Treze anos sem Eduardo Prado Coelho (1944-2007)

A falta que nos faz o Eduardo, sempre pronto a lançar-nos o dardo da interrogação permanente, na sua recusa obstinada de tudo quanto cheire a nacionalismo ideológico, militarismo, fascismo ou totalitarismo. O crítico e ensaísta de reconhecida erudição. O professor universitário que não gostava de dar notas nem de realizar exames, preferindo valorizar uma certa concepção anarquista da pedagogia literária. O autor de livros incontornáveis como A Mecânica dos FluidosO Reino FlutuanteOs Universos da Crítica ou A poesia ensina a cair, título tributário de “O poema ensina a cair”, de Luiza Neto Jorge.

Atento aos pormenores, a escrever sobre tudo e mais alguma coisa. Um hedonista da cultura e um esteta do visível. A prática da escrita por fragmentos: a literatura, a fotografia, o cinema, o teatro, a pintura, a música, a fina análise política, a escrita sobre as trivialidades do quotidiano. A lembrar Terêncio: nada do que é humano me é indiferente. Ou, mais próximo de nós, Roland Barthes, de cuja obra era um dos mais atentos leitores, ou não partilhasse com ele o prazer e a diferença contra os puritanismos da verdade e da ciência. Um sismógrafo do quotidiano, o divulgador fascinado pela novidade do que de melhor acontecia e se publicava lá fora. Uma presença constante, e cúmplice, com o “ar do tempo”.

Também um esteta da ironia, como por aqui se vê:

“Manuel de Lucena (…) escrevia que a vitória de Soares Carneiro (presidenciais de 1980) era extremamente provável, mas que não se podia excluir a hipótese de Eanes vencer, porque às vezes Deus está distraído. Foi o que se viu – uma distracção de Deus. Só nos espanta um pouco que Deus se distraia logo à primeira volta em cinquenta e seis por cento” (Semanário O Jornal, 19.12.1980).

“O caso do Expresso torna os sábados particularmente ginasticados. Porque o jornal (…) é constituído por duas partes perfeitamente distintas: a que se lê e a que se não lê. Nesta última incluo, como é óbvio o “topo de gama” “o imobiliário”, os “transportes”, a lista regular das 100 empresas que mais contam em Portugal e a colecção de electrodomésticos de uma conhecida marca, sem falar nas viagens às Maldivas, nas medalhas nem sei de quê ou num curso rápido para aprender línguas exóticas (…). O problema está em como deixar no café aquela carga de leituras dispensáveis sem que o solícito habitante da mesa ao lado venha atrás de nós a proclamar que esquecemos uma coisa”. (Crónicas no Fio do Horizonte, Edições Asa, 2004, pp. 78-79).

E que dizer deste texto, intitulado “Pré-Queda”, delicioso no que tem de premonição e de ironia corrosiva, quando alude aos telejornais em Portugal?

“Não me espanta nada que um dia destes os telejornais portugueses abram o seu alinhamento informativo com algo do tipo “Devido ao frio, mulher ia caindo de um escadote ao procurar um cachecol na parte de cima de um velho armário. Veremos então toda uma equipa tiritante deslocar-se ao local do não-acontecimento (…) e começar a fazer um inquérito segundo as normas que laboriosamente aprendeu nos cursos de Comunicação Social. Começa-se pela protagonista do sucedido, com a inevitável pergunta: “como se sente neste momento, depois de ter estado quase a cair do escadote”? Pálida, ainda estremunhada, a mulher responde pela quarta vez que se sente confusa, mas está muito grata a uma vizinha que a veio prontamente ajudar. Trata-se então, conclui o sagaz repórter, de ouvir a vizinha: “Como se deu conta de que a Dona Alzira poderia ter caído do escadote?” A entrevistada, feliz por poder comunicar na televisão, dá uma catadupa de pormenores (…). Com isto já passaram dez minutos, seguidos apaixonadamente pelas audiências. Nesse dia Lobo Antunes pode até ter publicado o seu último romance, ou Pedro Tamen reunido uma vida de textos poéticos – podemos estar certos de uma coisa: as nossas televisões não dirão sobre eles uma só palavra” (Crónicas no Fio do Horizonte, pp. 176-177).

Termino, com mais alguns excertos de textos que ajudam a iluminar o pensamento e a dimensão cultural de Eduardo Prado Coelho:

“Eu não escolho um campo entre os campos que já existem, e resisto com todas as minhas forças a todas as intimidações com que pretendem forçar-me a estar com este ou aquele campo. És por A ou por B? — eis o torniquete totalitário, a máquina binária, com que os colectivos e as instituições pretendem extorquir uma escolha. Não, o campo que eu escolho sou eu que o construo — entendido?” (Público)

Comunicação:

“A transparência implica o desarme – mas raramente dois desarmam ao mesmo tempo. E seria um erro pensar que o facto de um se desarmar perante o outro faria que esse outro desarmasse também. Por vezes a situação de vulnerabilidade acicata no outro o desejo de vencer. E assim temos a grande linha de tragédia entre os homens: os estados de iminente transparência transformam-se num jogo de massacre, numa batalha campal.” (Público, 19.09.2005)

Política:

“Hoje em dia a cultura ou a ética tornaram-se argumentos secundários numas eleições”. (Público, 12.04.2006)

Mudança:

“Sempre que pretendemos fazer a felicidade da humanidade sem termos em conta a importância da felicidade de cada um, caminhamos em direcção ao desastre” (Público, 18.05.2004)

“O facto de não ter uma verdadeira experiência da fé não significa que não seja mil vezes mais sensível a uma fé que não perdeu o sentido da dilaceração e do trágico, e que se sustenta sobre o horizonte da própria dúvida, do que a rotina daqueles que mantêm por inércia um conjunto de referências desvitalizadas” (Público, 12.03.2004).

Felicidade

“Há coisas que têm o seu tempo e o seu modo e não vale a pena tentar voltar a lugares onde fomos felizes; é preferível encontrar novos lugares, mesmo que sejam iguais aos anteriores” (Público, 08.01.2004).