Vinte e cinco anos sem David Mourão-Ferreira

Apartou-se do nosso convívio num dia 16 de Junho, há precisamente vinte e cinco anos. Poeta, romancista, crítico literário e ensaísta, considerava-se sobretudo poeta do amor e dos sentidos. Mestre de vários géneros literários, manteve sempre uma relação muito próxima com as mulheres, a quem olhava como arte e como música, talvez como reacção à ameaça constante do informe. A imagem do sedutor colou-se-lhe à pele. Ele ripostava, dizendo que não, que os homens não seduzem, acabam sempre seduzidos.

Muitos viram nele o poeta do amor e da sensibilidade, como acontece neste poema magistral sobre a mulher:

ILHA

Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

In Cem Sonetos Portugueses.
Edição Terramar, 2002.

Em boa hora Agostinho da Silva o encaminhou para a Literatura, pela qual viria a sentir uma avassaladora paixão e um genuíno amor, num tempo em que o pai desejava que optasse por Direito. Um eterno sedutor, com o prazer constante de ensinar: “Há duas coisas que não dispenso – estar com uma mulher e ensinar”.

Lisboeta dos quatro costados e poeta de Lisboa, era também um viajante inveterado, capaz de voar para as sete partes do mundo. Nos lugares por onde passou captou ritmos e imagens, exprimiu emoções, engendrou metáforas. Amantíssimo dos clássicos, cultivava no poema a divina proporção, num virtuosismo sem falhas. Uma poesia capaz de triunfar sobre a desordem e de impor regras ao caos precário da existência. Uma poesia capaz de transformar o caos em cais de aventuras sempre renovadas.

“Um Amor Feliz”, título do seu último romance que venceu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, assim se poderia condensar a sua vida. Um amante da vida e dos seus prazeres: “o que acho cada vez mais extraordinário é a vida, a maravilha que é estarmos vivos”.

CASA

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão…

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

In Antologia Poética.
Publicações D. Quixote, 1983, p. 97.

Poeta em viagem sem regresso há vinte e cinco anos, continuamos a reter no écran da memória, para lá da sua obra, também aquela presença envolta numa nuvem branca de tabaco de cachimbo. Uma vida que ele desejou reduzida a um monumento de palavras. Escasseiam as palavras para exprimir a vida e a falta que David Mourão-Ferreira ainda hoje nos faz.