Adeus a José Mattoso, não à sua obra (1933-2023)

Nasceu em 1933 e aos dezassete anos quis ser monge beneditino. Uma forma – dizia – de encontrar Deus e, com ele, também a paz. Uma vida feita de muitos caminhos, em demanda dos trilhos da sabedoria: em Singeverga (Santo Tirso) aprofundou a experiência religiosa; em Lovaina (Bélgica) doutorou-se em História e tornou-se medievalista; em Timor ajudou a organizar arquivos e enalteceu a dignidade do seu povo a partir da biografia de Konis Santana; em Portalegre envolveu-se na alfabetização de adultos e em Lisboa foi professor, investigador e director da Torre do Tombo.

Depois da vida monástica e da vida mundana, do bulício da cidade e do ruído do tempo, o regresso à busca da interioridade. Um retiro ditado pelo desprendimento em relação aos diferentes poderes, de alguém mais vocacionado para a vida contemplativa, ao contrário de Herculano, que se retirou para Vale de Lobos desagradado com o mundo do seu tempo. Primeiro rumou a um monte alentejano, à vida simples numa casa de pastores; mais tarde, a uma aldeia com meia dúzia de casas, a norte de Portugal. Homem discreto, isolado e contemplativo, mas não menos produtivo. Uma atenção sem intervalos às coisas profundas e não à espuma dos dias. Tempo de consagrar o tempo à busca espiritual.

Um outro olhar sobre o Portugal medieval. A coordenação da História da Vida Privada em Portugal e da História de Portugal, oito volumes que são um ponto de viragem na visão global do passado português.  A direcção  de Património de Origem Portuguesa no Mundo. A distinção com o Prémio Pessoa. Uma obra imensa, uma produção historiográfica brilhante. Ao fim de  quatro décadas de intenso labor, decidiu libertar-se de fardos institucionais e acabar com a investigação e a divulgação científica, por não querer “prolongar os trabalhos para além do momento em que estava seguro da sua lucidez”. Fê-lo, também, por saber que a verdadeira capacidade dos mais velhos consiste em saberem retirar-se a tempo, para dar lugar aos novos.

A erudição. O saber preciso. A História como lugar privilegiado de reflexão. Cultura em primeiro grau. Sabedoria em estado puro: a que nos ensina o que é importante e o que é secundário, a que funciona como “o antídoto mais poderoso contra a angústia que nos causa um mundo à beira do colapso”.

Obrigado pela Identificação de Um País, pela Nobreza Medieval Portuguesa, pel’A Escrita da História e também por Levantar o Céu, já que o labor científico nunca dispensou a atenção ao transcendente e ao sagrado. Obrigado por tantas heranças.

Há quem entenda que escrever sobre a morte de alguém é ridículo. Aos que neste espaço procuram ridicularizar quem tem escrito sobre a morte de José Mattoso, apenas isto: antes correr esse risco do que a injustiça dum imerecido esquecimento.