Luiz Regala/Pedro Zargo: excurso biográfico de um poeta com qualidades*

Luiz Regala (foto Henrique Ramos)Luiz Carlos Regala de Figueiredo nasceu em Espinho, a 11 de Agosto de 1905, no primeiro andar de uma casa da então Rua do Passeio Alegre, hoje Rua 62, com o n.º 30 de polícia. Era, diz-nos o poeta, “uma rua longa, estreita, coleante como uma cobra – propícia ao jeito e pessoais conveniências das construções urbanas, que cortava a Vila longitudinalmente: a única rua torta desta agreste Praia”.[1]

Foi precisamente nessa praia, quando um dia sentado na areia contemplava o mar – que bem cedo as musas o visitaram. Tinha nove anos quando escreveu o primeiro poema, deixando-nos mais tarde em verso essas impressões iniciais do seu lirismo magoado: Menino ainda, estranha voz inquieta /Rasgou em mim abismos e universos, /E, sem saber o que era ser poeta, /Encontrei-me a chorar… e a fazer versos!

Completou os “estudos gerais” no Liceu de Aveiro e entre 1926-1931, período que coincide com o desmoronamento da I República e com o início da Ditadura Militar que antecede o Estado Novo, Luiz Regala frequenta o Curso Jurídico na Universidade de Coimbra. Nos anos vinte do século passado, a influência que a Universidade teve na geração a que pertenceu Luiz Regala não seria muito diferente da que exerceu na geração de Eça de Queiroz. Seria idêntica a forma de “comprimir, escurecer as almas (…) uma madrasta amarga, carrancuda, rabugenta, de quem todo o espírito digno se desejava libertar, rapidamente, desde que lhe tivesse arrancado pela astúcia, pela empenhoca, pela sujeição à “sebenta”, esse grau que o Estado, seu cúmplice, tornava a chave das carreiras”.[2]A douta Academia, sempre pronta a catar o piolho metafísico nas dobras da ciência, era cada vez mais contestada pelas novas gerações.

O canudo não o entusiasmaria muito: apesar de, na altura, ser passaporte seguro para um emprego, chama-lhe “malograda e malfadada formatura”. Apesar dos dotes de oratória que os seus pares lhe reconhecem, não é o trabalho silencioso no escritório de advogado ou a barra dos tribunais que motivam o poeta. Chega a confessar a um amigo: “esta vida de processos enferruja-me a língua e embota-me, desgraçadamente, a sensibilidade (…). Não imaginas a repugnância que tenho pela engrenagem dos tribunais!… Se pudesse ver-me livre disto tudo (…). Asfixio, amigo, nesta irrespirável atmosfera de conveniências e de jogos malabares do espírito, os mais atrozes, os mais torturantes, os mais repelentes para quem teve, como eu (por que não dizê-lo) uma formação moral e cultural feita de honestidade, feita de honradez e, sobretudo, de autêntica e saudável clerezia.”[3]  A burocracia e o cinzentismo da profissão chocavam abertamente com os códigos morais de quem colocava o ideal da beleza e do amor, e a sede de infinito, acima de todas as outras coisas terrenas.

Luiz Regala tem colaboração dispersa por várias publicações: O Vigilante; Voz Académica; O Primeiro de Janeiro; Seara Nova; O Diabo; Litoral e suplemento cultural CompanhaCorreio do Vouga e suplemento cultural Serão de Letras e Artes; revista Panorama; Diário de Notícias; Beira-MarAlmanaque Desportivo do Distrito de Aveiro; Revista Trimestral da Secção de Filatelia e Numismática do Clube dos Galitos; O Jornal de Estarreja.

Zargo

Apesar da consabida timidez, nunca deixou de emprestar o melhor do seu talento e da sua disponibilidade cívica às instituições e agremiações da cidade: aos Bombeiros, à Banda Amizade – da qual era sócio honorário – à Santa Casa da Misericórdia – onde foi Mesário – e ao Clube dos Galitos. A ele pertence a autoria do libreto da revista Molho de Escabeche, peça teatral que o grupo cénico deste prestigiado Clube apresentou com assinalável êxito em Lisboa (Coliseu dos Recreios, em Janeiro de 1941) e no Porto. O Clube dos Galitos concedeu-lhe, em 4 de Dezembro de 1961, o diploma de Sócio de Mérito do Grupo Cénico “pela exemplar dedicação clubista, alto espírito de benemerência e reais merecimentos artísticos, notavelmente afirmados há já 25 anos e agora de novo evidenciados através da excepcional colaboração prestada à revista “Ainda Canta o Galo”.

Cântico de AmorEm 1945 O Primeiro de Janeiro anuncia estar para breve a publicação do seu primeiro livro de poemas, cujo título era O Teu Livro. Há outros títulos, nunca publicados, que Luiz Regala ia anunciando: Pequenos Poemas Infinitos, Poemas Frustrados, Noite Imensa, Poemas LusíadasRio Negro, Corpo Inteiro, Canto Renovado e Chão em Fogo. Em vida publicou apenas Cântico de Amor, corria o ano de 1960.

Em 1948 continuava a dedicar-se aos poemas, embora sem publicar. Tinha receio que a maior parte deles pudesse fazer mal aos homens. Coisas “amargas demais, embora revelem um sentido profundo de humanidade”. E anunciava ter em mãos 27 estrofes – tipo camoniano – de Chão em Fogo, poema que haveria de permanecer para sempre inacabado e onde pretende valorizar o Homem nas suas “Chagas, gangrenas, lepras, podridões…/ Cantadas só por mim, que sou cantor/ De tais terrenas, míseras canções…”[4]

Assinou os primeiros poemas na imprensa como Luís-Carlos. Mas um dia, ao familiarizar-se com a poesia brasileira, descobriu um poeta com o mesmo nome.  O desconforto leva-o a procurar um pseudónimo para as suas criações poéticas, que fosse ao mesmo tempo libertador e encobridor. E assim nasceu, embora tardiamente, Pedro Zargo:

Pedro Zargo é o meu nome verdadeiro,
O do baptismo lírico das fontes
Na sagração das águas que se perdem
Na vertigem das pedras e dos montes.

A explicação para o pseudónimo é-nos dada numa entrevista a José de Melo, em 1959: “Pedro Zargo diz bem com a amargura brutal e dilacerante, a amargura ácida de parte da minha obra, sobretudo na última fase, nestes últimos dez anos. Gostei sempre do nome de Pedro; bem quereria que tivesse sido o do meu baptismo. Pedro é a pedra rude, mas viva, das construções milenárias que desafiam a eternidade do tempo. Sobre Pedro – a pedra – construiu Cristo a sua igreja”. Já quanto a Zargo, trata-se de uma evidente homenagem ao grande vate dos Lusíadas: “Camões é poeta, e foi zarolho (…). Zargo significa zarolho. Ficarei assim com alguma coisa do imortal poeta”[5]:

Ah, destino maldito!
Ah, fado amargo!
Ah, desdita! Ah, terrível vida minha!
Ah, Camões incarnado em Pedro Zargo.

Além do vocábulo “pedra”, há outros que no poeta são essenciais. É a eles que recorre, e é também com eles que procura restituir uma certa condição original para desbravar os caminhos do desnudamento e da raiz das coisas e que por isso integram o seu thesaurus poético: “lama”, “lodo”, “charco”, “estrume”, “esterco”, “grito” e “dor”, para citar apenas os mais expressivos. Elementos que participam da pira dos sentimentos em que o poeta se consome, mas que conduzem ao enriquecimento verbal do seu canto, porque lhe dominam os códigos e as subversões:

“Cantava porque o Canto era consigo
Desde a primeira lágrima no olhar!
Cantar era o seu Fado e o seu Castigo,
– Cantava por destino de cantar!”

Em Junho de 1965 abandona Aveiro e refugia-se na sua Toca. É um refúgio de meditação em que se alheia praticamente de tudo o que diz respeito à vida social e profissional. O poeta sensível que é Pedro Zargo vive agora enrodilhado em silêncio e couraçado dum mundo que o agride e o consome. Enquanto absorvia voluntariamente essas golfadas de solidão, confessava: “Este período de exílio tem sido demasiado fecundo para mim. Tem-me feito bem, apesar de todas as contrariedades inerentes. Passei a meditar com mais serenidade e profundeza sobre os vários problemas da vida e do homem, quiçá da vida do homem. Desci também ao fundo de meu poço, ao fundo de mim, com amor e com ódio – ódio fecundante e amor compreensivo e humano. Analisei-me talvez melhor, analisando os outros talvez também melhormente”.[6]

O soneto “Diz-me, Cidade Linda” é uma das várias homenagens que presta a Aveiro, misto de Mar e Frágua que transfigura num corpo gentil de mulher, cuja beleza não é mais do que a própria beleza feminina da Cidade, sua Amada, sua Menina e Moça. E “o líquido alvoroço, que agita a rede dos seus nervos”, é “a agitada água dos canais que percorrem e cortam em vários sentidos o próprio corpo da Cidade.”[7]

Pedro Zargo legou-nos um trabalho de relojoaria poética assinalável. Poeta de paixões e arrebatamentos, do desassossego interior, do sofrimento, da noite escura e da noite imensa, do conflito e das dimensões mais profundas da vida, da melancolia que sobrava das armadilhas do amor. Da exaltação e da angústia destilada em vários amores idealizados e sofridos. Também da hospitalidade e do acolhimento dos outros. Homem de fé e profundamente religioso, mas tocado e dilacerado pela incerteza que é própria dos homens de carne e osso, pois só os deuses se ofendem com a dúvida.

Caricatura Luiz Regala (A. Torres)
Luiz Regala caricaturado por Amilcar Torres (1957)

O momento de júbilo é aquele em que o poema acontece, porque de algum modo pacifica o que antes era caos interior e inquietação. Um ser profundamente lírico, que se comove com a paleta de cores variegadas da mãe-natureza, com um voo de ave, uma flor a desabrochar, um repuxo de água, com o marulhar das águas revoltas do mar ou quase paradas dum regato manso. Observador atento e sensível de tudo o que o rodeia, assentam-lhe bem estas palavras de Eugénio de Andrade: “Colhe todo o oiro do dia/ na haste mais alta da melancolia”.

Os anos foram passando e o grosso da obra continuava praticamente inédita. Até que um dia o poeta adoeceu e se fechou em casa: nunca mais procurou ninguém, poucos o terão visitado. Contava 80 anos de idade quando, a 4 de Abril de 1986, a morte o apartou do nosso convívio, perante a indiferença quase geral dos aveirenses seus contemporâneos. Cercada de silêncio, a memória de Pedro Zargo passou a estar ausente dos azimutes culturais da cidade salgada. É certo que Aveiro tem uma rua com o seu nome. E que algumas iniciativas procuraram honrar-lhe a memória, nomeadamente as que então foram promovidas pelo Teatro Independente de Aveiro. Mas nada disso impediu que com o arrastar dos anos uma hera de silêncio se enroscasse dolorosamente em torno do seu nome.

O apagamento da memória de um vulto desta grandeza na vida cultural aveirense não representa apenas um esquecimento aviltante. É também, para aqueles que o conheceram ou de perto privaram com o “amigo noctívago” – como de forma comovedora lhe chamou Vasco Branco no Roteiro Impopular de uma Cidade – uma faca de saudade atravessada na garganta.

Pedro Zargo nunca calou o seu Canto e sempre alimentou a esperança de que os amigos, um dia, fizessem incidir nele os holofotes da publicidade: “Nas tuas frágeis mãos deixo o meu Canto;/ É o meu grito de Amor!… que alguém o acoite!” Só uma pequena parte da sua obra poética é do conhecimento público. É imperioso trazer à luz do dia o muito que ainda permanece na sombra. Apreciar o essencial da sua obra poética será a melhor forma de o homenagear. Começa aí o verdadeiro reconhecimento que a cidade lhe deve.

Como pedia Amadeu de Sousa: /Que a foice atroz/ Não cale a voz/ Na sepultura. Ou, como dizia o próprio Pedro Zargo:

/Todo o mal seja esse!
E que a voz se não cale…
O que importa é que a carne, mesmo depois de morta,
proteste, acuse e fale.

Na verdade, se a finitude do corpo é uma certeza, o que se escreve permanece e ajuda a perpetuar um pensamento. É urgente recuperar o seu canto familiar, a magia que se desprende da osmose entre o poeta e a cidade que deveras amou.

Estamos em crer que a obra poética de Pedro Zargo, que laboriosamente construiu e lapidou e por isso ecoa inteira na força do seu grito – mas que por razões imponderáveis não foi possível dar a conhecer aos seus contemporâneos – se há-de converter, uma vez conhecida de todos, em obra intemporal, apreciada pelos leitores de hoje e de amanhã. Será ao nível dos novos leitores que a sua poesia, escrita ao longo de dezenas de anos, se pode reerguer, reanimar e reviver. Fazer isso é devolver ao poeta a parcela de eternidade a que tem direito e a que de algum modo todos os artistas aspiram.

É dos livros: na morte, como na vida, os poetas arranjam sempre maneira de se salvar.

* (Texto publicado em  Folhas – Letras & Outros Ofícios. Revista do Grupo Poético de Aveiro, n.º 16, 2018, pp. 195-201).


[1]Documento existente no espólio de Luís Regala.

[2]Eça de Queiroz, Notas Contemporâneas, Edição Livros do Brasil, s.d., pp. 257-58.

[3]Carta de Luiz Regala, 23.10.1935 [destinatário desconhecido].

[4]Carta a José Marmelo e Silva, 16.06.1948.

[5]José de Melo, “Encontro com Pedro Zargo”, Diário Ilustrado, 05.09.1959, pp. 1 e 4.

[6]Carta de Luiz Regala a Manuel Granjeia, 19.11.1965.

[7]Carta de Luiz Regala a João Lé, 14.07.1980.