“Vestido” para homem, ou como fintar a castração

Este vestido para homem, da marca italiana Gucci (custa apenas 1900 euros…), não podia vir em melhor altura. Já encomendei um exemplar. Vá lá: não esbugalhem os olhos nem abram desmesuradamente a boca de espanto. Tenham calma, já vão perceber porquê.

Parece que o vestido se destina a combater a masculinidade tóxica. Não é por isso que o compro, até porque não sou de modas: tanto se me dá que rosa seja cor de menina e azul de menino, já que os significados das cores vão variando entre culturas e antes do século XX o padrão oficial até funcionava ao contrário do que hoje se considera certo para cada género. Se recorro a esta indumentária… é pura e simplesmente para que não me cortem os tomates. Assim mesmo. Passo a explicar, para evitar mal-entendidos. 

Sorte a das mulheres, já que não vingou a proposta de remoção dos ovários às que ousem abortar. Quanto aos homens, falo apenas por mim. Embora não seja dado a comer criancinhas ao pequeno almoço, as minhas noites nunca mais foram as mesmas. Tremo como varas verdes, só de pensar que pode surgir alguém a acusar-me de pedofilia, à semelhança do que se passava com as denúncias insidiosas contra os cristãos-novos ou as acusações de feitiçaria e bruxaria contra as mulheres – supostas noivas de Satanás – que entre os séculos XV e XVII acabavam invariavelmente a arder como tochas nas labaredas da intolerância.

Em tempo de Convenção, um partido político da nossa praça procura reintroduzir a pena de Talião na sociedade portuguesa contemporânea, porventura (e por Ventura) inspirado na conduta ética do Deus do Antigo Testamento: olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe (Êxodo, 21. 23-25). Transpondo o raciocínio milenar para uma possível revisão da Constituição no século XXI, o que se propõe é nem mais nem menos do que a castração física – presumo que sem anestesia – para os condenados por abuso e violação de menores.

Tudo isto me provoca pesadelos, suores gelados, convulsões e espasmos, urticária e unhas encravadas. Aqui fica o que retive de um sonho tenebroso: estou numa sala a frequentar formação obrigatória para castradores a soldo do Estado. Ao meu lado, alguns médicos, aprendizes de talhantes, obrigados a mandar às malvas o juramento de Hipócrates. O monitor dispara catilinárias contra as teorias médicas, gabando-se de ser alguém com saber de experiência feito. Não deixa de ter alguma razão: à falta de gente do ramo com experiência no corte de genitais, o Estado recorrera a um velho alveitar, tirocinado a capar porcos nos currais das aldeias recônditas de Portugal.

O pior viria a seguir. Não houve castrações ao vivo, com figurantes de carne e osso, como se estivéssemos numa daquelas aulas de anatomia onde, subrepticiamente, alguém coloca uma parte do corpo retalhado no bolso da bata branca de uma caloira, candidata a exercer medicina ou a embrenhar-se nos meandros da justiça. Em vez disso, o monitor-capador projecta alguns vídeos, onde o som e a imagem não deixam de suscitar reacções de horror, como se dum cenário real se tratasse. 

Num deles, um homem condenado à castração tenta auto-mutilar-se – embora sem sucesso, por lhe faltar a coragem necessária– numa tentativa desesperada de evitar a humilhação pública às mãos dos algozes, à boa maneira dos autos de fé da Santa Inquisição.

Noutra imagem, mulheres nuas aparecem num prado verdejante a pendurar, com aparente deleite, genitais cortados pela raiz, como se colocassem roupa a secar e ainda pudessem retirar deles algum proveito. 

De repente, acordo. Aturdido e com o coração alvoroçado. Levanto-me de um pulo, e porque há sonhos que podem tornar-se realidade, decido: vou mesmo usar o vestido como disfarce. Pode ser que não me topem e desse modo escape aos novos inquisidores com complexos de Torquemada. E para reforçar ainda mais a segurança, resolvi também usar, por baixo do vestido, um cinto de castidade. O mesmo cinto que no tempo das cruzadas as mulheres usavam ao pescoço, enquanto os maridos iam para longes terras ajudar à dilatação da fé e do império (outras davam-lhe o uso adequado, mas só até ao momento em que um ferreiro mais atrevido arranjava a chave da salvação, aliviando-as do tédio que representava passarem anos a fio a olhar para os campos de milho ou de trigo…).

Pelo sim pelo não, e enquanto não chega a encomenda, tenho aproveitado para ir depilando as pernas…

(Nota: algumas imagens procuram retratar, com a fidelidade possível, a espessura do sonho que partilhei convosco).