Nos quarenta anos do 25 de Abril de 1974

1. Os abalos do regime durante o Estado Novo

Não é possível contextualizar o fim do Estado Novo em Portugal sem falar dos movimentos e intervenções políticas, sociais e culturais que se lhe opuseram e o enfraqueceram. As eleições presidenciais de 1958, nas quais participou Humberto Delgado, representam um dos primeiros abalos sérios do regime. Se ganhasse, Salazar teria o destino marcado: “obviamente demito-o” – sentenciou o “general sem medo”. A recepção apoteótica que teve no Porto, cidade-símbolo de tantas lutas pela liberdade, significou um primeiro momento de viragem na arrancada democrática que viria a desaguar na revolução de 1974.

40 anos de Abril-60Na década de 60 as lutas académicas e associativas de 1962 (Lisboa) e 1969 (Coimbra) mostram que os estudantes tinham perdido o medo e o respeito pelos mitos do regime. A guerra de África ajudava a isolar uma ditadura que escapara à democratização europeia do pós-guerra e à sua dinâmica descolonizadora. O ano de 1961 não dá descanso a Salazar: em Goa surgem problemas com a União Indiana; os movimentos rebeldes africanos encetam acções de guerrilha e manobram no campo diplomático. A reacção de Salazar não se faz esperar: rapidamente e em força para as colónias. Assim se fez à guerra, com partida do cais de Alcântara, o primeiro contingente de tropas para Angola. Muitos não regressariam. Outros sim, só que alguns vinham diferentes.

O Movimento das Forças Armadas (MFA) foi um produto dessas circunstâncias. As suas origens históricas situam-se no teatro de guerra da Guiné-Bissau, onde a derrota militar estaria iminente nas vésperas da revolução. Foi nesse contexto militar específico que António de Spínola, ex-governador e comandante militar da Guiné entre 1969 e 1973, viria a formular as suas conclusões e a estabelecer os seus alicerces políticos.[1] Os militares seriam o motor da mudança, derrubando o regime de que tinham sido o principal esteio.

Quando Marcelo Caetano tomou posse como Presidente do Conselho em 1968, houve quem embarcasse na ilusão de que poderia democratizar o país. O problema é que nunca acreditou que a democracia pudesse vingar em Portugal. Justificava-se, entre outros argumentos, com o “temperamento latino” e com a crença – partilhada por Salazar – de que a democracia era um regime que se adaptava à natureza de certos povos mas não se adaptava a outros. É certo que falou em restaurar algumas liberdades, o que foi interpretado, erradamente, como intenção de restaurar a democracia. A liberdade que defendia era a liberdade possível, a qual não poderia colocar nunca em causa a ordem política e social estabelecida com a Constituição de 1933. E assim se criou uma imagem equívoca de herói perdedor: para uns, não teria tido coragem para enfrentar os conservadores do regime, ou seja,  para anular os ultras e prescindir de Américo Tomaz; para estes, não a teria tido para se aliar francamente “à esquerda” (leia-se ala liberal do próprio regime).[2]

A 14 de Janeiro de 1974, no próprio dia em que toma posse como vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Spínola informa Marcelo Caetano da sua intenção em publicar Portugal e o Futuro. Dito de outro modo: no preciso momento em que acaba por merecer um voto de confiança do governo, o nomeado atenta contra ele. Entre as teses do livro avulta a de que a guerra não podia continuar. Na verdade o livro de Spínola “declarava a falência da política africana”.[3] Marcelo Caetano não concordava. Acusava Spínola de ver o mundo pela “fresta” da Guiné.[4] Eis o dilema: como poderia um militar que não acreditava na vitória militar portuguesa em África ficar à frente das Forças Armadas? A partir daqui tudo se precipita.

Spínola e Costa Gomes (então CEMGFA e também crítico do regime) são exonerados dos cargos a 14 de Março. Tinham recusado participar numa cerimónia de vassalagem promovida pela “brigada do reumático” a Marcello Caetano. No dia 16 de Março dá-se o levantamento militar fracassado que ficou conhecido por golpe das Caldas. A 31 de Março o Presidente do Conselho recebia, sem o saber, a sua última grande ovação num estádio de futebol. Três dias antes, em mais uma Conversa em Família, justificaria a falta de liberdade de imprensa com a guerra. No mês seguinte acontecia o 25 de Abril.

2. 25 de Abril de 1974 – 25 de Novembro de 1975: o princípio e o fim da festa

Com a chamada “revolução dos cravos” assistimos ao fim tardio do império colonial português (outros países europeus descolonizaram bem mais cedo) e ao desabar de um regime político, o Estado Novo, que soube, governando em ditadura, consolidar-se nos anos 30, sobreviver à 2.ª guerra mundial, suportar uma guerra em várias frentes durante 13 anos e ter a arte de saber durar até 1974, paredes-meias com a Espanha franquista.

A adesão popular ao que começou por ser um golpe militar foi espontânea e no mínimo inesperada para os jovens revoltosos. Ao mesmo tempo que vitoriava os militares, a população funcionava como um escudo humano e dificultava qualquer veleidade de reacção pela força. Quando, no quartel do Carmo, Marcelo Caetano se rende a Salgueiro Maia, o país entra em enorme euforia. Libertam-se os presos políticos e do exílio regressam, entre outros, Mário Soares e Álvaro Cunhal. Fundam-se partidos políticos que se juntam ao Partido Comunista Português – já então com 53 anos de existência – e ao Partido Socialista, fundado em 1973 na Alemanha.

O 1.º de Maio em liberdade foi uma festa irrepetível. De unidade e esperança. De crença num futuro melhor para todos, como se tal maná estivesse ali à mão, pronto a ser servido na bandeja generosa dos novos senhores do poder. Redondo e ingénuo engano. Não tardaria muito que a revolução perdesse o norte, atolada em contradições e intolerâncias, numa altura em que os cravos ainda floriam e as utopias continuavam ao rubro.

2.1. O período revolucionário

Após a revolta militar do 25 de Abril o processo de consolidação da democracia portuguesa conheceu várias fases evolutivas. A primeira fase coincide com o processo revolucionário e situa-se entre o golpe militar propriamente dito e a promulgação da Constituição em 1976. Trata-se de um período de “conjuntura política fluida”, de “conjuntura crítica” ou de “incerteza estrutural”,[5] caracterizado por situações de excepção e de confrontação aberta entre novas gramáticas políticas pretensamente legitimadoras, cada uma delas procurando impor um conjunto coerente de significações.[6] Como lembra Hannah Arendt, todas as revoluções – qualquer que seja o sentido para que apontem – se decidem pela intervenção material e simbólica da violência.

Nesse tempo turbulento de fluxos e refluxos, deu-se a substituição de António de Spínola por Costa Gomes na Junta de Salvação Nacional e na Presidência da República após o golpe de 28 de Setembro de 1974. A mudança de protagonistas acelerou o processo de descolonização e procurou transformar radicalmente instituições políticas e estruturas sociais. Bem tentou Spínola estancar a torrente revolucionária em 11 de Março de 1975. O fracasso da iniciativa não se saldou apenas no exílio do mítico homem do monóculo e do pingalim. Acabou também por facilitar o reforço do papel do Estado e a nacionalização acelerada de importantes sectores da economia.

No Verão quente de 1975 – ou, para sermos mais precisos, entre 11 de Março e 25 de Novembro – Portugal atravessa um dos períodos mais conturbados da sua história recente. Tempos apaixonantes para uns, assustadores para outros. A unidade popular nascida de forma espontânea em 1974 estava estilhaçada. Não havia dia sem manifestações e comícios, bombas e barricadas, fogo ateado por ideologias e modelos de sociedade diferentes. Facções militares de sinal contrário agitavam os quartéis. Contavam-se espingardas. As greves paralisavam o país. As sedes dos partidos de esquerda foram assaltadas e saqueadas. Os chamados retornados das ex-colónias regressavam em massa, de mãos a abanar ou com os parcos haveres que tinham conseguido salvar. Alguns partidos políticos são ilegalizados. Começam as nacionalizações e a ocupação de grandes herdades no Ribatejo e no Alentejo. Dá-se o assalto à embaixada de Espanha, o cerco da Assembleia Constituinte e o sequestro dos deputados. As mocas de Rio Maior delimitavam simbolicamente o Norte mais conservador do Sul mais revolucionário. Um melting pot político verdadeiramente explosivo.

Em 25 de Novembro de 1975 a guerra civil esteve por um fio. O triunfo da corrente moderada do Movimento das Forças Armadas sobre os militares revolucionários – numa altura em que o processo de descolonização estava já concluído – acabou de vez com os sonhos românticos de revolução no extremo de uma Europa onde, com raras excepções, pontificavam as democracias. Portugal dava os primeiros passos na institucionalização de uma democracia parlamentar.[7] Para uns sobreveio a amargaura da revolução perdida. Para outros triunfou a democracia de tipo ocidental e foi reposta a pureza original do 25 de Abril, “o dia inicial inteiro e limpo” cantado por Sophia.

Uma segunda fase de evolução da democracia portuguesa é a que pode designar-se de transição constitucional, onde continua presente a tutela do MFA através do Conselho da Revolução. Compreende o período que medeia entre a promulgação da Constituição de 1976 e a sua revisão de 1982, que consagra a extinção desse mesmo órgão. Estamos a falar de um período de conflitos entre governos e Parlamento, que em termos partidários se pode caracterizar por uma “tensão entre forças mais defensoras da legitimidade eleitoral e forças mais propensas para a afirmação da legitimidade revolucionária”.[8]

Uma terceira fase da evolução do sistema democrático português tem como marcos fundamentais a revisão constitucional de 1982, a eleição do primeiro civil (Mário Soares) para a Presidência da República em 1986 e a obtenção de uma maioria absoluta por um só partido – o PSD – em 1987.  É o tempo da desmilitarização plena da vida política. Tempo também de instabilidade partidária e de crise económica, mas igualmente um tempo de mudança: em 1985 dá-se o acto de adesão de Portugal às Comunidades.

A partir de 1987, com a primeira maioria absoluta do Partido Social Democrata de Cavaco Silva e o afluxo dos fundos comunitários, inicia-se uma nova fase de estabilidade política, crescimento económico e incremento de várias reformas. Em 1995 o Partido Socialista fica no limiar da maioria absoluta e  quatro anos depois obtém metade dos lugares no Parlamento. Consolidava-se a estabilidade governativa. Mas a par das transformações ocorridas muitas outras dificuldades e constrangimentos permanecem.

3. Factores de perturbação na sociedade portuguesa contemporânea

O nosso país conheceu nestes últimos 40 anos significativos processos de mudança. E no meio de tantas convulsões e dificuldades também mostrou alguns méritos, como sublinha Nancy Bermeo: “A habilidade com que Portugal soube responder aos desafios simultâneos da descolonização e da democratização constitui, sem dúvida, um dos factos políticos mais destacados entre os Estados europeus da segunda metade do século XX”.[9]

Hoje em dia é a própria organização da sociedade que está em causa, bem como os seus fundamentos e valores. Basta citar as alterações demográficas e o alargamento da esperança média de vida, a persistência do desemprego (de curta e longa duração), o crescimento exponencial de gastos com a saúde, o alastrar de novas formas de pobreza e exclusão social, o flagelo da toxicodependência e da sida, ou os problemas associados à criminalidade e à insegurança. Tudo isso representa uma enorme pressão sobre o volume dos gastos a suportar pelo Estado.

Assistimos a mutações tecnológicas constantes. Temos sistemas financeiros extremamente voláteis, mercados hipercompetitivos e redes empresariais globais; enfraquecimento dos laços familiares; emergência de novos grupos de pressão (ambientalistas, consumidores) com os quais o poder político é obrigado a negociar e a estabelecer consensos. Enfrentamos, por assim dizer, uma mudança de paradigma, se tivermos em conta a existência de uma nova dinâmica na relação da economia com a sociedade. A incerteza e o medo em relação ao futuro são uma verdadeira espada de Dâmocles a rodopiar sobre a cabeça dos portugueses. Os sentimentos crescentes de insegurança concorrem para a descredibilização do sistema político e das respostas que este consegue dar. Quanto mais for capaz de minimizar os riscos e garantir a segurança dos cidadãos, mais fiável e credível será o Estado.

Há hoje uma lógica de crescimento económico que parece dissociar-se do desenvolvimento social. Os excluídos não são vítimas por estarem inseridos no mercado de trabalho, mas fora dele. São os «normais inúteis» de que falava Donzelet: ou porque são puramente excedentários face às necessidades do mercado, ou tão só porque os seus níveis de qualificação não estão em sintonia com os interesses e a lógica desse mesmo mercado. São o resultado de uma política de liberalização do mercado e de maximização dos lucros, que se coloca à margem dos problemas sociais daí resultantes.

A desregulação da esfera salarial e as fragilidades daí decorrentes, ao não encontrarem respostas adequadas no modelo clássico do Estado-Providência, abalaram também os mecanismos de funcionamento do sistema político democrático. A instância do político perdeu a capacidade que detinha para arbitrar os conflitos entre a esfera económica e a social, porque cada vez mais se subordina aos interesses económicos e cada vez menos responde com eficácia aos novos problemas sociais emergentes. Tudo isto acontece num tempo em que a ideologia do mercado incutiu um conceito de felicidade baseada no consumo. Quem não tem dinheiro não pode consumir, e quem não pode consumir não é feliz…

É pois cada vez mais na resolução da aporia exclusão/inclusão que assenta a credibilidade do sistema político de representação. E essa inserção passa por conferir crescente centralidade ao sujeito, enquanto ser individual e não enquanto homem-massa – para utilizar uma expressão de Ortega Y Gasset – subsumido na esfera social. A quem governa pede-se que seja capaz de assumir a convicção de que «a equidade social tem primazia ética sobre a eficiência económica».[10]

Em matéria de cidadania, a participação e o escrutínio dos cidadãos nas escolhas políticas – dentro e fora dos partidos – ainda deixa muito a desejar.  As pessoas não se sentem representadas. Desconfiam cada vez mais da capacidade das organizações partidárias, dos sindicatos e das instituições para resolver os seus problemas. É sabido que sem partidos políticos não há democracia. Mas esta só melhora quando os mais preparados da sociedade são capazes de abandonar a sua zona de conforto e participar civicamente.

A crise severa que estamos a atravessar, com a desvalorização da cultura e a erosão dos valores, com o desemprego a atingir níveis alarmantes, com escândalos públicos e privados a crescer como cogumelos, ou até com uma austeridade desigualmente repartida, são sintomas de um mal estar profundo em tudo semelhante à crise da democracia liberal que viria a desembocar nos anos 20 do século passado nos diferentes autoritarismos e fascismos europeus.

Por isso há de novo um clamor geral de descontentamento. Não foram certamente estas as portas da esperança que Abril abriu. Sejamos capazes de acreditar que para salvar o país não é preciso destruir parte dele. E que só a qualidade da democracia, que é um que fazer constante e por isso sempre inacabado, permite valorizar o presente e interiorizar uma ideia de futuro não apenas como progresso mas também como possibilidade de catástrofe. A democracia não é o fim da história. Pode desabar a qualquer momento. Seguir um ou outro caminho depende dos actores políticos. São eles que definem as estratégias que podem conduzir à estabilidade da democracia ou a novas formas de autoritarismo.

Muitos sonhos e ilusões de Abril tombaram como andorinhas na lama. Nem sempre colhemos os desejados frutos maduros. Sabemos disso, às vezes de forma bem amarga. Resta-nos protestar contra o que nos agride e nos consome e manter os desafios sempre acesos. Na certeza de que as novas formas de protesto não passam já por revoluções armadas, mesmo que só de cravos a florir na ponta das espingardas ou de conversas cordatas. Do que andamos verdadeiramente carecidos – é o que pensa o embaixador e escritor alemão Stéphane Hessel – é de “uma verdadeira insurreição pacífica”.

(Texto inserido em 40 Anos de Abril – Memórias de Oliveira do Bairro, Edição do Município de Oliveira do Bairro, Abril de 2015, pp. 11-17).


[1] Philippe C. Schmitter, Portugal: do Autoritarismo à Democracia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1999, pp. 188-189

[2] Vasco Pulido Valente, Portugal. Ensaios de História e de Política. Lisboa, Alêtheia Editores, 2009, pp. 223 e 235.

[3] Idem, p. 265.

[4] Idem, p. 261.

[5] Michel Dobry, Sociologie des Crises Politiques, Paris, Presses de la Fundation Nationale des Sciences Politiques, 1992, pp. 40 e 150.

[6] Idem, p. 150 e seguintes. Ver também Maria Madalena Guibentif Matos, La démocracie au Portugal. Analyse du débat politique entre 1974 et 1976. Dissertação de doutoramento [dactilografada], Biblioteca do ISCTE, 1991, p. 34.

[7] Manuel Braga da Cruz, “A evolução da Democracia Portuguesa”, in Portugal Contemporâneo, AA.VV., António Costa Pinto (coord.), Edições Sequitur, Madrid, 2000, p. 122.

[8] Idem, p. 123.

[9] Nancy Bermeo, “Lições da experiência portuguesa. Algumas conclusões provisórias a propósito de um longo processo”, in Portugal Contemporâneo, obra citada, p. 309.

[10] Manuel Villaverde Cabral, «Governar à Esquerda (III)», Diário de Notícias, 06.02.98.