Memória de Idalécio Cação — adeus ao Amigo, não à Gândara

Idalécio 3

A notícia que nunca gostaria de receber chegou rente ao final do ano, a 28 de Dezembro: o Idalécio tinha-nos deixado, quase sem avisar. Se a morte de um amigo é sempre uma mágoa, saibamos ao menos celebrar aquilo que connosco partilhou, para lá da inteira amizade: a obra literária, onde ressuma em cada página a Gândara que o viu nascer. O que resta é agarrarmo-nos às frágeis palavras. São elas a ressurreição possível de tudo quanto nos legou.

Idalécio Cação nasceu em 1933 em Lafrana, freguesia de Alhadas, concelho da Figueira da Foz. Descendente de gente de humilde, habituada ao trabalho árduo nas terras de pão, aos 21 anos passou a residir nos arredores de Aveiro, no pacato lugar da Póvoa do Paço, em Cacia. Desde novo se apaixonou pela literatura, inspirado, talvez, na pequena mas valiosa biblioteca do avô materno, carteiro de profissão. Nos anos 60 aparece ligado ao CETA – Círculo Experimental de Teatro de Aveiro.

São de 1961 as suas primícias literárias, com o livro de poemas Nas Fronteiras do Tédio. Dois anos depois, publica novo livro de poesia, As Evidências e o Prisma. Na recensão a esta obra, o então jovem Vasco Graça Moura mostra saber já distinguir a tarefa crítica da reverência provinciana: atribui ao autor “razoáveis qualidades” mas não deixa de dizer que o livro, de “inspiração acentuadamente neo-realista, não traz nada de novo ao panorama da actual poesia portuguesa”.[1] Embora abespinhado com a crítica, Idalécio Cação acabou por recebê-la com a elegância que sempre o caracterizou: “é nas críticas contrárias mas elucidativas que o poeta irrealizado que ainda sou se penitencia e tenta redimir dos seus pecados líricos”.[2]

Vinte e dois anos depois, numa entrevista concedida ao Jornal de Notícias, ao obter o segundo prémio no concurso de contos com “A outra margem do sonho”, o futuro grande escritor da Gândara assumiria essa sua menor inclinação para a poesia: “Na prosa estou muito mais à vontade, enquanto na poesia reina uma grande confusão. Há mais de uma centena de estilos diferentes. Na prosa consegue criar-se um estilo próprio, como eu já consegui criar o meu”.[3] Essa preferência pela prosa ficaria derramada em diversas publicações, sobretudo em páginas e suplementos literários de jornais como Diário Popular, Litoral, Libertação, Independência de Cantanhede, entre outros. Fundou e coordenou os suplementos literários Sal Gema, do Jornal do Oeste (Rio Maior) e Diálogo, do jornal Beira-Vouga (Albergaria-a-Velha). Manteve ligação estreita com a dinamização dos encontros da imprensa cultural durante o Estado Novo. Era sócio da Associação Portuguesa de Escritores, da extinta Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada (AJEB) e da Associação Cultural Sol XXI. Licenciado aos 44 anos em Filologia Românica, acabaria a leccionar na Universidade de Aveiro.Os_Sitios_nossos_conhecidos

Se na poesia não conseguiu tomar grande altura, a prosa viria a reconhecê-lo como “mestre das letras gandaresas”. Publicou Raízes na Areia (1968), Os Sítios Nossos Conhecidos (1990), Daqui Ouve-se o Mar (1991), O Chão e a Voz (1998), Glossário de Termos Gandareses (2002), Memória de João Garcia Bacelar (2005), Crónicas Gandaresas (2006) e Do Alto Destas Ameias (2008).

Carrego nos pedais da memória, em busca de remotíssimas lembranças. Recordo o prazer de assistir, em 24 de Outubro de 1990, à apresentação de Os Sítios Nossos Conhecidos e de ouvir as palavras que o Dr. Joaquim Correia então proferiu:

“Para quem tem acompanhado o labor literário de Idalécio, não é novidade dizer que a terra é o grande tema das suas narrativas de ficção. A terra ou talvez, se o preferirmos, a aldeia. Mas a aldeia a partir da sua própria experiência de filho dos areais gandareses, onde, como ele confessou ainda recentemente numa entrevista, aprendeu a fazer todos os trabalhos que dizem respeito ao amanho da terra e do pão. A nossa literatura é particularmente rica na temática ruralista. Mas o que é de salientar desde já é que nenhum dos escritores portugueses que abordaram esta temática partiram da experiência singular a que as circunstâncias da vida submeteram Idalécio Cação. É importante reproduzir o que ele dizia nessa entrevista: “eu sei o que custa um bocado de pão, que o trabalhei em todas as suas fases; quando como um prato de arroz, não esqueço que também o ajudei a amanhar nos campos do Mondego, onde o meu pai era seareiro duma courela de doze alqueires de semeadura”.

Esta experiência espelha-se na sua obra e por isso também a autenticidade do seu ruralismo, se nada tem a ver com o ruralismo idílico da tradição pastoril ou mesmo do romantismo de Júlio Dinis ou de Trindade Coelho, também não se limita a ser o ruralismo realista de Aquilino ou Torga, nem mesmo o do neo-realismo ideologicamente programado de Alves Redol ou de Manuel da Fonseca, ou de Fernando Namora, ou de outros. Como escreveu Mário Sacramento, mesmo os neo-realistas mais preocupados com a sorte do povo explorado não foram capazes de o exprimir por dentro, limitando-se a ser a “voz que ouve”, na paradigmática expressão de Políbio Gomes dos Santos, voz sem dúvida condoída, mas sem a experiência verdadeiramente vivida que era necessária para o exprimir por dentro.

É curioso como Idalécio Cação, já em Raízes na Areia, embora utilizando em todos os contos a voz da terceira pessoa, raramente dá a impressão de distanciamento em relação à acção e às personagens, de tal modo se faz a narração empática do narrador com elas, de tal modo a linguagem do narrador, sem perder em fulgor literário (pelo contrário, ganhando-o), se identifica com a das personagens, não só em termos vocabulares, mas até em particularismos sintáticos e em entoações peculiares, sendo assim a sua voz, não a do narrador distanciado do seu objecto mas sim a do aedo, que é a voz do próprio mundo a que dá forma narrativa”.Daqui_Ouve_se_o_mar

Após ler Os Sítios Nossos Conhecidos e Daqui Ouve-se o Mar também concluí estarmos em presença de um grande escritor da Gândara. Um homem de palavra e de palavras. Um homem ouro de lei, que sabia tudo sobre o amanho da terra, do semear e colher em tempo certo, do trato das videiras e da poda das árvores. Parafraseando Carlos de Oliveira em Pequenos Burgueses, apetece dizer, sem favor, que a obra de Idalécio Cação é “uma chuva de luz a encharcar a Gândara do céu à terra”.

 

(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 05.01.2017, p. 18).


[1] Independência Literária [suplemento cultural de Independência de Águeda], n.º 23, Agosto, 1963.

[2] Idem, n.º 24, Setembro, 1963.

[3] Jornal de Notícias, 10.06.1985.