Letras sob Protesto — de Arsénio Mota

Capa jpegNo momento em que assinala meio século de actividade de escrita, Arsénio Mota brinda-nos com mais um livro. São já cinquenta anos de labor, recheados de publicações de vária ordem – textos jornalísticos, ensaios, contos e crónicas, traduções, poesia, literatura infanto-juvenil – saídas da pena de um homem culto, autor vivo e produtivo, consciência eriçada do tempo que lhe cabe viver.

Fica desde já a garantia: a voz que se esconde por detrás das palavras pertence ao homem. Não é falsete. Aqui não há meias tintas, fala-se claro e com espessura. O autor sabe da poda, diz abertamente de que lado está, o que defende e aquilo que o constrange. Letras sob Protesto é, a seu modo, um olhar pouco usual sobre as consequências da cultura dos media no panorama literário actual, uma espécie de balanço da instituição literária, pois aflora o estado da arte nas suas diferentes instâncias: questões que se colocam ao autor, meandros da escrita e da leitura, crítica literária e edição, entre outras.

O livro abre com «O texto aberto». Arsénio Mota discorre com propriedade sobre as técnicas da escrita criativa, as diferentes maneiras de cativar o leitor, a arte de manter aceso o lume da expectativa inicial. Diz ele: «O primeiro parágrafo deve apanhar o leitor inadvertido, com a naturalidade do anzol colocado no caminho do peixe que vai de passagem» (p. 13). Mas não basta passar uma história ao papel para que ela seja aliciante. É preciso que o ritmo da narrativa desenhe uma curva ascendente, capaz de amarrar o leitor, de lhe adubar a imaginação enquanto convive com o texto e faz dele seu acompanhante.

Logo a seguir, o autor empenha-se em mostrar que os textos literários actuais reprimem o que é novo e inovador, ao trocarem tudo isso pela escrita conformista do politicamente correcto. O espaço da criação está cada vez mais reduzido pelas lógicas de mercado. Publica-se o que está a dar (…dinheiro, entenda-se). Os mecanismos da escrita estão agora orientados para seduzir ao primeiro contacto. Escrever assim, apenas aquilo que os outros gostam de ler, não é só um acto calculista: limita também o acto criativo e condiciona a imaginação.

É óbvia, nesta abordagem, a crítica à chamada «literatura light», que os seus adeptos preferem apelidar de «escrita pop» (não vá o termo literatura ser excessivo!). Uma escrita que se sente como peixe na água neste tempo de profetas do fim da história e das ideologias. Puro reino do efémero, uma era do vazio e de amnésia generalizada, onde as técnicas de sedução «substituíram os recursos artísticos da retórica». (p. 15). A literatura «light» vai de vento em popa. Não por acaso, Margarida Rebelo Pinto – a principal cultora do género – é a escritora portuguesa que mais vende. E vende tanto – os seus livros saem às fornadas, como pãezinhos quentes… – que um escritor laureado como é Lobo Antunes não resistiu a recordar-lho: «A menina conseguiu, em três anos, o que eu consegui em trinta».

Quando vemos alguém, na casa dos trinta anos, num país com os hábitos de leitura do nosso, já com mais de 500 000 exemplares vendidos, algumas interrogações se levantam: não terá a sua escrita algum mérito, o de pelo menos saber contar uma história?  Será que estamos apenas na presença de um fenómeno sociológico gerado pelo efeito do marketing? Mesmo admitindo que a escritora vá, com mestria, ao encontro das expectativas dos leitores, a verdade é que grande parte dos críticos não descortina nas suas obras qualidades estéticas apreciáveis. Ela chama-lhes, pois claro … impotentes literários! Ao que apelida de «leveza» da sua escrita, outros preferem chamar, com todas as letras, superficialidade. Pode esta escrita ter alguma validade enquanto diversão, assim como quem ordena selos em catálogos, num tempo de quotidianos amargos e sombrios. Certo, certo, é que é tão leve que consegue voar alto nas listas de vendas. Veremos até quando. O futuro vai dizer se estamos ou não em presença de um sucesso com prazo de validade.

Seria curioso, já agora, saber quem a lê e lhe compra os livros. São os que compram e lêem com regularidade? Ou os que nunca hão-de transformar tais actos em rotina ao longo da vida? Dificilmente estaremos em presença de um salto qualitativo no panorama literário português. Refere Arsénio Mota que a época actual «não brilha pela reformulação inventiva» (.p. 15). Talvez possamos então falar, com mais propriedade, de uma tendência editorial pouco interessada com a qualidade do produto que coloca no mercado. Para ir ao encontro do consumidor os livros devem vender sonhos. Quanto mais ligeira for a dose de informação e elevada a dose de evasão, maior será o sucesso.

Esta questão do sucesso e da notoriedade do escritor remete-nos para outros temas caros a Arsénio Mota e também presentes neste seu livro. «Ser escritor» (pp. 17-20) é um breve mas estimulante ensaio sobre o conceito de escritor, a sua notoriedade ou o estatuto marginal que detém no campo das letras. Se nem todo o autor de um livro é necessariamente um escritor, quem lhe confere tal direito? O barulho de uma árvore a tombar com fragor no meio da floresta existe, se ninguém o escutar? A qualidade do que escreve um autor fica garantida mesmo que ninguém o leia?

O sucesso de um autor – não a qualidade – mede-se em termos de público leitor, por muito que isso custe a uns tantos. Quem escreve aspira a ser lido e os que fingem borrifar-se para isso são geralmente os mais sôfregos. A paráfrase de Miguéis, que abre o livro, é bem esclarecedora: escrever é uma acção inútil ou gratuita: é a leitura que a torna útil.  Mas quem são os leitores que definem hoje o sucesso de uma obra? De que matéria são formados? Eles existem em todas as classes sociais e gostam de se reconhecer cada vez mais idênticos aos outros – no pensamento, nas preferências, nos usos e costumes, nos estilos de vida. Por isso repelem o que é diferente, singular, individual. Habituado a consumir produtos culturais estandardizados, o leitor moderno rejeita os que se lhe apresentam mais elaborados. Numa sociedade cujo quadro de valores está orientado para a felicidade no consumo, consumir a qualquer preço é a palavra de ordem.

Isto leva Arsénio Mota a questionar-nos sobre quem qualifica o autor como escritor, após a publicação de uma obra: «os leitores, com os críticos à frente»? E que tipo de leitores, se eles «se repartem pelas diversas qualidades do público»? (p. 18). Será o resultado dessa amálgama uma qualificação fiável? Confrontando-nos com este tipo de raciocínios, deixa ainda no ar a seguinte interrogação: «não haverá por aí obras de real categoria desprovidas de leitores à sua medida»? (p. 19).

«Não escrevas mais, pá», é um texto alagado de ironia subtil, onde transparece algum pessimismo e o lamento do escritor marginalizado e ignorado pela indústria cultural. Escrever para quê e para quem? Porque teima em escrever quem sabe que nunca vai tornar-se um mandarim das letras, e por isso não procura lucro fácil nem glória? Diz Arsénio Mota que  por semana aterram nas livraria mais de cinquenta livros novos. Parece óbvio que o leitor que trabalha, compra diários, semanários e revistas, que é inundado todos os dias pela variada oferta televisiva e exposto às mensagens publicitárias do cartaz e do outdoor, acaba por se perder nesta densa floresta de palavras e imagens: «tanta escrita a jorrar excede em muito a capacidade real de leitura da gente» (pp. 21-22). Como o tempo não abunda, «a leitura das obras originais anda a ser substituída por leituras de comentários produzidos sobre as obras originais» (p. 22).

O caudal esmagador de informações produzidas pelos media deixa o espírito humano desarmado, condena-o a ser superficial. Uma sociedade da informação não é, necessariamente, uma sociedade informada. O indivíduo inundado por este fluxo de mensagens contraditórias e desordenadas, sem qualquer hierarquia de valores, vê reduzida a estruturação do seu pensamento. Os media introduziram uma densidade de tipo novo na tela da sua cultura. Os estragos são notórios, pois a força de uma cultura está ligada à probabilidade de associações que um saber fragmentário não consente.

O autor sabe tudo isto, mas não larga a freima da escrita, precisa dela como do ar que respira: «Cansas-te a escolher uma a uma as letras, as sílabas, as palavras que colocas em linha com a minúcia escrupulosa de quem enfia pérolas esplêndidas num colar» (p. 21). Não haverá em tal frenesim um acto de puro masoquismo? É que o calvário do escritor não termina aqui! Se deseja publicar, dá de caras com editores que não mexem uma palha para lhe promover os livros, pois crêem que é o autor que vende e não os filhos que ele próprio gera. E para vender tem de se transformar em «marca», o livro já não vende por si mesmo mas pelo marketing que o promove. Hoje compra-se o autor repetidamente publicitado, em vez da obra: «pegamos em Saramago ou Lobo Antunes, Eugénio ou Ramos Rosa, como quem escolhe cozido à portuguesa e linguado frito, com vinho da Bairrada ou do Dão» (p. 28).

Se o autor tem nome na praça, pode acontecer que os editores lhe trabalhem o livro, tracem uma estratégia de marketing ou cuidem de aspectos promocionais. Hoje são os media que regem a cultura dos nossos dias. Eles filtram,  seleccionam elementos particulares, valorizam umas ideias e desvalorizam outras. Em suma, polarizam o campo cultural. Aquilo que não passa nos media perde toda a influência e importância. Aparecer na imprensa ou na televisão e ser entrevistado nas revistas do social é assim tão ou mais importante que o trabalho solitário e minucioso da escrita. Tudo serve para ir ao encontro do leitor. Mas pobre do autor que vive cercado em anonimato: tem de correr por sua conta e risco, palmilhar sozinho os ínvios caminhos do mercado. E no fim da via-sacra acontece, às vezes, não saber ao menos quantos exemplares da obra foram vendidos. Pode até nem receber, a tempo e horas, aquilo que lhe é devido. Um problema, sem dúvida, de propriedade intelectual, já que no plano da cidadania todo o escritor deveria ter direito ao ganha-pão, pelo serviço público que presta.

Pasme agora o leitor com esta verdadeira pedrada no charco, capaz de ofender os deuses – sim, os deuses ofendem-se com a dúvida – do Olimpo literário: Arsénio Mota afiança que ao lermos um autor estrangeiro consagrado podemos estar a comer gato por lebre. Assim mesmo. A paternidade literária pode andar arredia do escritor que nos entusiasma: «Talvez as páginas que leu com enlevo não tenham saído verdadeiramente do cérebro do seu autor favorito!» (p. 95). Descubra o leitor os intrincados meandros desta produção literária que atinge foros de um lamentável processo de fagocitose intelectual. E se pensa que não pode ser ludibriado de forma tão rasteira, atente bem nisto: há tempos, circulou  na Internet um texto atribuído a Gabriel Garcia Márquez. Atormentado por um linfoma, o escritor colombiano despedia-se dos amigos e da vida. A carta, muito bela e cheia de humanidade, tocou toda a gente, de tal modo que alguns homens de cultura da nossa praça não resistiram a comentá-la e a transcrevê-la na imprensa diária de grande tiragem. Foi-se a ver … e a carta era falsa! Toda a gente foi enganada. E o que mais surpreendeu o escritor foi que os seus fiéis leitores tivessem, por um momento, acreditado que semelhante texto fosse seu. Só espero não morrer de vergonha – acrescentou, com evidente ironia. Este exemplo ajuda a perceber como qualquer autor consagrado se pode «alimentar» dos autores anónimos e marginalizados, a quem Arsénio Mota chama, com propriedade, os forçados das letras.

O livro esboça, também, uma espécie de requiem à crítica literária actual. Ora se insurge com a crítica que «passa a deslado de quaisquer comentários» a obras inovadoras, como se estas fossem «pechisbeques insignificantes» (p. 61), ora lamenta que ela se exerça «com a frieza aparente de cientistas vestidos de bata branca» (p. 59). O que parece incomodar Arsénio Mota é uma interpretação literária que tende a considerar a obra autónoma em relação ao criador, ao relegar da análise estética a ética que lhe subjaz. Ao separar o sujeito do objecto, a análise textual procede como o cientista que isola o objecto para melhor aquilatar da matéria que o enforma (por isso se fala tanto em «dissecar», em «esquartejar» o texto). Pode analisar-se a obra literária silenciando a voz humana que a comanda? Tanta «objectividade», tanto bisturi da crítica a esquartejar o texto – esquecendo que os textos falam e têm por detrás um criador que é humano – ajudam à compreensão da obra? Por muito brilhantes (mas também quase sempre densas e obscuras) que sejam as tipologias e classificações académicas, a compreensão do texto literário fica diminuída se lhe escapa a componente humanista e as circunstâncias histórico-culturais em que nasce e é produzido.

Ao contrário dos que desdenham por completo de toda a crítica literária – uns dizem que ela não existe, outros que os críticos gostam de cuspir na sopa que os alimenta… – Arsénio Mota considera o seu papel insubstituível, enquanto veículo pedagógico de esclarecimento para potenciais leitores e capaz de nos restituir o prazer do texto. Aspira a uma crítica literária não manietada pela lógica do mercado e não submetida a cânones académicos, que mais parecem servir para agradar aos mestres do que para iluminar e esclarecer leitores. Na verdade, há por aí críticos que transformam os textos em algo bem mais trabalhoso e enfadonho que os próprios livros que comentam. Empenham-se na desconstrução do texto e na arqueologia do saber com tal apego, para nos dar a substância última da matéria literária, que reduzem a quase nada as possibilidades de compreensão de quem os lê (é aquilo a que Fernando Venâncio chama «magia negra foucaultiana»).

O que anima Arsénio Mota é o desejo de uma crítica exercida com regularidade nos órgãos de comunicação social, feita por jornalistas competentes, frontal e isenta, «sem olhar a amiguismos, sem fretes a editoras» (p. 63) e não a que se tornou domínio de raros especialistas de linguística. É preciso «descativar a crítica literária dos feudos universitários que algum dano lhe têm feito» (p. 62). E que os críticos joeirem tudo, dando-nos a ver as pepitas reluzentes, pois sem o brilho da publicidade permanecerão invisíveis ao olhar. No mar dos sargaços literário também há peixes de águas profundas que precisam de vir à tona. Só com eles é possível resgatar a polifonia de vozes silenciada pela lógica de ferro do mercado da cultura. Neles residirá a esperança de alguma inovação estética e a originalidade possível, ao arrepio das fórmulas do sucesso garantido.

Um dos méritos de Letras sob Protesto é o de todos os temas suscitarem dúvidas e interrogações, serem textos pouco recomendáveis a espíritos amolecidos, num tempo em que a fuga ao acto de pensar é uma das marcas distintivas do homem contemporâneo. Arsénio Mota corre os riscos próprios de quem se expõe de peito aberto à intempérie, ao indagar os porquês do sucesso rápido e a razão pela qual os holofotes da publicidade incidem apenas em meia dúzia de escritores. Arrisca-se a que lhe chamem preconceituoso, por aparentemente se preocupar com quem vende muito; ou até elitista, quando se refere às elites culturais que dantes qualificavam uma obra, ou quando fala em «indispensáveis elites de leitores» (p. 39), capazes de apoiarem os autores marginais, essa «multidão que de norte a sul se espelha em livros, revistas e jornais, pelo prazer, que é pulsão, de escrever e publicar, recebendo, quando recebe, os três tostões de mel coado da praxe» (pp.145-146). É neles que deposita a esperança de renovação da literatura e por isso lhes presta comovente homenagem, em Autor, eterno amador.

Elitista, Arsénio Mota? O que o preocupa verdadeiramente, em todo o livro, são as consequências nefastas, para a literatura, de um certo credo populista e igualitário que por aí campeia e dá lustro à mediocridade reinante. É no que tem dado o preconceito contra as elites: uma visível e notória incapacidade de produzir a excelência.

Na sua cruzada cívica contra o desgaste acentuado dos humanismos (o homem-massa, segundo Ortega Y Gasset, é a antítese do humanista culto) o autor vê nesta sociedade, em que o jogo e o espectáculo são hipervalorizados, um momento de crise e não de solidificação da cultura. Uma sociedade onde a concepção de vida é norteada pelo êxito fulgurante e pelo mito da eterna juventude, e em que a prática quotidiana dos media consiste em colorir, artificialmente, os fenómenos culturais com um valor emocional, só pode estar a gerar, no seu ventre, o fermento da mudança. Do que se trata, então, é de congeminar saídas e enfrentar a crise, orientando-a num sentido não alienante e embrutecedor.

Como lidar então com os media? Como utilizá-los? Em proveito de quê e de quem?  Arsénio Mota parece  defender que eles devem estar em sintonia com a importância real dos acontecimentos, das ideias e produtos culturais, em vez de se preocuparem com o critério do maior número. A partir do momento em que qualquer ideia ou conhecimento são importantes eles devem ser acessíveis, para lá de qualquer lógica de mercado. Fazer isto é sobretudo uma questão de vontade, não de possibilidade.

Letras sob Protesto é a denúncia da simplificação acelerada da literatura e das leituras massificadas. Ergue-se contra a homogeneização dos gostos, a submissão do acto criativo a cálculos de rentabilidade imediata. Só uma nova cultura crítica – como nos propõe Arsénio Mota, fazendo uso dessa antiga arma de precisão que é a lucidez – poderá salvar a instituição literária da teia de enredos em que se deixou aprisionar.

O livro faz o que pode para que a atitude crítica não adormeça, pois o autor sabe que tal adormecimento é estrume do melhor para os totalitarismos que sempre espreitam. Confiar no darwinismo cultural quando se fala em literatura – e sobretudo quando o mercado impera – é um tanto arriscado: uma obra literária não vinga e resiste apenas porque tem qualidade. Não basta aos autores anónimos que se acantonem num qualquer espaço autónomo, onde confluem os que não aceitam ou não querem entrar nas regra do jogo que o mercado lhes dita. É preciso criticar, em vez de ignorar. Com a consciência que não será fácil criar condições para que o «público em geral» aceda, de ânimo leve, aos chamados produtos culturais de qualidade.

O que aqui se deixa são apenas algumas iguarias do prato suculento que em boa hora Arsénio Mota nos serviu. O leitor pode e deve digeri-lo até ao fim, sem risco de empanturrar, como quem se delicia com o que não lhe é dado saborear todos os dias. Sim, porque a literatura – tal como dizia Natália Correia da poesia – também é para comer. Ou não vagueassem por aí os subalimentados do sonho e do espírito, padecimentos de que todos, em maior ou menor grau, sofremos um pouco.