Rui Knopfli, poeta extraterritorial

Rui Knopfli (caricatura de Vasco)

(Dedico este texto à estimada amiga Maria Teresa Mota, que tem trazido aqui alguns poetas da minha predilecção – cito apenas, entre os mais recentes, Rui Knopfli e Pedro Tamen – os quais, por razões circunstanciais e outros imponderáveis, não tenho podido comentar em tempo útil, como desejava e ela bem merece).

“O poeta não se vende, não se compra, não se emenda” – Rui Knopfli

Considero Rui Knopfli um dos melhores poetas contemporâneos de língua portuguesa. Tenho-o alinhado, na estante, ao lado de outro Ruy que muito prezo – o Cinatti, poeta e antropólogo apaixonado por Timor, que cruzou vários continentes – e de braço dado, também, com a Memória Indescritível, de Pedro Tamen.

 Nascido em Inhambane (Moçambique), abandonou o país em 1975 por “mal-entendidos e amargas circunstâncias”. Viria a fixar-se em Londres durante vinte e dois anos, onde foi assessor de imprensa da embaixada portuguesa. Em 1997 passa a residir de vez em Portugal, onde acaba os seus dias, contava então 65 anos de idade: “Agora Portugal será, graças a Deus, um ponto de fixação, onde acabarei os meus dias no meio de gente que tanto estimo”.[1]

Não admira, assim, que a sua poesia depurada e concisa – mas também com sinais de presságio, angústia e ironia – atravesse os continentes africano e europeu. Sem uma terra a que verdadeiramente pudesse chamar sua, o poeta sentia-se estrangeirado n’O País dos Outros, título do primeiro livro (1959). Encharcado em saudade e melancolia, minado pela nostalgia irremediável da terra amada que, em sentido territorial, foi deixando de ter – “é só a língua em que me digo” – deixou todo esse caldeirão de emoções retratado no longo e belíssimo poema Pátria, de O Escriba Acocorado[2]de que aqui deixo apenas alguns excertos:

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

(…)

O poeta que não escrevia por encomenda acabou maltratado na sua terra pelos militantes da poesia. Precisamente aqueles que escreviam “de um ponto de vista totalmente subordinado a preconceitos de ordem político-ideológica, suprimindo, rasurando, autênticos valores literários em favor de todas as mediocridades que erguiam hinos coxos e tortos (risíveis?) em favor da libertação, com muito molho e esparregado de culatra de AK-47. Na época levantei um tímido protesto: choveu-me bravamente em cima e fui acusado de insidioso e potencial aliado do colonialismo, apesar de ter diariamente a ‘pide à perna’ e os meus críticos beneficiarem da sombra protectora da Sorbonne”.[3]

Foi o preço que pagou pelo não alinhamento ideológico que se seguiu a um período de aproximação ao neo-realismo. Um “eu” individual estilhaçado por acontecimentos colectivos que o levaram a abandonar Moçambique com amargura e desencanto, como se depreende destes versos extraídos de O Monhé das Cobras:[4]

Aeroporto

É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer 
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.

Falei acima de uma poesia de presságio, porque é disso que se trata quando deparamos com o primeiro poema de O País dos Outros, o primeiro livro que publicou:[5]

Lírica para uma ave

Num céu de chumbo e baionetas
caladas,
sobre uma floresta de sono
e demência,
tonta, esvoaça perdida
uma ave sangrenta.
Na turva e opressa manhã
se anuncia a cólera
do tempo.

Na hora
da aurora,
gemem ventos,
fluem surdos rios.

Cerra os olhos,
cala na garganta
a voz,
acorda audível
o pensamento:

No escuro cerne da floresta,
com sorrisos dependurados à entrada,
degola-se uma ave.
Por enquanto mais nada, senão
o torvo tinir dos talheres
no banquete da morte impossível.

E também é de presságio que se fala no poema “Preto no Branco”, escrito em 1962 e inserido em Mangas Verdes Com Sal, onde a guerra pela independência se anunciava já envolta em pólvora, ferro e fogo:

O PRETO NO BRANCO

Da granada deflagrada no meio
de nós, do fosso aberto, da vala
intransponível, não nos cabe
a culpa, embora a tua mão,
armada pelo meu silêncio,
lhe tenha retirado a espoleta.
De um lado o teu dedo indicador,
de outro a minha assumida neutralidade.
Entre os dois, ocupando o espaço
que vai do teu dedo acusador
à minha mudez feita de medo e simpatia,
tudo quanto não quisemos, nem urdimos,
tudo quanto a medonha zombaria
de ódios estranhos escreve a sangue
e, irredutivelmente, nos separa e distancia.
Tudo quanto há-de gravar o meu nome
numa das balas da tua cartucheira.
Nessa bala hipotética, nessa bala possível
que se vier, quando vier (ela há-de vir)
melhor dirá o que aqui fica por dizer.

Nunca foi fácil, aos romancistas e poetas das antigas colónias portuguesas, chamar a atenção dos críticos continentais e muito menos ocupar um lugar de destaque nos escaparates das livrarias da metrópole. Talvez por isso Rui Knopfli seja, ainda hoje, um poeta algo distante do reconhecimento que a sua obra requer e tanto merece. Uma obra construída em torno das lembranças da infância e da juventude – das mangas verdes com sal – das paisagens com a sua largueza de horizontes, da vegetação árida ou luxuriante, das savanas e das águas tépidas do Índico e daqueles poentes com céus de fogo deslumbrantes em finais de tarde que parecem não ter fim. Coisas que deixam traços indeléveis de nostalgia na alma e na memória de quem lá tem as raízes ou por lá passou ou assentou arraiais.

Poeta da perda e do desterro, mas também cronista e ensaísta de méritos firmados – estou a lembrar-me de uma notável polémica em torno de Shakespeare, travada com Eduardo Lourenço, que não hesitou em chamar-lhe “honorable man” – Rui Knopfli sublimou na poesia o luto de “ser arrancado da terra com as raízes a sangrar, para ser transplantado noutro lugar”.

Por tudo o que nos legou (e foi tanto!) é proibido esquecer Rui Knopfli! 


[1] Entrevista à Visão, em Outubro de 1997.

[2] Rui Knopfli, O Escriba Acocorado, Lisboa, Moraes Editores, 1978, pp. 13-14. Muita da sua dor, provocada pela ruptura com um mundo encantatório, foi exorcizada em O Escriba Acocorado (ver Maria Leonor Nunes, “Rui Knopfli, a diáspora de um escriba, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 18.01.1995, p. 12).

[3] Rui Knopfli, “O grande equívoco”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 428, 18.09.1970, p. 32.

[4] Rui Knopfli, O Monhé das Cobras, Lisboa, Editorial caminho, 1997, p. 56.

[5] Poema inserido na colectânea Nada Tem Já Encanto – Poemas Escolhidos. Edições Tinta-da-china, Lisboa, 2017 (1.ª edição), p. 23.