Pernil de porco e crimes (quase) perfeitos

A rocambolesca história das toneladas de pernil de porco, destinadas a alimentar a revolução bolivariana da Venezuela na época natalícia, continua a dar que falar. Da cabecinha pensadora de um maduro onde costumam poisar passarinhos que estabelecem ligação com o Além e lhe permitem falar com Hugo Chávez, podem sair coisas extraordinárias. Primeiro, teria sido Portugal a sabotar o pernil. Agora, parece que o pernil está na Colômbia. Que ventos, que correntes marítimas adversas, terão desviado da rota original tão apetecível encomenda?  Não sabemos se o presidente da Venezuela alguma vez leu Quem Mexeu no Meu Queijo?, um livro que fornece pistas para lidar com um mundo em acelerada mudança. Se leu, talvez colha ensinamentos para escrever Quem Mexeu no Meu Pernil?, podendo vir a rivalizar – sabe-se lá… – com o prestígio que levou o seu conterrâneo Rómulo Gallegos à ribalta da novelística mundial.

Como tudo o que é sólido se dissolve no ar, pode até dar-se o caso de os famintos venezuelanos nunca chegarem a saborear tão delicioso pitéu. E aí, da cabeça do seu presidente até pode soltar-se a peregrina ideia de que a armada com os pernis foi ao fundo, vitimada por mais um atentado do fundamentalismo islâmico. O que nem seria de espantar, já que em vários capítulos do Corão se proíbe o consumo de carne de porco, tendo por base o que Maomé disse do toucinho. E se em vez de carne de porco estivesse em causa carne de javali, poderiam muito bem os acusados de sabotagem ser os irredutíveis gauleses que dão pelo nome de Astérix e Obélix.

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Se méritos há neste verdadeiro enredo porcino, um deles é a possibilidade que nos oferece de desaguar no romance policial e de questionar a existência, ou não, de crimes perfeitos. Esta história do pernil sabotado fez-me lembrar, de imediato, o livro do escritor galês Roald Dahl, “Borrego para a Matança”, obra de 1953 que cinco anos depois Hitchcock iria transpor para o cinema com o título Lamb to the Slaughter. O livro revela-nos como uma esposa dedicada se pode transfigurar por completo ao tomar conhecimento da infidelidade do marido, mesmo que seja este a revelá-la. Neste caso não havia pernil de porco, mas sim uma perna de borrego congelada, que acabou por se transformar numa arma mortífera:

“Mary Maloney limitou-se a aproximar-se dele e sem parar levantou a perna de borrego congelada bem alto e bateu com ela com toda a força na nuca dele. Era como se lhe tivesse dado com uma moca de aço”.[1]

Consumado o homicídio, a viúva tem artes para dar de repasto, aos quatro polícias que investigam o caso, a própria arma do crime, o borrego entretanto descongelado e assado no forno. Assim digeriram os investigadores, com evidente proveito das papilas gustativas, a prova que serviria para sustentarem a acusação. Digamos que nem tudo foi mau para os venezuelanos. Podem, é certo, desfalecer à fome; mas livraram-se – seguramente alguns – de sucumbir à força de uma violenta pancada desferida na nuca com essa perigosa arma de arremesso em que se pode transformar um pernil congelado.

Este tipo de crimes (quase) perfeitos também está presente na literatura portuguesa. Todos conhecem inícios de livros marcantes e por isso mesmo inesquecíveis. Não resisto a dar-vos conta da minha preferência, no que toca a autores nacionais. Ela vai por inteiro para Fernando Assis Pacheco, escritor, poeta e jornalista cultural. Reparem como abre, de forma magistral, o livro Trabalhos e Paixões de Benito Prada, obra em que pretende esboçar a biografia de um avô da província de Ourense que governou a vida em Portugal a deambular por tudo quanto era feira ou mercado da Beira Litoral:

“Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé. O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado (…). Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou: “É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno”. Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria respondido: “Assar-lhe até a memória”.[2]

Que coisa macabra! Que murro no estômago, logo nos primeiros dias do ano – dirão alguns amigos leitores. Talvez tenham razão. Mas é bom recordar o discutido e controverso comentário de André Gide: “É com bons sentimentos que se faz má literatura”.

O que não quer dizer – acrescento eu – que a boa literatura ande atrelada a maus sentimentos. Aqui, o talento de quem escreve é decisivo. Nem os sentimentos mais sublimes explicam os maus romances, nem os mais sórdidos explicam os bons. Importante é ter a capacidade de representar as pulsões essenciais, é atingir a dimensão profunda das coisas, aquele lugar onde o bem e o mal não podem nunca ter o mesmo peso, ou a mesma cotação.


[1] Roald Dahl, “Borrego para a Matança”, Contos do Imprevisto, Vol. 3 (tradução Mariana Pardal Monteiro), Lisboa, Teorema, 1986, pp. 203-204.

[2] Fernando Assis Pacheco, Trabalhos e Paixões de Benito Prada, Porto, Edições Asa, 1997, pp. 9-10.