Tempo de mudança — singela homenagem aos amigos do serviço e do comboio

Hoje deu-me para isto. Para recordar os amigos que deixei em Coimbra, amarrados às angústias do presente e às incertezas do futuro. Enredados na moral da competição desenfreada, tantas vezes sem ética. A todos devo muito: o companheirismo, a fraternidade aberta, o apoio nas horas difíceis, as lições de vida. Tanto que aprendi com eles! Alguma timidez e não menor emoção, na hora da despedida, impediram que lhes dissesse o que mereciam ouvir. Talvez porque a generosidade é mais para retribuir que para agradecer, se para tanto chega o coração. Quantas vezes temos amizades à boca do coração mas não sabemos como as cultivar com desvelo. Somos desleixados com os afectos, o que não quer dizer que os desprezemos A melhor forma que encontrei para retribuir foi dizê-lo agora, por escrito. Porque o que deveras nos toca e cativa só ex-corde se transmite. Obrigado por esse bálsamo de todos os dias e de todas as horas.

Uma palavra, também, para os amigos do comboio. As diferenças políticas, religiosas ou clubísticas nunca impediram uma boa conversa ou o melhor convívio espiritual. Essas diferenças nunca nos destruíram. Apenas nos distinguem. Por isso nos realizávamos – dialogando! Irreverentes e alegres, ajudaram a suavizar alguns dias cinzentos (e outros contos…). As saudáveis picardias da bola ou da política derrotavam sempre os mangas de alpaca do cinzentismo que nos vigiam à distância, os gestores dos pequenos poderes do centralismo burocrático que nos infernizam a vida e envenenam o dia a dia com o amianto das suas frustrações e da sua pequenez. Sem o saber, promovem o conceito de “inoperância” introduzido pelo filósofo Giorgio Agambem: a inoperância não como passividade mas como actividade que torna inoperativas as operações económicas e sociais. É um tipo de trabalho que não nos realiza: apenas cansa e desespera.

Agora é tempo de mais serenidade. Tempo de usar o tempo em proveito próprio e de forma aprazível. De fazer aquilo que mais gosto, para lá do convívio: sentir o cheiro da terra fresca, inebriar-me com os aromas que rescendem por todo o lado; percorrer o areal da praia, sentir a brisa marítima, embebedar-me de azul e infinito; ler e escrever, ouvir música, ver filmes, apreciar a tranquilidade e até o silêncio. Às vezes, o inteiro silêncio.

Não comecem a pensar que digo adeus ao trabalho, sentado no sofá a ver televisão – essa grande ladra do tempo – com as pantufas fofas que os amigos do comboio me ofereceram. Não é nada disso. Além de um direito (por enquanto…), a reforma é a possibilidade que temos de trabalhar folgadamente, sem pilhas eléctricas acumuladas nos nervos. Sem pressão, nem pressas aturdidas.

Não quero só a liberdade para procurar ser mais feliz. Reclamo também algumas parcelas de felicidade para me sentir mais livre. A felicidade está muito para lá do conforto material. Para mim, passa igualmente pela partilha com os outros – mesmo que esporádica – daquilo que sentimos e expressamos. É o que sinto quando a escrita se apodera de mim como um incêndio interior, onde se queima a alma toda no holocausto à beleza da vida e às suas seduções.

Quero cultivar o gosto de ter com quem conversar, mesmo que apenas através do éter. Porque todo o homem tem o dever de dar aos outros não o que lhe resta, mas o que ainda lhe faz falta. A vida será sempre um esforço para alcançarmos o que ainda não temos. Ou não será assim?

Bem sei que em relação a vós a ausência que agora começa é mais amarga. Rebobino, silencioso, ajudado com os pedais da memória, alguns momentos marcantes na vossa companhia. O silêncio das palavras não consegue parar o tropel do pensamento. Se tenho saudades? Sim, tenho, ou não sentisse já a hera da saudade a enroscar-se na garganta. Mas sei – como dizia Mário Sacramento –  que a saudade é uma força quando projecta no futuro uma esperança. Estou feliz com a partida? Sim, estou. Creio que não podia sentir-me melhor. E isso dá-me o alento de saber que os meus amigos ficam felizes por mim, também.

O nosso tempo de vida é a nossa única fortuna. E esse tempo não tem que ser um museu de silêncio. A todos os meus amigos – os do comboio e os do serviço – aqui deixo, escancarado, o tamanho da amizade que lhes tenho.