Padre Melícias: português, franciscano, oitenta anos de idade

Melícias 1Ando, há quase duas semanas, a evitar escrever sobre o padre Melícias. Há razões para isso. Tenho por aqui publicado, nos últimos tempos, alguns textos de cariz religioso. Admito o exagero e até ter carregado em demasia na água benta, ao ponto de uma amiga do Facebook me ter questionado, com inteira pertinência:

– “Desculpe, é padre?”

Ora, eu que nunca frequentei o seminário – embora seja possível ter sido seminarista, como Salazar, e nunca ter chegado a padre católico – decido agora avançar. Só que, ao afinar este novo texto pelo diapasão dos anteriores, corro o sério risco de aparecer outra vez por aí alguém a perguntar se não serei bispo, ou até cardeal. Que os deuses me protejam (desculpem-me a diatribe politeísta, os que acreditam sinceramente no Deus único).

Vítor Melícias foi, em tempos, confessor de António Guterres e de Marcelo Rebelo de Sousa. Vale a pena lembrar, já agora, que foi Guterres quem o nomeou Alto-Representante do Estado Português para Timor-Leste. Mais propenso a misturar do que a separar o que é de César e o que é de Deus – cargos na Igreja e fora dela – conhece, como poucos, os meandros do poder político, económico e social. Os picos de notoriedade aparecem nas décadas de 80 e 90, quando é convidado para cargos de grande relevo em organizações tão distintas como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a União das Misericórdias Portuguesas, o Banco Português de Gestão, a Liga dos Bombeiros Portugueses, o Montepio Geral ou a União das Mutualidades, para só citar algumas. Eis um padre franciscano com apetite voraz para gerir bancos e queda irrefreável para os negócios.

Foi em finais da década de 80, ou início dos anos 90, que conheci ao vivo o padre Melícias, num encontro qualquer, talvez a celebração do Dia da Segurança Social, que acontece a 8 de Maio. Deu para ver como domina o conceito aristotélico de pathos: a capacidade para quebrar o gelo inicial, o recurso a uma retórica centrada no estado emocional do auditório. Ainda hoje recordo os frémitos de emoção que se apoderavam de quase todos os presentes, mal começava a arengar. Aquela mole humana erguia-se de um pulo e rebentava em estridentes aplausos. Eu permanecia sentado, pouco atreito  a idolatrias fáceis ou a enfileirar nos rebanhos mansos de ilusórias unanimidades. Via naquela encenação uma verdadeira floresta de enganos.

Comigo me desavim. Por isso me interrogava se toda aquela gente, ao levantar-se de forma tão sincronizada, não estaria a ser espetada por uma qualquer sovela da solidariedade que o padre Melícias tão generosamente distribuía. E porque não me levantava eu? Na altura, torturado pelo remorso de me sentir ovelha tresmalhada, para a qual todos olhavam de soslaio, só conseguia aventar duas hipóteses: ou era uma cachola oca, desprovida das sinapses que permitem alcançar o entendimento do risonho franciscano; ou então tinha, na altura, as nádegas suficientemente duras para resistir às metafóricas picadas da sovela no cú. Aquela alegria breve, toda aquela preocupação com os mais carenciados, representavam para mim um verdadeiro murro no estômago, quando lhes contrapunha o mundo cinzento e as existências viúvas de alegrias que tão bem conhecia.

Onde está Wally? Vitor Malícias entre os bonecos do Contra-Informação
Onde está Wally? (Vitor “Malícias” entre os bonecos do Contra-Informação)

Hoje, reconheço: ainda bem que não me deixei inebriar com as cintilantes gotas argumentativas distribuídas pelo padre Melícias, talvez por saber que a arte da persuasão não é só pathos, mas também logos e, sobretudo, ethos: conceito através do qual o discurso se torna digno de crédito e de confiança (Aristóteles estava convencido que um argumento eficaz é o que mistura os três conceitos). Alegra-me saber que nunca cirandei em seu redor e que recusei respirar o incenso da discutível solidariedade que impregna a atmosfera que o rodeia. Deixo assim para ele, e para os fiéis seguidores, os louros de conduzir os pobres e os excluídos à terra prometida da fraternidade e da solidariedade universal.

Passemos então em análise alguns depoimentos impressivos deste padre franciscano, que muito ajudam a traçar-lhe o perfil, por não passarem de farrapos esburacados que ainda mais lhe deixam as vergonhas ao sol:

Melícias e as couvesEm 2005 era presidente da União das Misericórdias Portuguesas. Seguramente não desconhecia, a par dos relevantes serviços prestados pelas instituições de solidariedade social, que também nelas ocorriam – e, infelizmente, continuam a ocorrer – situações de maus tratos a crianças e idosos e vários tipos de desrespeito pelas regras instituídas com o Estado, que as apoia financeiramente. Ora quando a fiscalização a essas instituições ganhou um novo alento, que fez o padre Melícias? Disse, pura e simplesmente, de forma depreciativa e com a maior das leviandades, que os inspectores incompetentes (leia-se: os que ousavam denunciar essas irregularidades) deviam ir “plantar couves”. Fê-lo, não restam dúvidas, depois alguém ter recorrido aos seus préstimos e à sua consabida influência junto do poder político. Ele próprio o confessa, quando afirma: “Obviamente que, às vezes, há determinadas situações em que, para resolver um problema, é mais fácil falar com o ministro do que com o porteiro.” Apetece perguntar: faz sentido o Estado apoiar financeiramente as instituições de solidariedade social e não controlar, mais tarde, a qualidade dos resultados e a forma mais ou menos criteriosa como o dinheiro é gasto?

Em 2008, ficámos a saber que o padre franciscano passou a receber uma pensão mensal de 7450 euros. Conforme então explicou, tal pensão resulta da remuneração acima da médiaauferida em vários cargos e de “vinte e poucos anos de descontos”. E como se os números não fossem ocasião de escândalo, quando comparados com pensões mínimas de portugueses com quarenta e mais anos de descontos, acrescentou: “não sou rico, tenho uma pensão aceitável”. Aceitável, quando comparada com as de 250 e 300 Euros? Esperemos que não passe fome, que a bagatela que recebe dê ao menos para o Calcitrin e para a Depuralina. Ou, vá lá, para pagar ao sapateiro o arranjo das sandálias…

Última atoarda, já em 2019. Na arrastada novela do Montepio, onde permanece há mais de três dezenas de anos e continua a movimentar os cordelinhos, o padre Melícias defende com intransigência Tomás Correia, o actual presidente, mesmo depois de publicamente se saber que foi condenado pelo Banco de Portugal ao pagamento de uma multa de 1,25 milhões de euros. Esta protecção sem reservas a Tomás Correia, depois de tudo aquilo que já se conhece, lembra as palavras avisadas e certeiras de Natália Correia em O Armistício: só se defende fanaticamente aquilo de que se duvida.

Às pressões para que Tomás Correia abandone a liderança do Montepio, respondeu desta maneira o seu ilustre paraninfo: “Não é um secretariozeco ou qualquer ministro que vai afastar os órgãos sociais democraticamente eleitos”. Assim trata o padre Melícias os que desafiam o seu poder. Assim estala o verniz da sua tão propalada bonomia. Considera-se intocável e por isso subalterniza os que lhe fazem frente, que essa coisa de sermos todos irmãos não passa de uma grande treta. Ora manda os inspectores plantar couves, ora aponta o dedo acusador a ministros e secretariozecos, como quem se movimenta nos quadros mentais de uma república de súbditos e não de cidadãos. Talvez sinta saudades do sacerdotalismo, daquele tempo medievo em que os reis dependiam do poder que os sacerdotes tinham de lhes perdoar os pecados. Esquece-se que foi com muitos desses ministros e secretariozecos que montou, ao longo dos anos, uma perigosa estratégia da aranha, tecendo com eles controversos fios de cumplicidade e de poder.

Não nos espantemos se um dia aparecer por aí, em livro, a Pastoral dos Banqueiros. Assim como Philip Roth escreveu Pastoral Americana, para nos dar a conhecer a ambivalência entre uma América de vida tranquila e outra América onde o instinto guerreiro se aloja no coração de cada cidadão, bem pode o padre Melícias desvendar-nos, na sua Pastoral dos Banqueiros, o paradoxo que consiste em servir  ao mesmo tempo a Deus e à fragilidade mundana da banca, que cada vez mais transforma os nossos sonhos em pesadelos.

A terminar, só mais este desabafo. Num certo dia de inverno, alguém que até então só me conhecia pelo nome, mirou à distância a minha silhueta de sobretudo azul e cabelo branco e disparou:

–  Olha, parece o padre Melícias!

Senti-me tão lisonjeado, que mal saí dali apeteceu-me ir logo pintar o cabelo…