Paulo Sarmento, pesquisador de palavras e imagens

“Ofereço-vos o texto que escrevo, ignoro se o entendem”

“Está escuro, diz Elvira, acenda o texto, respondo-lhe”

Maria Gabriela LLansol

Paulo CarvalhoDe uma assentada, Paulo Sarmento (pseudónimo de Paulo Carvalho) brinda-nos com dois livros: Limalhas e As Ruas de Saibro Estão Vazias. Não são as suas primícias literárias, pois o autor já vem derramando, há alguns anos, artigos e crónicas e poesia na imprensa regional, a que se devem acrescentar alguns prémios literários com que foi distinguido.

É preciso dizer que nenhum destes livros é de leitura fácil. Lidamos com diferentes camadas de leitura, que nos obrigam a escavar a epiderme dos textos. Além disso, entrecruzam-se, nas duas obras, uma sólida formação religiosa, uma segura reflexão filosófica e uma evidente leitura e assimilação dos clássicos – alguns textos revelam mesmo um óbvio carácter subsidiário da mitologia grega e das tragédias (Limalhas, pp. 72-77). Também algumas sonoridades, ao que parece, da poesia moderna e até certos laivos do pensamento surrealista. Está lá tudo, mesmo quando o autor recorre à ironia, ou à sátira dos discursos de aproximação ao real: o da literatura, o da filosofia, o da invenção e o da reflexão. Um verdadeiro rio da escrita, cujo caudal engrossa à custa de afluentes culturais variados.

Vamos fornecer algumas pistas de leitura, procurando não obscurecer o que carece de ser iluminado. Fazer incidir alguma luz nestes textos é de certo modo ter presente as advertências do próprio autor a propósito dos que “dissecam, esquartejam a mancha, para criar outras manchas, em geral muito mais extensas e densas do que a mancha original” (Limalhas, pp. 118-119).

Ensaiemos, pois. Para dizer que Paulo Sarmento não faz concessões à escrita suave e calmante que se vai produzindo por aí (e vendendo bem!). Com o pretexto de que a agitação da vida moderna subtrai tempo e espaço à leitura e à reflexão, e fazendo jus à ideia segundo a qual só se assimila o que é fácil e não requer esforço, abundam por aí produtos a roçar a mediocridade, quase um atentado ao comezinho acto de pensar. Não é esse o halo que se desprende da sua prosa. Não se descortina, nestes dois livros, qualquer arremedo de simplificação barata, qualquer estratégia oportunista, do tipo facilitar para vender melhor. Se há complexidade, ela é fruto de uma dimensão interior rica e multifacetada, não obedecendo à vontade deliberada do autor em complicar ou obscurecer o seu pensamento, ou as vivências que pretende retratar.

LimalhasOs textos de Paulo Sarmento são difíceis de classificar enquanto género literário. Se calhar o autor nem está preocupado com isso. Mais que deixar impresso um estilo de escrita, pressente-se que o que mais lhe importa é talvez surpreender-nos com o que é possível retirar das palavras que burila e manipula com evidente deleite, um pouco como o artesão que procura atingir a limpidez do cristal. Em rigor, estes textos não são contos, embora sejam curtos. Serão comentários, pedaços de reflexões, jogos de palavras, fragmentos de imagens, tudo colado e esculpido em letra de forma, tudo amalgamado no cadinho da imaginação e das vivências estéticas. Coisas que se desprendem de um corpo, quando raspadas sensorialmente. Limalhas.

Curioso, ao percorrer alguns textos de Limalhas, é verificarmos a relação íntima que o autor estabelece com as palavras, a forma como as molda e manipula (pelo recurso ao semantismo e ao grafismo), fazendo lembrar autores como José Palla e Carmo e Mia Couto. É esse o excitante jogo semântico a que Paulo Sarmento se entrega. À sua maneira, partilha igualmente desta sensibilidade com as palavras, do manifesto prazer que lhe provoca o convívio íntimo com a língua: “as palavras têm curvas arquejantes, redondas como o mistério, e nas suas copas há frutos verdadeiros” (As Ruas de Saibro Estão Vazias, p. 53).

E parece querer trilhar este caminho a um tempo exigente e aliciante: “o corpo é um copo com um cubo de gelo lá dentro (E assim fica sabendo que o R é antárctico)”. A associação do corpo ao gelo e até a alusão ao machado que “continua a desferir golpes” (Limalhas, p. 114 remete-nos para a feliz metáfora de Kafka acerca do papel da escrita: um machado que tem por função quebrar o mar gelado que há em nós.

O mesmo se passa em Colagem (Impossível), texto construído a partir de palavras quebradas (Limalhas, p. 125). Textos de carácter lúdico e irónico, no sentido em que jogam com a linguagem – a matéria do espírito. E por isso mesmo textos que propendem para o poético, enquanto forma de organizar e tratar amorosamente as palavras.

Outras reflexões suscita a leitura destes livros, verdadeiros baús de propostas e associações. O texto que o autor intitula, ironicamente, de Justificativa do Plagiato (Limalhas, pp. 70-71) aflora o problema da originalidade da obra de arte. Para Paulo Sarmento, se há originalidade ela é tão só o resultado da reutilização de materiais pré-existentes, nos quais o “criador” interfere, ao imprimir-lhes um cunho e uma personalidade próprios. É a forma como reorganiza o que já existe que personaliza o artista e o diferencia dos demais.

Também não é por acaso que certos textos se entrelaçam: “Que raio de mania esta, a da arte. Querer dominar os materiais e a sua plasticidade – e ser material e plástico” (Limalhas, p. 126). Eis uma crítica ao fechamento hermético e elitista de certas vanguardas. Como não é por acaso que o título de um dos livros é também o título de um dos textos do outro. Ou que a epígrafe de Limalhas remeta para Rodin, por Rodin (p. 97) ou apele à associação com A Aurora de Ariadne: “O escultor queria esculpir a perfeição na pedra (…). Pôs-se, então, a pulverizar cada pedaço, no pleno desespero da procura do símbolo incorpóreo” (As Ruas de Saibro, p. 50).

Diferentes momentos (imagens?) que pretendem retratar a busca da perfeição artística. Busca por vezes obsessiva da Beleza, que leva certos criadores a adoptar gestos demenciais (ou de excessiva lucidez?) que conduzem à destruição das próprias obras.

E que dizer da intrigante coincidência, ou acaso, de temáticas que nos reconduzem a esse magnífico contador de histórias que é Luís Sepúlveda? Em As Ruas de Saibro Estão Vazias “assistimos” à execução de Frederic Berg. E enquanto a vida se esvai, assoma no rosto do condenado “um sorriso que não constará dos anais” (p. 41). Também o escritor chileno partilha a mesma preocupação com a memória. Numa visita ao campo de concentração de Bergen Belsen depara com uma frase inscrita numa pedra: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”. Verdadeiro murro no estômago, que o levou a escrever As Rosas de Atacama, um mural de resistência contra o esquecimento de amigos que foi encontrando na sua vida de andarilho – amigos de uma hora ou de sempre, que tanto podem ser humanos como gatos, ou até barcos. Histórias condenadas ao olvido, se ninguém as contasse.

Ruas de SaibroAmbos parecem igualmente traçar uma idêntica cartografia dos afectos, ou enveredar por uma mesma estética de superação do sofrimento. Em As Ruas de Saibro, lê-se: “com o amor que o vaqueiro tem quando arranca a vida a seu cavalo minado pela doença, deu-lhe a morte” (p. 14). Sepúlveda conta-nos o destino do gato Zorbas, também ele minado, de forma irremediável, pela doença. Diz-nos que o amor “não consiste apenas em assegurar a felicidade do ser que amamos, mas também em evitar-lhe sofrimentos e preservar a sua dignidade”. É comovente a descrição do momento em que reúne os filhos e os convence que Zorbas teria de levar “aquela injecção que o faria dormir”. O amor que nutriam pelo felino levara-os “à mais dolorosa das determinações” (As Rosas de Atacama, pp. 92-95).

Há em Paulo Sarmento muito de dispersão, fragmentação e errância. Cabe, pois, ao leitor a tentativa (que se espera lúdica) de reunir tantas limalhas dispersas. Sem se preocupar com o sentido que o autor possa atribuir ao que escreve. Cada leitor reorganiza um texto outro em função do que lê e do como se lê. Se a literatura serve para produzir sentido, o autor deve preocupar-se mais em ser lido do que em ser compreendido, ou não fossem os leitores a razão de ser dos autores.

A Paulo Sarmento apelamos para que continue a apostar na criação do novo, pois a experimentação é consubstancial ao espaço de liberdade que a literatura deve ser. Que no seu percurso singular continue a urdir as teias que tecem a vida e a morte das palavras. Se possível, refinando (sem obscurecer) o leque de possibilidades que se abrem a quem o lê. Afinal, com algum cuidado e labor, tudo aquilo que é denso e meditado talvez possa ser vertido numa escrita mais clara e acessível, facilitando ao leitor a insubstituível tarefa de “acender” os textos, de abrir neles as desejáveis clareiras de compreensão.


(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 28.06.2001, p. 9. A versão refundida que aqui se apresenta foi publicada na revista Escritor (Leiamos), pp. 41-44).