O Balouço de Fragonard, num poema de Jorge de Sena

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Fragonard, O baloiço, 1767

Analisemos a pintura, para depois falar do poema. O que vemos? Uma jovem que cruza os ares, sentada num baloiço, cena que corresponde à parte iluminada do quadro. Um sapato que se desprende do pé e que voa. Um homem mais velho, à direita (o marido?) que a empurra. Um jovem, à esquerda, protegido por um arbusto, que a contempla. O cenário completa-se com uma vegetação abundante, duas estátuas e um muro. O quadro mostra-nos como a pintura, estática por natureza, é capaz de nos transmitir a ideia de movimento. Através dele, o pintor dá-nos a ver o espírito libertino da aristocracia parisiense da segunda metade do século XVIII. Uma pintura narrativa, que assim convida à efabulação. Veremos, já a seguir, como esta pintura despertou em Jorge de Sena a imaginação do voyeur.

Este poema de Jorge de Sena mostra a rara beleza do diálogo íntimo que ele estabelece com o quadro de Fragonard. Aqui, é o sujeito poético que se fixa na figura feminina, acompanhando o movimento pendular do próprio baloiço para descrever a forma sensual como ela baloiça e se descontrai para separar as pernas. Neste belíssimo poema até a Natureza se antropomorfiza e humaniza. Basta citar os versos: “entre arvoredo que tremula”, “Que estátuas e que muros se balouçam”, ou até “do palpitar de entranhas na folhagem”. O poema projecta desejos e sentimentos tipicamente humanos naquilo que no quadro pertence ao domínio do inanimado.

Por outro lado, o poema explicita o erotismo que na pintura apenas se insinua. Assim acontece no jogo (prazenteiro) de esconder e mostrar. A efabulação prolonga, no poema, o jogo erótico mais ou menos subliminar que podemos entrever nesta pintura. Estamos, claro está, a falar de uma interpretação pessoal do quadro de Fragonard. Pessoal, mas magistral na forma como consegue o casamento feliz entre o poema e a pintura que o precede. Mais do que descrever o quadro, o poema recria-o, especula para além do que ele dá a ver. Podemos aqui falar de pintura enquanto poesia muda e de poesia enquanto pintura que fala. Jorge de Sena apropria-se das figuras representadas no quadro e transfigura-as, faz delas personagens de um enredo. O poema amplifica o tema do quadro, que assim extravasa das próprias molduras.

(Consultas: Jorge Fazenda Lourenço, A Poesia de Jorge de Sena. Testemunho, Metamorfose, Peregrinação; Alexandre Dias Pinto, “Movimento Pendular: o Balouço de Fragonard, de Jorge de Sena”).


Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!

Assis, 8/4/1961

Jorge de Sena, Antologia Poética