Manuel Resende (1948-2020)

Manuel Resende (1948-2020)

“Mas esta dor no peito, a falta de ar, / Esta barba há três dias por fazer /
Já ´stão à minha espreita ao despertar.”

Manuel Resende

 

Emudeceu a lira insubmissa e desalinhada, no derradeiro solo. Era amigo do meu amigo Arsénio Mota, fraternidade forjada há muitos anos na redacção do Jornal de Notícias. Homem discreto e reservado, apenas se expandia nos versos. O poeta raro e bissexto (publicou apenas três livros) finou-se hoje, pela manhã.

Poesia ReunidaCom formação em Engenharia, nunca quis ser doutor em demolições ou construções. Preferiu fazer versos e traduzir Kaváfis, Seféris e outros. Foi a partir da apresentação do primeiro destes poetas gregos que conheci – tão tardiamente! – Manuel Resende. Depois saltei para a Poesia Reunida, que fui lendo e continuo a ler com redobrado prazer.

Manuel Resende, autógrafoEm Maio de 2019 pedi-lhe amizade no Facebook. E disse-lhe que foi ao manifestar ao nosso comum amigo o apreço pela sua obra poética que fiquei a saber da amizade real que os unia. Resposta dele: “muito prazer e muito obrigado… e um grande abraço ao Arsénio!”

Agora que as Parcas o levaram, resta a poesia que nos legou e um autógrafo aposto num dos livros que atestam a sua presença aqui por casa. Não posso estar mais de acordo quando diz que a poesia é muito rara para ser desperdiçada com porcarias. Que a sua poesia seja eterna, meu querido poeta do tempo, da liberdade e do amor.

Também o que é Eterno

Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.

Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!

A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta…
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.

Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.

Manuel Resende, in ‘O Mundo Clamoroso, Ainda’