Praça de São Marcos: o coração de Veneza

A Veneza, cidade única, mágica e irreal, pode chegar-se de lancha, e o deslumbramento começa logo aí, antes de pisarmos terra firme. Ilha intrometida no Adriático, onde se cruzam muitas culturas e povos, de judeus a mouros e mercadores, celebrada pela literatura, pelo cinema e pelo teatro. A água é o elemento marcante, transmite-lhe uma aura de encantamento e parece integrar a arquitectura dos palácios da velha aristocracia que se debruçam sobre ela.

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Praça de São Marcos: um exercício de rigor geométrico e perspectiva. Um altar de veneração turística. Cenário, em Fevereiro, de um Carnaval deslumbrante. Palco, noutros tempos, de paradas, procissões e actividades políticas. Portanto, uma praça com história. Talvez única no mundo. Centro nevrálgico da cidade aquática, à qual apetece sempre voltar, porque nela há cafés com pequenas orquestras, onde se pode apreciar um capuccino ao som de música de câmara tocada ao vivo.

Aqui, tudo é fascínio, pois a beleza parece ressuscitar a cada instante: a luminosidade que a envolve; o manto líquido que lhe beija os alicerces; a domesticação humana dos materiais arquitectónicos; a água – sempre a água – ali bem perto, a transbordar por praças e vielas.

Ao sair dela, envolve-nos o som indolente dos remos nos canais que escondem e desvendam segredos em cada canto, por onde deslizam vaporettos e gôndolas que transportam turistas, como antes transportavam os seus doges.. O vaporetto é uma espécie de autocarro aquático que sabe respeitar as gôndolas, ladeando-as sem lhes disputar o romantismo. E há o cântico dos gondolieri. E a teia labiríntica das ruas, becos, pontes e pequenas praças que repousam sobre a laguna. Tudo povoado de museus, monumentos e igrejas. Os canais lembram veias e artérias, ligadas a um coração que bate: a Praça.

À despedida, lançamos um olhar nostálgico à Praça enxameada de turistas ávidos de emoções. E cresce em nós, enroscado em saudade, um desejo irreprimível de regresso àqueles ares lavados, onde há simbolismo e espiritualidade, monumentalidade e beleza artística. Naquela Praça aberta ao mar, ao vento e à luz, inundada de pombas, muitas pombas, desprovida de lixo, publicidade afrontosa ou ocupação abusiva dos seus espaços, tudo convida à contemplação e à embriaguês dos sentidos.

Há praças assim, que merecem ser amadas pelos amantes. Talvez não por acaso, Casanova, o sedutor, era veneziano.

Curiosidades de uma viagem a Malta

1. Ir de férias é deixar para trás a floresta cerrada dos dias iguais e arrastados do trabalho, a rotina que cerca e encharca até aos ossos. Partir significa estar mais perto do desejo, acalentado ao longo do ano, de passar momentos diferentes, menos monótonos e repetitivos. De certo modo, as viagens reconduzem-nos a um tempo há muito perdido: o da leveza dos dias sem horários para cumprir, sem pressas ou compromissos. Tempo de inteira liberdade, de regresso ao castelo encantado da infância, onde habita a matéria de que são feitos os sonhos e os segredos mais temerários. Ao viajar soltamos o pé do lodo da vida. Iludimos o labirinto dos lugares habituais. Vamos ao encontro de um outro para quem também somos o outro.

2. Sem que nada o fizesse prever, aconteceu-me ir a Malta. Da ilha – dito de modo mais correcto: do arquipélago encravado entre a Europa e a África, no Mediterrâneo central – conhecia vagamente a situação geográfica e ouvira falar, também de forma vaga, dos célebres Cavaleiros de Malta. Associava até o nome do país ao título de um livro de Dashiell Hammett, O Falcão de Malta, um policial famoso inspirado nos cavaleiros que pagavam um imposto anual de um falcão vivo ao rei de Espanha. Era tudo, e esse tudo era tão pouco, o que sabia de Malta…

3. Regressa-se sempre, naturalmente, mais enriquecido. No bornal dos conhecimentos históricos guardo notas sobre algumas civilizações que ocuparam as ilhas desde tempos imemoriais: cartagineses e romanos, bizantinos e muçulmanos, normandos e espanhóis, franceses e britânicos (as 8 pontas da cruz que é símbolo dos Cavaleiros de Malta correspondem a outras tantas línguas originais da Ordem); sobre estes cavaleiros, aprendi que construíram Valetta, palácios e fortificações, e que derrotaram os turcos que os cercaram no século XVI, desferindo um golpe fatal nas pretensões muçulmanas no mediterrâneo central.

Como curiosidade, e a atestar a presença portuguesa nos quatro cantos do mundo, encontrei, com alguma emoção, uma placa comemorativa afixada num aqueduto em La Valetta onde pode ler-se: “Em memória do almirante Marquês de Niza e dos marinheiros portugueses sob o seu comando, que morreram combatendo lado a lado com os malteses durante a insurreição popular de 2 de Setembro de 1798 contra o domínio francês”.

De facto, Napoleão conquistara Malta em 1798. À semelhança do que aconteceu em Portugal durante as invasões francesas, tudo o que era valioso foi pilhado pelos ocupantes. Os malteses revoltaram-se e pediram ajuda aos britânicos. Os portugueses, embora em menor número, também deram o seu contributo para derrotar os franceses.

4. Visitar palácios e templos, igrejas e catedrais; povoações piscatórias com seus barcos tradicionais de cores vivas, a balouçar na baía azul e um mercado diário que lembra muito a feira da Palhaça, pois para lá do peixe fresco vende-se todo o tipo de roupas, produtos hortícolas, CDs, lembranças e óculos de sol, entre outras bugigangas; saborear a gastronomia local; aceder às várias ilhas em excursões de barco ou através do ferry; conhecer praias de água cristalina, que convidam ao mergulho retemperador quando o sol dardeja raios inclementes que nos mordem a pele; apreciar a solenidade de penhascos e baías, falésias e enseadas, zonas naturais de cortar a respiração, particularmente belas ao entardecer; sentir a terra avermelhada a contrastar com o verde dos pomares; contactar com a música e o folclore da região; dar uma saltada à aldeia do Popeye, recriada para o filme deste herói lendário que faz as delícias da criançada. Tudo isto nos oferece Malta, miscelânia de lazer e cultura que só pode purificar o corpo e o espírito.

5. Comino, a meio caminho entre Malta e Gozo, é a ilha mais pequena do arquipélago. Para mim, também a mais paradisíaca, porque desabitada e intacta, com a sua Lagoa Azul e os aromas intensos a cominho (que lhe dá o nome) e outras ervas aromáticas.

As águas oscilam entre um azul-turquesa e um verde-esmeralda que inebriam os sentidos. E depois, a luminosidade, a claridade azul difícil de descrever, os aromas adocicados suspensos no ar. Dir-se-ia que os deuses andaram por aqui, que deixaram a sua marca neste lugar único e desde sempre pressentido. Espaço mágico e íntimo, ainda não manchado pela intervenção humana, onde nos sentimos felizes e reconciliados com a natureza e por algum tempo lavados das feridas da existência.

6. Se nas viagens se procura sempre algum exotismo, em Malta ele surge-nos diante dos olhos nos autocarros que datam seguramente de há meio século. São lentos, de um amarelo torrado com uma risca laranja. Conduz-se pela esquerda e os preços são bastante convidativos. Em todos eles encontramos iconografia religiosa, complementada com dizeres do tipo: In God we believe/We believe in God. Se não tocamos à campainha (puxando um fio que percorre o interior do tejadilho) o autocarro não pára e só podemos sair na estação seguinte. O parque automóvel é degradado, com carros (normalmente italianos) que já não circulam em países europeus mais desenvolvidos e ainda assim em mau estado de conservação: espelhos retrovisores partidos ou inexistentes, latas amolgadas ou riscadas.

7. Finalmente, e porque não há bela sem senão, nas águas cristalinas de Malta vivem e ensaiam graciosos passos de dança as temíveis medusas (jellyfish, peixe gelatina), conhecidas entre nós por alforrecas. Picam (ou queimam?) que se farta e há avisos a anunciar a sua presença por tudo quanto é sítio. Digamos que sobre o paraíso se abateu, pronta a retirar-lhe alguma beleza e encantamento, a urticante maldição das alforrecas.

8. Todos os sítios de Malta são já e só uma lembrança do tempo em que, andando muito a pé, mal se dava pelo cansaço. Dias em que parecia andarmos nas nuvens, portanto sem colocar os pés no chão.

Recordar agora esses dias é regressar a uma alegria que não se extingue, porque os grandes dias são aqueles em que o tempo passa sem darmos conta disso e nos parecem mais pequenos. Alegria breve – mas duradoura.