Dois Papas: o filme e a polémica

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Vi, há dias, Dois Papas, do cineasta brasileiro Fernando Meirelles. Um filme que nos mostra a perda de espiritualidade, o peso e a influência da Igreja Católica na sociedade e o eterno debate entre conservação (a de Ratzinger, conhecido como “rottweiler de Deus”) e renovação (a de Jorge Bergoglio). O arco temporal tem início com a morte de João Paulo II, avança para a renúncia de Bento XVI e culmina com o pontificado do Papa Francisco.

Bento XVI, o consistente teólogo alemão que prefere o uso do latim, com vincadas preocupações escatológicas, sisudo e inflexível, é interpretado de forma primorosa por Anthony Hopkins. Francisco, o jesuíta argentino, bem menos formal, que assume gostar de futebol e de dançar o tango, capaz de trautear, no interior do Vaticano, Dancing Queen dos Abba, beneficia também da excelente interpretação de Jonathan Pryce.

Podemos falar de diferentes cosmovisões, do inevitável confronto de personalidades entre o temperamento germânico e o latino. Só que o filme talvez seja um tanto injusto para Bento XVI, por tender para a hagiografia de Francisco. Ratzinger encarna o papel de vilão, do homem que prefere almoçar ou jantar sozinho mesmo quando tem visitas. Bergoglio é-nos apresentado como um homem mais popular. Apenas alguns exemplos: não se inibe de saborear uma fatia de pizza ao ar livre, numa barraca de Roma; uma vez eleito, abdica dos sapatos vermelhos que muitos identificam como símbolo de vaidade, quando na verdade representam um símbolo de tradição. E também abdicou de outras vestes, ao ponto de o ouvirmos dizer no filme, no preciso momento em que assume essa rejeição: “não estamos no Carnaval”.

Ora é preciso dizer que algumas vestes podem ter tanto de simbólico como de ridículo. Se é isso que muitos pensam do solidéu, do barrete cardinalício e até de certas rendas, não é menos verdade que esse vestuário também funciona como veículo de comunicação e por isso mesmo de poder. E já agora: usar trajes em momentos especiais não é apenas apanágio da Igreja Católica. Outras instituições o fazem, como as universidades e os tribunais. O problema, quanto a mim, é de outra natureza: acredito que é possível prescindir da ostentação sem perder a dignidade. Esta pode estar mais próxima da simplicidade do que aquela.

Apesar de não ter sido escamoteada a ambiguidade que o cardeal de Buenos Aires assumiu perante a ditadura militar argentina (1976-1983) é nele que o filme concentra alguns gestos – digamos assim – revolucionários. No entanto, há um gesto de Bento XVI talvez ainda mais revolucionário e que o filme não explora: a sua renúncia – que é também dessacralização – ao papado. Esse gesto garantiu aos católicos a possibilidade de terem no seu seio dois Papas vivos: um emérito e o outro em pleno exercício de funções. Apesar do título do filme ser Dois Papas, ele centra-se, sobretudo, no percurso de vida do actual pontífice, dando pouca atenção ao percurso de Ratzinger. Digamos que o filme lança mão do conhecido recurso psicológico da empatia, com inclinação evidente para o Papa Francisco. Pena não ter sido capaz de nos fazer simpatizar com um Papa sem apoucar a imagem daquele que o precedeu.

Intimidade

Dito isto, vamos ao que mais apreciei neste filme. O encontro ficcionado entre os dois Papas serve de pretexto para discutir os problemas que abalam a Igreja Católica: a pedofilia, o celibato dos padres (S. Pedro era casado e a exigência do celibato só acontece no século XII) e a ordenação das mulheres, entre outros. Discordâncias, sim, mas respeitosas. Para lá da excelência dos actores e da beleza da fotografia e dos cenários, retive a riqueza de algumas expressões, como esta: “A confissão lava a alma ao pecador, não ajuda a vítima”. E retive sobretudo os diálogos bem humorados, com algumas ampolas de riso à mistura, como este em que Bergoglio pergunta a Ratzinger:

– Sabe a história dos dois seminaristas que gostavam de fumar? O primeiro dirige-se ao seu guia espiritual e pergunta:

– Padre, é permitido fumar durante a oração?

– Não, claro que não.

O segundo, que era jesuíta, disse ao amigo:

– Irmão, estás a fazer a pergunta errada. Então, dirige-se ao guia espiritual e pergunta:

– Padre, é permitido orar enquanto se fuma?

– Sim, orar e fumar ao mesmo tempo.

(comentário de Ratzinger: é uma anedota tonta. Orar e fumar ao mesmo tempo é impossível).

 

Padre Melícias: português, franciscano, oitenta anos de idade

Melícias 1Ando, há quase duas semanas, a evitar escrever sobre o padre Melícias. Há razões para isso. Tenho por aqui publicado, nos últimos tempos, alguns textos de cariz religioso. Admito o exagero e até ter carregado em demasia na água benta, ao ponto de uma amiga do Facebook me ter questionado, com inteira pertinência:

– “Desculpe, é padre?”

Ora, eu que nunca frequentei o seminário – embora seja possível ter sido seminarista, como Salazar, e nunca ter chegado a padre católico – decido agora avançar. Só que, ao afinar este novo texto pelo diapasão dos anteriores, corro o sério risco de aparecer outra vez por aí alguém a perguntar se não serei bispo, ou até cardeal. Que os deuses me protejam (desculpem-me a diatribe politeísta, os que acreditam sinceramente no Deus único).

Vítor Melícias foi, em tempos, confessor de António Guterres e de Marcelo Rebelo de Sousa. Vale a pena lembrar, já agora, que foi Guterres quem o nomeou Alto-Representante do Estado Português para Timor-Leste. Mais propenso a misturar do que a separar o que é de César e o que é de Deus – cargos na Igreja e fora dela – conhece, como poucos, os meandros do poder político, económico e social. Os picos de notoriedade aparecem nas décadas de 80 e 90, quando é convidado para cargos de grande relevo em organizações tão distintas como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a União das Misericórdias Portuguesas, o Banco Português de Gestão, a Liga dos Bombeiros Portugueses, o Montepio Geral ou a União das Mutualidades, para só citar algumas. Eis um padre franciscano com apetite voraz para gerir bancos e queda irrefreável para os negócios.

Foi em finais da década de 80, ou início dos anos 90, que conheci ao vivo o padre Melícias, num encontro qualquer, talvez a celebração do Dia da Segurança Social, que acontece a 8 de Maio. Deu para ver como domina o conceito aristotélico de pathos: a capacidade para quebrar o gelo inicial, o recurso a uma retórica centrada no estado emocional do auditório. Ainda hoje recordo os frémitos de emoção que se apoderavam de quase todos os presentes, mal começava a arengar. Aquela mole humana erguia-se de um pulo e rebentava em estridentes aplausos. Eu permanecia sentado, pouco atreito  a idolatrias fáceis ou a enfileirar nos rebanhos mansos de ilusórias unanimidades. Via naquela encenação uma verdadeira floresta de enganos.

Comigo me desavim. Por isso me interrogava se toda aquela gente, ao levantar-se de forma tão sincronizada, não estaria a ser espetada por uma qualquer sovela da solidariedade que o padre Melícias tão generosamente distribuía. E porque não me levantava eu? Na altura, torturado pelo remorso de me sentir ovelha tresmalhada, para a qual todos olhavam de soslaio, só conseguia aventar duas hipóteses: ou era uma cachola oca, desprovida das sinapses que permitem alcançar o entendimento do risonho franciscano; ou então tinha, na altura, as nádegas suficientemente duras para resistir às metafóricas picadas da sovela no cú. Aquela alegria breve, toda aquela preocupação com os mais carenciados, representavam para mim um verdadeiro murro no estômago, quando lhes contrapunha o mundo cinzento e as existências viúvas de alegrias que tão bem conhecia.

Onde está Wally? Vitor Malícias entre os bonecos do Contra-Informação
Onde está Wally? (Vitor “Malícias” entre os bonecos do Contra-Informação)

Hoje, reconheço: ainda bem que não me deixei inebriar com as cintilantes gotas argumentativas distribuídas pelo padre Melícias, talvez por saber que a arte da persuasão não é só pathos, mas também logos e, sobretudo, ethos: conceito através do qual o discurso se torna digno de crédito e de confiança (Aristóteles estava convencido que um argumento eficaz é o que mistura os três conceitos). Alegra-me saber que nunca cirandei em seu redor e que recusei respirar o incenso da discutível solidariedade que impregna a atmosfera que o rodeia. Deixo assim para ele, e para os fiéis seguidores, os louros de conduzir os pobres e os excluídos à terra prometida da fraternidade e da solidariedade universal.

Passemos então em análise alguns depoimentos impressivos deste padre franciscano, que muito ajudam a traçar-lhe o perfil, por não passarem de farrapos esburacados que ainda mais lhe deixam as vergonhas ao sol:

Melícias e as couvesEm 2005 era presidente da União das Misericórdias Portuguesas. Seguramente não desconhecia, a par dos relevantes serviços prestados pelas instituições de solidariedade social, que também nelas ocorriam – e, infelizmente, continuam a ocorrer – situações de maus tratos a crianças e idosos e vários tipos de desrespeito pelas regras instituídas com o Estado, que as apoia financeiramente. Ora quando a fiscalização a essas instituições ganhou um novo alento, que fez o padre Melícias? Disse, pura e simplesmente, de forma depreciativa e com a maior das leviandades, que os inspectores incompetentes (leia-se: os que ousavam denunciar essas irregularidades) deviam ir “plantar couves”. Fê-lo, não restam dúvidas, depois alguém ter recorrido aos seus préstimos e à sua consabida influência junto do poder político. Ele próprio o confessa, quando afirma: “Obviamente que, às vezes, há determinadas situações em que, para resolver um problema, é mais fácil falar com o ministro do que com o porteiro.” Apetece perguntar: faz sentido o Estado apoiar financeiramente as instituições de solidariedade social e não controlar, mais tarde, a qualidade dos resultados e a forma mais ou menos criteriosa como o dinheiro é gasto?

Em 2008, ficámos a saber que o padre franciscano passou a receber uma pensão mensal de 7450 euros. Conforme então explicou, tal pensão resulta da remuneração acima da médiaauferida em vários cargos e de “vinte e poucos anos de descontos”. E como se os números não fossem ocasião de escândalo, quando comparados com pensões mínimas de portugueses com quarenta e mais anos de descontos, acrescentou: “não sou rico, tenho uma pensão aceitável”. Aceitável, quando comparada com as de 250 e 300 Euros? Esperemos que não passe fome, que a bagatela que recebe dê ao menos para o Calcitrin e para a Depuralina. Ou, vá lá, para pagar ao sapateiro o arranjo das sandálias…

Última atoarda, já em 2019. Na arrastada novela do Montepio, onde permanece há mais de três dezenas de anos e continua a movimentar os cordelinhos, o padre Melícias defende com intransigência Tomás Correia, o actual presidente, mesmo depois de publicamente se saber que foi condenado pelo Banco de Portugal ao pagamento de uma multa de 1,25 milhões de euros. Esta protecção sem reservas a Tomás Correia, depois de tudo aquilo que já se conhece, lembra as palavras avisadas e certeiras de Natália Correia em O Armistício: só se defende fanaticamente aquilo de que se duvida.

Às pressões para que Tomás Correia abandone a liderança do Montepio, respondeu desta maneira o seu ilustre paraninfo: “Não é um secretariozeco ou qualquer ministro que vai afastar os órgãos sociais democraticamente eleitos”. Assim trata o padre Melícias os que desafiam o seu poder. Assim estala o verniz da sua tão propalada bonomia. Considera-se intocável e por isso subalterniza os que lhe fazem frente, que essa coisa de sermos todos irmãos não passa de uma grande treta. Ora manda os inspectores plantar couves, ora aponta o dedo acusador a ministros e secretariozecos, como quem se movimenta nos quadros mentais de uma república de súbditos e não de cidadãos. Talvez sinta saudades do sacerdotalismo, daquele tempo medievo em que os reis dependiam do poder que os sacerdotes tinham de lhes perdoar os pecados. Esquece-se que foi com muitos desses ministros e secretariozecos que montou, ao longo dos anos, uma perigosa estratégia da aranha, tecendo com eles controversos fios de cumplicidade e de poder.

Não nos espantemos se um dia aparecer por aí, em livro, a Pastoral dos Banqueiros. Assim como Philip Roth escreveu Pastoral Americana, para nos dar a conhecer a ambivalência entre uma América de vida tranquila e outra América onde o instinto guerreiro se aloja no coração de cada cidadão, bem pode o padre Melícias desvendar-nos, na sua Pastoral dos Banqueiros, o paradoxo que consiste em servir  ao mesmo tempo a Deus e à fragilidade mundana da banca, que cada vez mais transforma os nossos sonhos em pesadelos.

A terminar, só mais este desabafo. Num certo dia de inverno, alguém que até então só me conhecia pelo nome, mirou à distância a minha silhueta de sobretudo azul e cabelo branco e disparou:

–  Olha, parece o padre Melícias!

Senti-me tão lisonjeado, que mal saí dali apeteceu-me ir logo pintar o cabelo…

 

 

 

 

 

Igreja Católica: a verdade como ocasião de escândalo*

Lobby Gay em ConclaveO último número da revista Visão anuncia em tema de capa um novo escândalo na Igreja Católica. Fala-nos de um livro que promete dizer a verdade sobre o que se passa no interior da Santa Sé, com publicação prevista para 21 de Fevereiro, em mais de vinte países. Talvez não por acaso, é também nesse mesmo dia que o Papa Francisco vai debater com bispos e cardeais os abusos sexuais recorrentes da Igreja Católica.

De certo modo, o autor do livro – que resulta de uma investigação de quatro anos no interior do Vaticano – segue a divisa de um outro Papa da Igreja, de seu nome Gregório Magno, a quem é atribuída a seguinte expressão: “Se a verdade é ocasião de escândalo, vale mais deixar que se provoquem escândalos do que deixar, por isso, de se dizer a verdade”. Ora o livro do jornalista e sociólogo francês Frédéric Martel promete ser uma verdadeira pedrada no charco, capaz de agitar os gansos do Capitólio, ao mostrar que na Santa Sé reside uma das maiores comunidades homossexuais do mundo.

Não desconhece o autor deste livro-bomba que fácil é criticar e bem mais difícil exercitar o espírito crítico. Por isso lança um aviso à navegação, para desfazer possíveis equívocos: “Que fique bem claro que, para mim, um padre ou um cardeal não deve ter a menor vergonha em ser homossexual”. O livro “não visa a Igreja em geral, mas um género particular de comunidade gay” que diz ser “a componente maioritária do colégio cardinalício do Vaticano”. Não se trata, aqui, de apontar o dedo acusador à homossexualidade, mas de denunciar a suprema hipocrisia dos que dizem o que não fazem e fazem o que não dizem; dos que em público projectam uma imagem de piedade e, em privado, mandam às urtigas as profissões de fé sobre o celibato e os votos de castidade, vivendo com um companheiro ou até com acompanhantes pagos.

O Papa Francisco conhece bem esta realidade e por isso fustiga sem descanso os falsos devotos e os beatos falsos, gente de “vidas escondidas e amiúde dissolutas”, os cultores modernos do olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço. Gente que pratica a homossexualidade, mas exibe em público uma homofobia a outrance. Este Papa já lhes tirou a fotografia, quando refere: “Por detrás da rigidez, há sempre qualquer coisa escondida; em inúmeros casos, uma vida dupla”. Frédéric Martel alude mesmo a uma regra não escrita, mas que é perceptível na leitura do seu trabalho: quanto mais homófobo é um prelado, mais possibilidades existem de ser homossexual.

VisãoÉ este exército numeroso – e poderoso, e influente – de cardeais conservadores que hoje em dia faz o cerco e declara guerra aberta ao Papa Francisco, apesar da sua consabida liberalidade em matéria de moral sexual não repressiva, que o leva à seguinte interrogação: quem sou eu para julgar? Há uma guerra que já foi surda e hoje adquire outras sonoridades, entre homossexuais que persistem em continuar dentro do armário e gays assumidos. O coração do Papa Francisco parece não balançar entre uns e outros. Indigna-se, sobretudo, contra os que recorrem sem decoro à moral sexual tradicional e à homofobia, que utilizam como disfarce para as suas vidas duplas e as suas refinadas hipocrisias.

Reconhecer que o “outro” pode ser diferente por influência de uma marca biológica e que tem direito a sê-lo, é meio caminho andado para que se soltem os cadeados da intolerância e as crostas dos preconceitos. Só uma ética relacional contraposta à tradicional ética reprodutiva poderá acabar de vez com o fundamento bíblico da recusa da homossexualidade contido no conhecido episódio da destruição de Sodoma (livro do Génesis).

A hipocrisia nas relações entre os seres humanos é uma coisa. As relações que entre eles se estabelecem, assentes nos afectos e não na pressão insidiosa e na opinião dos outros, essas sim, são outra coisa bem diferente.


*Este texto segue de perto o artigo “O grande armário do Vaticano”, publicado no número 1354 da revista Visão (14.02 a 20.02.2019), pp. 36-41.

Natal — este texto que vos deixo

El Greco, A Adoração dos Magos (1600)
Ilustração: El Greco, A Adoração dos Magos (1600)

É assim há vários anos: quando chega o Natal, embrulho-me em tristeza. Ao contrário dos que aguardam a festa natalícia em puro contentamento, o Natal lembra-me sempre os Natais que já foram e, com eles, os que nos são queridos e também já se apartaram do nosso convívio.

Bons eram os Natais em que não havia lugares vazios na mesa e os rigores de inverno se aplacavam à conversa, com os corpos amornados à sonolência da lareira. Em cada Natal mergulho na ilusão de recuar na névoa do tempo. Na ilusão do sapatinho debaixo da chaminé, e do presépio que construía com musgo, pedras e figurinhas de barro, toscas e coloridas. Era o Natal do Menino Jesus e não o do Pai Natal. A diferença não é pequena: enquanto o Menino Jesus vivia despojado de conforto e bens materiais, o Pai Natal já não implora amor ou conforto, coisas que uma divindade da abundância bem pode dispensar.

A chamada festa das crianças continua longe de ser a festa de todas as crianças e da consoada universal. Para uns, taças de prazer; para outros, cálices de amargura. Parece faltar neve, e sensibilidade, para amortecer a crueldade do mundo. Depois do Natal, vamos ter o egoísmo a partir de novo, à desfilada. Deus vai continuar a ser o mercado e a religião o dinheiro. Ora o mercado que mais importa tem de ser o dos afectos: um abraço fraterno valerá sempre mais que o mais luzidio presente de um centro comercial. Abraços, pois, contra o frenesim das compras. Sempre fica mais baratinho do que as prendas em modo de “toma lá, dá cá!”

Nada substitui a atenção e o cuidado que prestamos aos outros, pois a amizade não se mede pelo valor dos presentes que trocamos. Às vezes apetece regressar a Mestre Gil e ao Auto da Feira, para tentar convencer Roma de que é preciso trocar o ouro desta ilusória abundância pela simplicidade rústica dos pastores.

Assim penso, porque continuo a acreditar que a felicidade, quando se divide, também se multiplica.

Dou de presente, aos meus Amigos, este texto. A melhor forma que encontrei para agradecer o vosso convívio e a vossa generosidade, embora esta seja mais para retribuir que para agradecer, se para tanto chega o coração. Um Feliz Natal e um excelente Ano Novo de 2018 para todos.

 

Violência e Islão, segundo Adonis

Adonis_cropO ataque contra uma mesquita sufi, a norte da península egípcia do Sinai, provocou mais de 300 mortos. No momento em que escrevo ainda nenhum grupo reivindicou a autoria do atentado, mas tudo aponta para mais uma iniciativa da responsabilidade do autoproclamado estado islâmico.

O sufismo é uma corrente mística e contemplativa do Islão. O facto de venerarem santos, e também porque a mística sempre foi marginalizada no interior da cultura muçulmana e olhada de soslaio por juristas e teólogos ortodoxos, leva os extremistas islâmicos a considerá-los hereges. Daí aos massacres generalizados vai um passo muito curto.

No dia a seguir ao atentado, invadiu-me um desejo irreprimível de reler uma obra que para mim representa um marco de viragem no entendimento das relações que devemos estabelecer com o Outro e que até aí aplicava, nas minhas análises, ao estado islâmico. Refiro-me a Violência e Islão, do poeta sírio Adonis, uma das vozes mais inconformadas da cultura árabe. O livro detalha, com assinalável cultura e sabedoria, temas tão variados como as razões do fracasso da Primavera Árabe, os textos fundadores, os interesses económicos e geopolíticos, a arte, o mito e a religião. Reli-o de um fôlego, ontem à tarde.

Este massacre na mesquita egípcia – à semelhança dos massacres anteriores, perpetrados pelo autodenominado estado islâmico, onde quer que tenham ocorrido – são indesligáveis da religião, sempre que esta é usada para fins políticos e ideológicos. Foi o que aconteceu no Islão, após a morte de Maomé. Essa ligação da religião ao poder ainda hoje permanece imutável. Temos, assim, que qualquer ideia de futuro reside no passado. O Islão, tal como o conhecemos hoje, tem um grande passado à sua frente. O Islão, porque acredita ter nascido perfeito, combate tudo o que o precede (tudo o que lhe é anterior é considerado tempo de ignorância: a civilização persa, a faraónica, a mesopotâmica, assim se explicando a pulsão de destruição de tudo aquilo que representa a sua arte) e combate igualmente tudo o que lhe sucede. Para continuar a alimentar, nos dias de hoje, essa ideia de perfeição, há que ser “seguidor” e não “questionador”. Repetir e reproduzir até à exaustão, eis do que se trata. Segundo Adonis, “o islão não precisa do mundo, nem do Outro, nem da cultura, visto que ele é a Cultura absoluta”.[1]

Sem esquecer que o registo da violência é comum aos três monoteísmos (as três religiões abraâmicas, ou religiões do Livro: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo) vejamos o que se passa no texto fundador do islamismo. Numa análise ao Corão, Adonis encontra 66 versículos que evocam o paraíso, 72 que falam dos paraísos como lugares de prazeres infinitos, 518 são dedicados ao kufr (infiel), mais de 370 falam do suplício e seus derivados. O inferno é mencionado 80 vezes e, em 3000 versículos, 518 incidem sobre o castigo.[2]

Sobre os descrentes do islão a sentença é inapelável:

“Um terrível castigo está destinado
àqueles que não creem nos sinais de Deus.
Deus é poderoso. É o mestre da vingança”[3]

E há ainda, entre muitas outras, esta descrição deveras arrepiante:

“Em breve lançaremos no Fogo
(…) aqueles que não acreditam nos nossos Sinais.
Sempre que a sua pele se consumir,
Dar-lhes-emos outra
Para que sintam o castigo”[4]

Imagem aterradora, a da pele que arde, cai, é apanhada, volta a ser colocada no corpo, volta a queimar e assim sucessivamente. Curioso é notar que este versículo sobre o arrancar da pele como forma de suplício eterno consta numa surata denominada “As Mulheres”. Esta forma de prolongar a agonia dos descrentes traz-nos invariavelmente à lembrança a condenação de Prometeu, acorrentado a um rochedo do Cáucaso após ter roubado o fogo aos deuses (o tema principal deste mito é, precisamente, a luta entre os deuses e os homens): uma águia ia todos os dias devorar-lhe o fígado, que continuamente se refazia, para que o suplício fosse interminável.

Vejamos ainda este verdadeiro manual de horrores, com imagens de extrema crueldade, digno dos Torquemadas de todos os quadrantes religiosos: “Vestes de fogo serão talhadas para os descrentes. Sobre as suas cabeças será vertida água a ferver, que lhes queimará a pele e as entranhas. Chicotes de ferro ser-lhes-ão destinados. Sempre que, no meio do sofrimento, eles queiram fugir, serão novamente trazidos: Sofram o castigo do fogo”.[5] Digamos que, no islão, quem pensa arrisca a pele. Literalmente: os que desobedecem “serão arrastados com cadeias para dentro da água a ferver e em seguida lançados ao fogo”.[6]

Nos dias que correm, para os condenados por apostasia – os que optam por seguir um rumo diferente do que lhes foi traçado pelos pais e diferente, também, dos rituais da comunidade – existe, na terra, a possibilidade de decapitação e no além um castigo exemplar. É isso que nos diz este versículo: “Não deixes na terra um único habitante em nome dos descrentes”.[7] É a partir destes pressupostos que qualquer muçulmano que interpreta o Corão de forma literal é convidado a exercer a jihad e a cometer as maiores atrocidades. Actos de uma violência extrema, quando avaliados na grelha dos nossos valores ocidentais. Só que, para um muçulmano convicto, tal conduta é considerada “um triunfo do islão e da vontade divina”.[8]

Adonis não acredita num islão moderado, que nada tem a ver com a violência. Contra os que assim pensam, argumenta: “trata-se de uma dificuldade em encarar as bases pulsionais da fundação islâmica”.[9] O que segue os preceitos corânicos, convencido de que todos os seus movimentos são escrutinados pelo olhar divino e tremendo de medo só de pensar que o seu Deus vingador o pode castigar às mais pequena infracção, é não só um suicida, mas também um escravo, na medida em que lhe é exigida submissão absoluta a esses preceitos. Dessa submissão depende a sua salvação.

O Outro, enquanto estrutura que pensa diferente, não existe para o islão. É anulado enquanto tal. Daí o assassínio do Outro, com o assassino a alcançar o paraíso, lugar de paz perpétua e de prazer infinito. E assim temos, na jihad, o acasalamento de Eros (o amor ao profeta) com Tanatos (a pulsão da morte).

Aqui chegados, cabe perguntar: como podemos, do ponto de vista dos nossos valores, ir ao encontro do Outro, quando para esse Outro só existe um universo cultural, que é o seu? Como proceder, se em nome do Corão não se aceita o diálogo com o que é diferente, se em vez de se relacionar com o Outro o muçulmano deve permanecer no interior do círculo traçado pelos preceitos a que inteiramente se amarra e submete? Eis uma questão urgente e inadiável, à qual precisamos de dar resposta clara e inequívoca, não tanto porque o tema se encontre na ordem do dia, mas precisamente porque, às vezes, o não está.

Há hoje uma ideia secularista segundo a qual o avanço da civilização (por oposição ao estado de barbárie) depende do declínio do sagrado. Outros defendem que o século XXI será religioso, ou não será.

Tendo a acreditar na importância do declínio do sagrado para o processo civilizacional, mas apenas nos casos em que ele se manifesta de forma totalitária, ou quando as religiões são instrumentalizadas por projectos políticos e ideológicos. Já não penso assim para os países que se regem por princípios essenciais de democracia, onde existe separação da Igreja do Estado e se encontra assegurada, por isso mesmo, a liberdade religiosa, de consciência, ou de fé. E onde, se me apetecer, possa também ser tão ateu como Nietzsche, sem correr o risco de arriscar a pele numa qualquer fogueira de intolerância política ou religiosa.


 

[1] Adonis, Violência e Islão, Porto Editora, Setembro 2016 (1.ª edição), p. 35.

[2] Idem, p. 48.

[3] Corão 3:4. O primeiro número designa a surata, o segundo designa o versículo. A tradução aqui apresentada dos versículos é a de Denise Masson, Paris, Gallimard, 1967.

[4] Idem, 4:56.

[5] Idem, 22:19-22.

[6] Idem, 40:70-72.

[7] Idem, 71:26.

[8] Adonis, obra citada, pp. 51-52.

[9] Idem, p. 67.

Dois curtos textos anticlericais

São apenas dois recortes de imprensa que fazem parte da tradição anticlerical portuguesa. Quase certo é tratar-se de textos inseridos na imprensa da Bairrada durante os tempos conturbados da I República. Ambos devem ser lidos nesse contexto. Neles, a Igreja e os padres são os bombos da festa. O primeiro está assinado por um auto–intitulado ex-padre, de seu nome Manuel Pinto dos Santos, e procura retirar crédito à Confissão. O segundo é uma pequena história de conteúdo humorístico, entre muitas outras que enxameavam a imprensa da época com o intuito de rebaixar figuras clericais. As mais conhecidas anedotas versavam a licenciosidade dos padres, que supostamente andariam metidos com uma mulher casada, cujo marido não estava habitualmente em casa. Não queiras potro/Nem mulher de outro era, à época, provérbio habitual de aviso aos padres para não desejarem aquilo que ainda não é, nem o que já não é (1).

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Aqui se dão à estampa os dois curtos documentos, sem mais comentários.

I – A Confissão

“A confissão foi instituída no ano de 1215, no auge da perseguição; porque não se instituiu antes? Nunca antes daquela data se julgou precisa a confissão; porém, desde que se atravessava uma época inquisitorial, necessário era buscar um elemento poderoso de subjugação e disciplina.

Vendo Roma que o tribunal da penitência lhe dava bons resultados, decretou a confissão obrigatória a todos os fiéis, sob pena de não salvarem as suas almas. Parece que antes de existir a confissão nenhuma alma se salvou! A confissão é anti-liberal; a adoração a Deus não é. O confessionário é uma escola de imoralidade.

Eu, como já fui padre, já confessei e já disse missa, posso dizer o que de verdadeiro há sobre tal assunto. Não se avaliam facilmente os efeitos perigosos do confessionário, quantos fanatismos promove, quantas discórdias levanta entre as famílias, as suspeitas que gera no coração de duas almas, enfim, uma série de corrupções que tornam cada vez pior o nosso meio social, que tantas podridões já contém.

Para se avaliar dos efeitos do que preceitua a igreja católica, basta dizer-se que o maior patife, o mais terrível dos algozes, desde que se confesse e se finja arrependido, obtém um atestado de bom comportamento; mas se o homem mais digno, caritativo e esmoler se não confessar, é escusado pensar em obter semelhante atestado”.

II – “Ridendo…

“Corre por ai, como verídico, o seguinte: certo prior duma freguesia não muito distante, tido e havido como conquistador afamado, fora, um dia, não sabemos com que propósito, a casa dum seu paroquiano. Este, porém, não estava, mas sua mulher, com a franqueza que caracteriza a gente do campo, ofereceu ao visitante uma caneca de vinho na adega. O sr. padre aceitando, dirigiu entretanto umas palavras menos reverentes à esposa de Pedro – assim se chamava o paroquiano do sr. prior – a qual, indignada, contou ao marido a audaciosa tentativa do D. Juan. Todavia, Pedro continuou, embora aparentemente, de boas relações com o clérigo, até que um dia reuniu em sua casa vários amigos, para uma côdea, tendo comparecido também o sr. prior.

No final da refeição Pedro ofereceu-lhes vinho branco, tendo previamente ordenado que uma garrafa contivesse urina – garrafa cautelosamente dada à mão do sr. prior que, ao provar o néctar, bradou estupefacto:

– Pedro, isto é vinho?!… Tão salgado!!!…

– É, sim, sr. prior, e tirado da pipa que o sr. queria furar…

Ridendo castigat mores.”


(1) Paulo Correia de Melo, Anedotas e outras Expressões de Anticlericalismo na Etnografia Portuguesa, Lisboa, Roma Editora, 2005, p. 198.