Memória de José Tengarrinha (1932-2018): da história da imprensa periódica à morte anunciada do Diário de Notícias

história da imprensa periódica portuguesaAo historiador e professor José Manuel Tengarrinha devo quase tudo o que sei sobre história da imprensa periódica portuguesa: o conhecimento das primeiras folhas noticiosas manuscritas, que aparecem em Portugal durante o domínio filipino (1580-1640) e que apresentam um carácter essencialmente clandestino, por se afirmarem de forma declarada contra os invasores castelhanos); o aparecimento do primeiro jornal português digno desse nome: a Gazeta da Restauração, de 1641, “num tempo em que o grande veículo de propaganda política era a oratória sagrada, que tinha como figura de proa o Padre António Vieira”.[1] No dizer de Sampaio Bruno, pregador era a maneira antiga de ser jornalista, como jornalista é a maneira moderna de ser pregador.[2] O púlpito era o veículo privilegiado de informação da época, onde se proferiam discursos mobilizadores, ora numa perspectiva de revolta (contra Castela) ora de consolidação da mentalidade nacional

A Gazeta garantia e dava voz pública às lutas que viriam a desaguar na restauração da independência nacional. Mantinha vivo “o espírito de portuguesismo e animava-se o povo a redobrar os esforços pela Pátria livre e autónoma”.[3] Convém referir que a nacionalidade não ficou assegurada em 1640, foi-se consolidando entre essa data e 1668. O ambiente era de grande tensão e vigilância. Como não convinha que alguns segredos da nossa situação militar fossem tornados públicos – se isso acontecesse só iria beneficiar as hostes inimigas – a Gazeta continuou submetida às regras da censura prévia estabelecida por Filipe I e confirmada por D. João IV, ao dizer que “não se imprimiam livros sem a licença d’El-Rei”.[4]

Em matéria de imprensa periódica, também devemos a Tengarrinha o estudo dos mercúrios, publicações de manifesta influência francesa com alusão óbvia ao mensageiro dos deuses e onde se destaca o Mercúrio Português, que vê a luz do dia em 1663; a imprensa do período pombalino e os primeiros diários; a distinção entre panfletos, papéis volantes e pasquins, ainda hoje tão necessária quando vemos pessoas a chamar panfletos a simples folhetos informativos; o estudo dos regimes de censura; os primeiros periódicos liberais e os jornais portugueses da emigração; a imprensa ilegal durante a guerra civil (1846-1847) e a transição da imprensa romântica, ou de opinião, para a fase industrial da imprensa, que anuncia um jornalismo de tipo novo com o aparecimento do Diário de Notícias, fundado por Eduardo Coelho em 1865.

José Tengarrinha

Que novo jornalismo era este? Na imprensa romântica que o antecede, os jornais não se dirigiam a todo o público: eram jornais de facção, ou de partido, veiculavam uma ideologia muito precisa, tinham um escasso número de leitores – apenas aqueles que se identificavam com o combate político ou ideológico veiculado pelo jornal – e por isso morriam rapidamente. É contra este estado de coisas que se afirma o Diário de Notícias, considerado o primeiro jornal português de grande tiragem, essencialmente noticioso e sem filiação partidária. No seu número-programa pode ler-se: “… interessar a todas as classes, ser acessível a todas as bolsas, e compreensível a todas as inteligências (…). Eliminando o artigo de fundo, não discute política nem sustenta polémica. Regista com a possível verdade todos os acontecimentos, deixando ao leitor, quaisquer que sejam os seus princípios e opiniões, o comentá-los a seu sabor”.[5]

Se a “neutralidade” informativa e a actualidade são “a deusa a que o jornalismo tem de render culto”,[6] a objectividade pretendida pelo jornal, bem como a sua opção pelo noticiário geral (o crime, o acidente, o fait divers) estavam longe de satisfazer toda a gente. Ao querer agradar ao maior número de leitores, havia quem entendesse que o jornal transigia com o mau gosto e lisonjeava a mediocridade. Assim pensava Antero de Quental, o polemista do Bom Senso e Bom Gosto, para quem os jornalistas eram “bonzos”, os editores “bárbaros” e a opinião pública um “vulto escuro que interpõe a sua forna confusa entre a verdade e os homens”. Para lá do desprezo com que olhava para os jornalistas do seu tempo, Antero via na opinião pública um “monstro moderno” que se exprime através da imprensa, “sua boca”. Escrevia ele ao seu amigo Henrique das Neves, de Ponta Delgada: “Não lendo ninguém senão o que lhe agrada, o público nunca favorecerá senão o que estiver à sua altura e por isso o jornal para durar será sempre o espelho lisonjeiro do público e não o seu severo mestre”.[7]

José Tengarrinha2José Tengarrinha aparta-se do nosso convívio no preciso momento em que o Diário de Notícias vai manter a edição em papel apenas aos domingos. Nos restantes dias da semana teremos o jornal em formato digital, para ler, segundo nos dizem, como “informação consumida como uma rápida bica diária”.[8] Este Diário de Notícias impresso bem poderia chamar-se Semanário de Notícias. Quanto ao novo site que nos oferecem durante a semana, ele não deixa de ser o sintoma da “crise do jornalismo português [que] antecede esta passagem ao online de publicações falidas em papel”.[9]

Desaparecem assim, quase em simultâneo, a continuidade da catedral de papel começada a erguer em 1865 por Eduardo Coelho e o cidadão exemplar que a estudou e deu a conhecer. Mas José Tengarrinha foi muito mais do que isso: por amor à liberdade frequentou as trincheiras onde era possível lutar por ela: fundou em 1969 o Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral e marcou presença no Congresso da Oposição Democrática que se realizou em Aveiro, em 1973. Foi seis vezes detido pela polícia politica do Estado Novo, na luta permanente que travou contra a ditadura. Na altura da Revolução de Abril de 1974 estava detido no forte de Caxias. Nos anos 80 não hesita na escolha entre a política e a universidade, ao transferir o apetite da política para os livros. Falou mais alto o apelo à investigação e ao conhecimento, “o cuidado constante pela a memória histórica, cultivada com rigor crítico”.[10]

José Tengarrinha1Ao deixar-nos agora, José Tengarrinha legou-nos também importantes obras para a compreensão da história da imprensa periódica – um termómetro da nossa maneira de ser e da nossa sensibilidade – do Portugal oitocentista e da história contemporânea de Portugal. Ao optar, a dado passo da sua vida, pela cultura e não pela política, José Tengarrinha enriqueceu os outros sem se empobrecer: entrou num “processo virtuoso que enriquece, ao mesmo tempo, quem dá e quem recebe”.[11] É tudo isto, e isto não é tudo, que lhe devemos.


 

[1] José Tengarrinha, História da Imprensa Periódica Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1989, p. 38.

[2] Sampaio Bruno, Portuenses Ilustres, tomo II, p. 333.

[3] João Alves das Neves, “O primeiro jornal português: a ‘Gazeta’ (1641)”, Jornal de Notícias, 21.12.1991.

[4] José Tengarrinha, obra citada, p. 39.

[5] Idem, p. 215.

[6] Norberto Lopes, “Da objectividade da Informação”, Expresso, 05.07.1975, p. 10.

[7] Antero de Quental, Cartas (vol. II), Leitura, organização, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009. Também Mário Mesquita, “Contra a Imprensa”, Público (não foi possível identificar ano de data), alude a estas cartas.

[8] Ferreira Fernandes, “DN, um diário para os nossos dias”, 29.06.2018.

[9] José Pacheco Pereira, “Mais um marco a caminho da ignorância atrevida e do défice cívico”, Público, 30.06.2018, p. 60.

[10] Viriato Soromenho Marques, “José Manuel Tengarrinha (1932-2018): o Homem que amava a verdade e não sabia odiar”, Diário de Notícias, 30.06.2018.

[11] Nuccio Ordine, A Utilidade do Inútil, Kalandraka Editora, 2017, p. 15.