Rimbaud, Verlaine e a parábola de Animus e de Anima

A ler (e a reler) Rimbaud e Verlaine. Pela noite dentro, quando é mais difícil cair nos braços de Morfeu. A poesia apetece quando alguma parcela de ansiedade se enrosca no corpo e na alma. O mesmo se passa quando uma faca de saudade se atravessa na garganta. A prosa bem pode esperar por tensões mais longas.

Paul Verlaine

Rimbaud a correr para Paris, ao encontro de Verlaine. A viajar pelos “caminhos do céu” (os da poesia e, quem sabe, os do inferno). Verlaine perdido na aventura dos excessos. Dois talentos em estado puro, a arder na pira dos sentimentos em que uma espécie de satanismo intimo os devora e os consome. Eternos incompreendidos, como se o mundo fosse demasiado pequeno para conter a sua grandeza.

Neste tempo de abençoadas insónias, apetece-me partilhar convosco o texto “Parábola de Animus e de Anima: para dar a compreender certas poesias de Arthur Rimbaud” (extraído de Paul Claudel, Positions et Propositions, Gallimard, 39 Edition, 1928).

“Nem tudo vai bem no lar de Animus e de Anima, o espírito e a alma. Já lá vai o tempo, a lua de mel acabou cedo, em que Anima tinha o direito de falar á vontade e Animus a escutava com arrebatamento. No fim de contas, não foi Anima quem trouxe o dote e governa o lar? Mas Animus não se deixou reduzir muito tempo a esta posição subalterna e logo começou a mostrar a sua verdadeira natureza, vaidosa, pedante e tirânica. Anima é uma ignorante e uma tola, nunca foi à escola, ao passo que Animus sabe um monte de coisas, leu um monte de coisas nos livros, aprendeu a falar com uma pedrinha na boca, e agora, quando fala, fala tão bem que todos os amigos dizem que não se pode falar melhor. Nunca acabaríamos de o ouvir. Agora Anima já não tem direito de dizer uma palavra, ele tira-lhe, como se diz, as palavras da boca, sabe melhor do que ela o que ela quer dizer e, por meio das suas teorias e reminiscências, dá-lhe tantas voltas, arranja tudo tão bem que a pobre simplória já não entende nada. Animus não é fiel, mas isso não o impede de ser ciumento, porque no fundo sabe que é Anima que tem toda a fortuna, ele é um mandrião e não vive senão do que ela lhe dá. Também não deixa de a explorar e atormentar para lhe arrancar uns tostões, belisca-a para a fazer gritar, combina farsas, inventa coisas para a amargurar e ver o que ela dirá, e à noite conta tudo, no café, aos amigos. Entretanto, ela fica em silêncio em casa a cozinhar e a limpar tudo como pode, depois dessas reuniões literárias que empestam a vómito e a tabaco. Reuniões que são raras, aliás; no fundo, Animus é um burguês, tem hábitos regulares, gosta que lhe sirvam sempre os mesmos pratos. Mas acabou de acontecer uma coisa engraçada. Um dia que Animus regressava a casa fora de horas, ou talvez dormitasse depois do almoço, ou talvez estivesse absorvido no trabalho, escutou Anima a cantar sozinha, por detrás da porta fechada: uma canção curiosa, que ele não conhecia, e não havia meio de encontrar as notas ou as palavras ou a chave; uma estranha e maravilhosa canção. Bem tenta sorrateiramente obrigá-la a repetir, mas Anima faz-se desentendida. Cala-se desde que ele a olha. A alma cala-se desde que o espírito a olha. Então Animus descobriu um truque, vai-se arranjar para que ela acredite que ele não está presente. Vai para fora, conversa ruidosamente com os amigos, assobia, põe-se a tocar alaúde, a serrar madeira, canta refrões idiotas. Pouco a pouco, Anima tranquiliza-se, olha, escuta, respira, julga que está só e, sem barulho, vai abrir a porta ao seu amante divino. Mas Animus, como se disse, é um cegueta”.