Academia Nobel, assédio e literatura

sexual-harassment-work-sleazy-businessman-harassing-shocked-female-coworker-eps-vector-illustration-no-transparencies-70960868Este ano não vamos ter Nobel da Literatura. Tudo por causa de escândalos sexuais que abalam a Academia Sueca. Negócios de saias, a avaliar pelas autoras da denúncia. Uma tragédia, já que pelo menos desde Shakespeare, sem mulheres – mas quase sempre com um rei… – não há tragédia que vingue.

Confesso o meu alívio, à mistura com alguma ignorância. Pelo menos em 2018 não vou correr o risco de ver anunciado um Nobel de quem nunca tinha ouvido falar, como já aconteceu com os casos recentes de Patrick Mondiano e Alice Munro. Já agora, digam lá se conhecem ou já leram algum destes escritores: Sully Prudhomme (não, não tem nada a ver com Michel Preud’homme, o que voava entre os postes das balizas de futebol), Giosuè Carducci, Rudolf Eucken, Henrik Pontoppidan, Carl Spitteler ou Ivan Bunin. Não conhecem? Eu também não, mas desde já informo que receberam o Nobel da Literatura no século XX.

É mais provável que conheçam alguns destes, diria mesmo todos: Marcel Proust, James Joyce, Kafka, Zola, Tolstoi, Nabokov, Graham Greene, Jorge Luis Borges, ou Philip Roth. O que têm em comum estes nomes é que nenhum deles mereceu os favores dos sapientes jurados. Se isto tem algum significado, talvez seja o de a academia sueca se enganar algumas vezes em relação às obras que avalia. Tantos nomes galardoados que acabaram por não resistir à pátina do tempo! Se neles fosse reconhecível a excelência literária, por certo não teriam caído no alçapão sem fundo do anonimato. Não se teriam dissolvido, ao fim de alguns anos, na indiferença generalizada dos amantes da leitura.

A academia sueca, fragilizada com algumas demissões, pretende agora envolver mais pessoas no processo de escolha do Nobel da Literatura. Ora parece-me que o que esta gente está mesmo a precisar é de ser dinamitada (prestemos justiça ao seu fundador). Assim sendo, avanço com o meu modesto contributo: arranjem um lugar no júri, o mais rápido possível, para António Lobo Antunes. Se bem se lembram, ele disse há tempos numa entrevista, respondendo à pergunta “Preocupa-o como vai ser lembrado daqui a 20 ou 50 anos?”, esta coisa extraordinária: “Tenho a certeza de que serei lido para sempre”.  Não é coisa pouca. Este dom profético, muito diferente dos palpites erráticos das pitonisas da academia, iria ajudar a diminuir de forma considerável a margem de erro em relação a escritores galardoados, que alguns anos depois se perdem em denso nevoeiro ou mergulham para sempre no rio tortuoso do esquecimento.

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Temos, por agora, a academia enrodilhada em silêncio. Tudo por causa de um escândalo que mistura violação de confidencialidade (divulgação antecipada de nomes premiados) com uso indevido de fundos e assédio sexual. Olha os tais do Norte, racionais, certinhos e alinhados, sempre prontos a apontar o dedo aos preguiçosos do Sul, a quem acusam de só quererem copos e mulheres, putas e vinho verde. Atrevo-me a dizer que este desvio à norma (e nem é preciso calcular, com rigor estatístico, o desvio padrão ou a variância) só pode estar relacionado com leituras que lhes contaminaram e baralharam os miolos: talvez os Sonetos Luxuriosos de Pietro Aretino, algumas histórias eróticas de Boccacio, outras tantas do Divino Marquês, os Escritos Pornográficos de Boris Vian, Hombres, de Paul Verlaine, As Proezas Amorosa de um Jovem D. Juan, de Apollinaire, o Manual de Civilidade para Meninas, de Pierre-Félix Louys, porventura Alfred de Musset, uns trópicos do Henry Miller, ou até mesmo uma ou outra incursão na literatura portuguesa do género: a poesia erótica e satírica de Bocage, outra tanta do Abade de Jazente ou, para alardear conhecimentos mais actuais, alguma produção de poesia sobre o corpo, de Natália Correia ou Maria Teresa Horta.

Sugiro aos ilustres membros da academia sueca, sobretudo aos mais propensos a colocar as mãos onde não devem (fala-se em senhoras apalpadas, por se aproximarem, de forma imprevidente, de certas mãos atrevidas) que leiam com proveito e tirem as devidas conclusões deste poema de Vasco Graça Moura:

FANNY

fanny, a grande
amiga de minha mãe,
ossuda, esgalgada,
de cabelo escuro e curto,
e filha de uma inglesa,

tinha um sentido prático
extraordinário e era
muito emancipada, para
os costumes da foz
daquele tempo.

uma vez, estando
sozinha no cinema, sentiu
a mão do homem a
seu lado deslizar-lhe
pela coxa. prestou-se a isso e

deixou-a estar assim,
com toda a placidez. mas abriu
discretamente a carteira de pelica,
tirou a tesourinha das unhas
e quando a mão no escuro

se imobilizou mais tépida,
apunhalou-a num gesto
seco, enérgico, cirúrgico.
o homem deu um salto
por sobre os assentos e

fugiu num súbito
relincho da
mão furada.
fanny foi sempre
de um grande despacho,

na sua solidão muito
ocupada num escritório. um dia
atirou-se da janela
do quinto andar
e pronto.

Vasco Graça Moura,
Poemas com Pessoas (1997)
in Poesia 1997/2000,
Lisboa, Quetzal, 2000.