Poema de Vasco Graça Moura sobre O Meu Pipi

O Meu PipiHá precisamente 14 anos nascia o fenómeno O Meu Pipi, um dos blogues mais badalados de Portugal. Obra de autor anónimo, figura enigmática que em 2003 incendiou a emergente blogosfera, regando com humor de fino quilate textos com palavrões a roçar a obscenidade, misturados com erudição e um reconhecido bom nível de escrita.

Muitos viram em O Meu Pipi um cometa fugaz. Outros internautas, mais avisados, perceberam logo que O Meu Pipi de cometa não tinha nada. A bola de neve da popularidade foi crescendo e começou a entrar nos hábitos de leitura de muita gente. O Meu Pipi passou a ser citado um pouco por todo o lado e acabou por atrair o interesse dos editores, dispostos a transformar em livro impresso as entradas diárias publicadas em www.omeupipi.blogspot.pt

Numa entrevista concedida ao semanário Expresso, o Pipi resolveu manter oculta a identidade e a dado passo acrescentou: “Suponho que há uma consciência ordinária comum ao sexo masculino. Todos temos dentro de nós um camionista, um mecânico, o gajo que cola na parede do escritório o calendário de gajas nuas”.[1]

Noutra entrevista ao Ípsilon, questionado sobre a difícil relação da literatura portuguesa com o sexo, Pipi assevera que as traulitadas estão “deficientemente representadas na literatura”. E cita, como exemplo, o episódio de uma noite de núpcias no livro Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares, onde se lê: “[Diogo] entrou nela devagar, conforme ela pedira. Devagar e cada vez mais fundo, até que um dique se rebentou algures, não sabia se dele, se dela, se de ambos”. Eis o que recorta, a seguir, o bisturi crítico do Pipi: “Note que se trata de um erotismo hidráulico, este que cruza os diques com a berlaitada”.[2]

Diário O Meu PipiDepois de em 2011 nos ter brindado com um volume de Sermões, que ancorados na literatura erótica glosam textos do Padre António Vieira, Tomás de Aquino e Santo Agostinho, o Pipi regressa de novo em 2017 com um novo livro, anunciado como “edição de luxúria interdita a menores de 18 anos”.

O sucesso inicial foi tão retumbante que até Miguel Esteves Cardoso considerou O Meu Pipi genial. Entretanto, tinha-se gerado uma febre especulativa em torno do autor do blogue. Alguém, seguramente, com uma cultura e um humor muito acima da média. Foram convocados nomes como os de Vasco Graça Moura, Eduardo Prado Coelho, Pedro Mexia, José Pacheco Pereira e António Mega Ferreira, entre outros. Vasco Graça Moura aproveitou a deixa e propôs-se negar o boato. Fê-lo de forma eloquente, com umas “décimas de refutação” memoráveis. Estas:

já num blogue o meu pipi?
de um pipi, que caso estranho…
eu vou ali e já venho:
dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.

é forçoso que eu desminta
com vigor essa atoarda:
por muito usar a espingarda
e por gastar muita tinta,
não se espere que consinta
na falsidade que li
e me ofende o pedigree:
garanto que não fui eu
o brejeiro que meteu
já num blogue o meu pipi.

quer-se o pipi bem guardado
para uso pessoal:
nestas coisas afinal
deve ser-se recatado.
demais, quem seja versado
nos tiques do meu engenho,
das prosódias que eu amanho
já saberia de cor
que eu faria bem melhor
de um pipi… que caso estranho!

nem da lira tiraria
maior glória do instrumento
quando ao pipi acrescento
a minha morfologia.
e decerto não cabia
num blogue assim o tamanho
do lenho ardendo no lanho.
pipilar pipis na liça
muito enguiça e pouco atiça…
eu vou ali e já venho…

o que é de césar, quem jogue
assim a césar o dê
e se entender o porquê
deixe então que eu desafogue:
que não pus pipi no blogue
nem pus blogue no pipi:
ri melhor quem no fim ri
por redondilha ou quiasmo,
ou por música de orgasmo:
dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.


 

[1] Expresso-Revista Única, 28.06.2003, p. 4.

[2] Ípsilon, 06.01.2012.