impediu de escrever Comunidade, um dos textos mais perturbantes da nossa literatura. Apesar do feitio arrevesado não lhe granjear muitos amigos, não deixava de ser uma figura de culto. Saramago apreciava-o. Ao ler Teodolito, comenta: “Por que bulas infernais não está este homem traduzido em Espanha?” (Cadernos de Lanzarote – Diário II, pp. 186-187).

Entrevistado quando já vivia num lar, Luiz Pacheco disse coisas desassombradas, mas tão verdadeiras como estas: “Vais no corredor e vês um gajo numa cadeira de rodas ou um gajo com um passinho assim assim e tens de fazer um passinho também assim (…). Um gajo chega à mesa e a conversa é: 13-7, 14-9, que são as tensões arteriais; o da frente não caga há quatro dias, sete dias, dêem-lhe um purgante ou um clister; o outro está com a dentadura na mão, estou a comer a sopa e vejo ao lado um gajo a olhar para a dentadura. Que horas são?”[5]. Eis a lucidez, por mais fria, crua e dura que seja, a contrastar com a hipocrisia de uma sociedade habitada cada vez mais por idosos, mas que os esconde, quase não os vê, ou mal dá por eles.

Diário RemendadoApesar disso, Luiz Pacheco não se considerava um escritor maldito. É isso que nos diz no Diário Remendado: “Quando rebati a idiotice do escritor maldito estava a atacar frontalmente (…) um modus vivendi em que a maioria se deleitava: viver a melhor vidinha possível, considerando a Literatura não um acto de conhecimento e afirmação (desafio, contestação, intervenção, criação pura, total) mas uma mercadoria mais na sociedade de consumo”.[6]

Era assim “o Pacheco”, nome por que era conhecido nas tertúlias das letras: dava-nos páginas impiedosas, daquelas que abanam e abalam. Literatura do mais fino quilate. A aura de libertino que continua colada ao seu nome, assim como a de escritor maldito, continuam a seduzir muita gente. Gente que o admira, mas incapaz de trilhar um só que seja dos ínvios caminhos que percorreu. Todos gostaríamos de ser um pouco “malditos”, não é? O problema é que nos falta a coragem para desafiar as patrulhas da moral e dos bons costumes, para arrostar com as consequências. Salvo raríssimas excepções, somos mais dados ao aconchego conformista, ao não fazer ondas, nada dados à heresia e muito menos à apostasia. Ou, vamos lá, a um grãozinho de loucura. Portanto: pragmatismo resignado, normalizados quanto baste, assim como quem sai de uma cadeia de produção em série. Umas vezes deprimidos, outras nítidos nulos, para tomar de empréstimo um título de Vergílio Ferreira.

Do homem que fazia da insubmissão um estilo literário, do provocador escandaloso e do adversário impiedoso da moral social dominante, há quem diga o melhor e quem diga o pior. Quem o incense e quem o recrimine. Por mim, revejo-me nesta bela síntese de João Pedro George, na introdução a O Crocodilo que Voa: “Era rude? Era torcido? Era cruel? Talvez. Era inconveniente? Rompia em excessos? Descambava nas indelicadezas? Dava respostas chulas? Melhor! Quando à nossa volta o clima mental é lúgubre e estéril; quando o meio literário em que vegetamos não promove o espírito crítico, antes o comércio escuro e as mútuas mesuras (…) abençoado Pacheco!”[7]


[1] O Grilo na Varanda. Luiz Pacheco para Laureano Barros. Correspondência, 1966-2001. Lisboa, Tinta da China, 2017, p. 98.

[2] Idem, p. 185.

[3] Idem, p. 69.

[4] Luiz Pacheco, “Comunidade”, in Exercícios de Estilo. Lisboa, Editorial Estampa, 1973, p. 128.

[5] Entrevista de Anabela Mota Ribeiro a Luiz Pacheco, Diário de Notícias [DNa], n.º 108, 19.12.1998.

[6] Luiz Pacheco, Diário Remendado (1971-1975). Lisboa, edições Dom Quixote, 2005, p. 182.

[7] O Crocodilo que Voa. Entrevistas a Luiz Pacheco. Lisboa, Tinta da China, (João Pedro George, Introdução), 2015, pp. 12-13.