Violência e Islão, segundo Adonis

Adonis_cropO ataque contra uma mesquita sufi, a norte da península egípcia do Sinai, provocou mais de 300 mortos. No momento em que escrevo ainda nenhum grupo reivindicou a autoria do atentado, mas tudo aponta para mais uma iniciativa da responsabilidade do autoproclamado estado islâmico.

O sufismo é uma corrente mística e contemplativa do Islão. O facto de venerarem santos, e também porque a mística sempre foi marginalizada no interior da cultura muçulmana e olhada de soslaio por juristas e teólogos ortodoxos, leva os extremistas islâmicos a considerá-los hereges. Daí aos massacres generalizados vai um passo muito curto.

No dia a seguir ao atentado, invadiu-me um desejo irreprimível de reler uma obra que para mim representa um marco de viragem no entendimento das relações que devemos estabelecer com o Outro e que até aí aplicava, nas minhas análises, ao estado islâmico. Refiro-me a Violência e Islão, do poeta sírio Adonis, uma das vozes mais inconformadas da cultura árabe. O livro detalha, com assinalável cultura e sabedoria, temas tão variados como as razões do fracasso da Primavera Árabe, os textos fundadores, os interesses económicos e geopolíticos, a arte, o mito e a religião. Reli-o de um fôlego, ontem à tarde.

Este massacre na mesquita egípcia – à semelhança dos massacres anteriores, perpetrados pelo autodenominado estado islâmico, onde quer que tenham ocorrido – são indesligáveis da religião, sempre que esta é usada para fins políticos e ideológicos. Foi o que aconteceu no Islão, após a morte de Maomé. Essa ligação da religião ao poder ainda hoje permanece imutável. Temos, assim, que qualquer ideia de futuro reside no passado. O Islão, tal como o conhecemos hoje, tem um grande passado à sua frente. O Islão, porque acredita ter nascido perfeito, combate tudo o que o precede (tudo o que lhe é anterior é considerado tempo de ignorância: a civilização persa, a faraónica, a mesopotâmica, assim se explicando a pulsão de destruição de tudo aquilo que representa a sua arte) e combate igualmente tudo o que lhe sucede. Para continuar a alimentar, nos dias de hoje, essa ideia de perfeição, há que ser “seguidor” e não “questionador”. Repetir e reproduzir até à exaustão, eis do que se trata. Segundo Adonis, “o islão não precisa do mundo, nem do Outro, nem da cultura, visto que ele é a Cultura absoluta”.[1]

Sem esquecer que o registo da violência é comum aos três monoteísmos (as três religiões abraâmicas, ou religiões do Livro: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo) vejamos o que se passa no texto fundador do islamismo. Numa análise ao Corão, Adonis encontra 66 versículos que evocam o paraíso, 72 que falam dos paraísos como lugares de prazeres infinitos, 518 são dedicados ao kufr (infiel), mais de 370 falam do suplício e seus derivados. O inferno é mencionado 80 vezes e, em 3000 versículos, 518 incidem sobre o castigo.[2]

Sobre os descrentes do islão a sentença é inapelável:

“Um terrível castigo está destinado
àqueles que não creem nos sinais de Deus.
Deus é poderoso. É o mestre da vingança”[3]

E há ainda, entre muitas outras, esta descrição deveras arrepiante:

“Em breve lançaremos no Fogo
(…) aqueles que não acreditam nos nossos Sinais.
Sempre que a sua pele se consumir,
Dar-lhes-emos outra
Para que sintam o castigo”[4]

Imagem aterradora, a da pele que arde, cai, é apanhada, volta a ser colocada no corpo, volta a queimar e assim sucessivamente. Curioso é notar que este versículo sobre o arrancar da pele como forma de suplício eterno consta numa surata denominada “As Mulheres”. Esta forma de prolongar a agonia dos descrentes traz-nos invariavelmente à lembrança a condenação de Prometeu, acorrentado a um rochedo do Cáucaso após ter roubado o fogo aos deuses (o tema principal deste mito é, precisamente, a luta entre os deuses e os homens): uma águia ia todos os dias devorar-lhe o fígado, que continuamente se refazia, para que o suplício fosse interminável.

Vejamos ainda este verdadeiro manual de horrores, com imagens de extrema crueldade, digno dos Torquemadas de todos os quadrantes religiosos: “Vestes de fogo serão talhadas para os descrentes. Sobre as suas cabeças será vertida água a ferver, que lhes queimará a pele e as entranhas. Chicotes de ferro ser-lhes-ão destinados. Sempre que, no meio do sofrimento, eles queiram fugir, serão novamente trazidos: Sofram o castigo do fogo”.[5] Digamos que, no islão, quem pensa arrisca a pele. Literalmente: os que desobedecem “serão arrastados com cadeias para dentro da água a ferver e em seguida lançados ao fogo”.[6]

Nos dias que correm, para os condenados por apostasia – os que optam por seguir um rumo diferente do que lhes foi traçado pelos pais e diferente, também, dos rituais da comunidade – existe, na terra, a possibilidade de decapitação e no além um castigo exemplar. É isso que nos diz este versículo: “Não deixes na terra um único habitante em nome dos descrentes”.[7] É a partir destes pressupostos que qualquer muçulmano que interpreta o Corão de forma literal é convidado a exercer a jihad e a cometer as maiores atrocidades. Actos de uma violência extrema, quando avaliados na grelha dos nossos valores ocidentais. Só que, para um muçulmano convicto, tal conduta é considerada “um triunfo do islão e da vontade divina”.[8]

Adonis não acredita num islão moderado, que nada tem a ver com a violência. Contra os que assim pensam, argumenta: “trata-se de uma dificuldade em encarar as bases pulsionais da fundação islâmica”.[9] O que segue os preceitos corânicos, convencido de que todos os seus movimentos são escrutinados pelo olhar divino e tremendo de medo só de pensar que o seu Deus vingador o pode castigar às mais pequena infracção, é não só um suicida, mas também um escravo, na medida em que lhe é exigida submissão absoluta a esses preceitos. Dessa submissão depende a sua salvação.

O Outro, enquanto estrutura que pensa diferente, não existe para o islão. É anulado enquanto tal. Daí o assassínio do Outro, com o assassino a alcançar o paraíso, lugar de paz perpétua e de prazer infinito. E assim temos, na jihad, o acasalamento de Eros (o amor ao profeta) com Tanatos (a pulsão da morte).

Aqui chegados, cabe perguntar: como podemos, do ponto de vista dos nossos valores, ir ao encontro do Outro, quando para esse Outro só existe um universo cultural, que é o seu? Como proceder, se em nome do Corão não se aceita o diálogo com o que é diferente, se em vez de se relacionar com o Outro o muçulmano deve permanecer no interior do círculo traçado pelos preceitos a que inteiramente se amarra e submete? Eis uma questão urgente e inadiável, à qual precisamos de dar resposta clara e inequívoca, não tanto porque o tema se encontre na ordem do dia, mas precisamente porque, às vezes, o não está.

Há hoje uma ideia secularista segundo a qual o avanço da civilização (por oposição ao estado de barbárie) depende do declínio do sagrado. Outros defendem que o século XXI será religioso, ou não será.

Tendo a acreditar na importância do declínio do sagrado para o processo civilizacional, mas apenas nos casos em que ele se manifesta de forma totalitária, ou quando as religiões são instrumentalizadas por projectos políticos e ideológicos. Já não penso assim para os países que se regem por princípios essenciais de democracia, onde existe separação da Igreja do Estado e se encontra assegurada, por isso mesmo, a liberdade religiosa, de consciência, ou de fé. E onde, se me apetecer, possa também ser tão ateu como Nietzsche, sem correr o risco de arriscar a pele numa qualquer fogueira de intolerância política ou religiosa.


 

[1] Adonis, Violência e Islão, Porto Editora, Setembro 2016 (1.ª edição), p. 35.

[2] Idem, p. 48.

[3] Corão 3:4. O primeiro número designa a surata, o segundo designa o versículo. A tradução aqui apresentada dos versículos é a de Denise Masson, Paris, Gallimard, 1967.

[4] Idem, 4:56.

[5] Idem, 22:19-22.

[6] Idem, 40:70-72.

[7] Idem, 71:26.

[8] Adonis, obra citada, pp. 51-52.

[9] Idem, p. 67.