Amos Oz (1939-2018): a tolerância está de luto

Amos Oz imagemO brilho das luzes de Natal e a euforia que antecede o fim do ano deixaram na penumbra a morte do escritor israelita Amos Oz, no final de Dezembro. Com o seu desaparecimento não é só Israel que perde. Também a esperança de um estado palestiniano fica agora mais longe. Amos Oz foi um dos promotores de “Paz Agora”, movimento israelita a favor do entendimento com os palestinianos. Estamos a falar de um dos nomes mais importantes, e talvez o mais conhecido, da actual literatura israelita.

O direito do povo judeu a ter uma pátria, reclamado pelo movimento sionista no século XIX, está, por assim dizer, na base do conflito actual entre israelitas e palestinianos. Também a derrocada do Império Otomano no final da I Guerra Mundial (1914-1918) obrigou a redesenhar as fronteiras do Médio Oriente. Foi precisamente em 1917 que o governo de Sua Majestade Britânica fez saber que via com agrado o estabelecimento, na Palestina, de uma pátria para o povo judeu. Arthur Koestler, escritor e judeu húngaro, autor de O Zero e o Infinito, registou de forma lapidar as intenções britânicas: “É a promessa feita por uma nação a outra nação de lhe ceder o território de uma terceira”.

Para Amos Oz, a solução para resolver o conflito sangrento entre dois povos que reclamam a soberania de um mesmo território passa pela criação de dois Estados. Estamos a falar da troca de terra por paz. Isso obrigaria Israel a abdicar, de forma progressiva, da sua soberania sobre Gaza e a Cisjordânia – onde estão instalados os colonatos judaicos – em troca do reconhecimento da sua existência pela Autoridade Palestiniana. Falamos de dois Estados separados, com partilha de poder em Jerusalém, regresso dos colonos judeus a casa e dos refugiados palestinianos a um futuro estado palestiniano independente, nunca a Israel. O escritor israelita percebeu bem que o argumento demográfico não joga a favor de Israel: os judeus representam hoje sensivelmente 0,2% da população mundial, enquanto no Médio Oriente a relação é de 5% para 200 milhões de habitantes.

Desgraçadamente, este plano está longe de ser consensual. Há quem acredite e espalhe a ideia de que a concessão de território é uma fraqueza, assim como há quem não acredite que a fórmula de “dois estados” seja viável, tendo em conta a variedade de gentes e credos religiosos (árabes, palestinianos, judeus, cristãos). Há também quem defenda a fórmula de “um Estado” único para israelitas e palestinianos, assente num estado democrático não definido como judeu ou árabe. Para que tal fosse possível, Israel estaria obrigado a renunciar ao reconhecimento do país como um Estado judaico e a conceder aos palestinianos “os mesmos direitos de que gozam os judeus”, o que significaria “o fim do sonho sionista”.[1]Sem a consagração desses direitos aos palestinianos, a solução de um só Estado não passaria de algo parecido com o apartheid.

Caros FanáticosAmos Oz explica-nos que se não se avançar para a fórmula dos dois Estados a solução passará, no futuro, por haver apenas um: “Se houver aqui um único estado, será um estado árabe do mar até ao Jordão. É possível e desejável que judeus e árabes vivam juntos, mas eu não aceito de todo viver como minoria judaica sob domínio árabe, porque quase todos os estados árabes do Mediterrâneo oriental oprimem e reprimem as minorias. E, sobretudo, porque defendo o direito dos judeus de Israel, como de todos os povos, de serem uma maioria e não uma minoria, nem que seja num pedaço de terra muito pequeno”.[2]

Edward Said, talvez o intelectual mais destacado na defesa da causa palestiniana e do direito do seu povo a viver em paz e com independência na sua terra – mas que defendia, também, esse mesmo direito para os judeus – era adepto da fórmula de um único estado para os dois povos. Ao contrário da fórmula dos dois estados, fez a defesa de um estado binacional. Assumiu essa posição depois de constatar que a Faixa de Gaza é um espaço tão pequeno que não é possível evitar o contacto entre israelitas e palestinianos. Fala-nos, também, de “uma das maiores ironias de sempre. Há palestinianos que são empregados de restaurantes no interior de Israel” e também “na Margem Ocidental, onde estão os colonos, especialmente em Hebron (…). Nesses lugares, os israelitas e os palestinianos interagem, com antipatia e hostilidade, mas fisicamente partilham o mesmo espaço”.[3]

Perante esta realidade – conclui – “não estamos diante de alguma coisa que se possa mudar, empurrando as pessoas para as fazer regressar a espaços separados por fronteiras, ou a Estados separados. Há um nexo sem retorno entre um e outro dos dois elementos, que ficou, em grande parte, a dever-se à agressividade com que os israelitas entraram no território palestiniano (…). A meu ver, este nexo implica que terá de ser estabelecida uma ou outra forma de entendimento que permita a israelitas ou palestinianos viverem juntos e em paz. O que não poderá ser obtido por meio da separação”.[4]Tudo passa por conciliar o direito de Israel à sua segurança com o direito dos palestinianos à sua própria pátria e não a uma pátria que seja lugar de exílio, onde o poder continua a ser apenas o do ocupante. Said costumava dizer: até na nossa casa estamos exilados.

Edward SaidSão conhecidas as desavenças com Amos Oz, chegando a chamar-lhe “o médico e o monstro”. De facto, se o escritor israelita reconhecia, de forma desassombrada, que “o sistema de opressão israelita nos territórios ocupados vai destruindo a Autoridade Palestiniana”, que “milhões de palestinianos dos territórios ocupados vivem sob constante humilhação, subjugados e privados de direitos” e que “um terço das terras da margem ocidental já foram usurpadas por Israel e a usurpação continua,[5]não é menos verdade que Amos Oz combateu por Israel em várias guerras. Costumava dizer que é difícil ser profeta na terra das profecias e facilmente se percebe que estas suas declarações condenatórias da política dos governos de Israel estavam longe de merecer o acolhimento dos seus pares. Chegou mesmo a ser rotulado de traidor por sectores mais extremistas da comunidade judaica.

Tanto a fórmula de um só Estado como a dos dois Estados encontram defensores entre israelitas e palestinianos. A fórmula “dois Estados para dois povos” obriga Israel a devolver aos palestinianos os territórios conquistados durante a Guerra dos Seis Dias (1967), onde se inclui a parte árabe de Jerusalém, a cidade que os dois contendores reclamam para capital e também cidade-santa para as três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. E obriga ainda Israel a ceder a Cisjordânia, onde neste momento se concentram os colonatos judaicos.

Sabemos que continua bem acesa a fogueira de intolerância recíproca onde ardem todas as esperanças de paz para o Médio Oriente e que o fanatismo é exímio a abafar as vozes discordantes. Neste tempo em que os demónios continuam à solta, feito de tentativas de exclusão, de absorção ou até apagamento da cultura do outro, em que uma forma mentis intolerante vê o Outro como um inimigo a abater – sem se dar conta que para o Outro nós também somos Outros– a voz tolerante e pacifista de Amos Oz vai fazer-nos muita falta. Dificilmente haverá paz enquanto houver um património religioso e cultural comum a israelitas e palestinianos, mas apenas um Estado para um dos dois povos, neste caso o de Israel. Amos Oz sempre acreditou que, a prazo, só uma convivência pacífica de Israel com a Palestina poderá garantir a sua segurança e até a sua existência. Itzhak Rabin pensava o mesmo e, não por acaso, acabou assassinado por um judeu radical de direita em 1995, depois de ter participado, minutos antes, numa grande manifestação pela paz.

A Expulsão do OutroA política não pode estar refém do ódio. O destino destes irmãos desavindos não se constrói a regar com gasolina as labaredas da intolerância que continuam a consumi-los. O que Amos Oz nos ensina é que qualquer paz conquistada pela submissão à violência é ainda uma violência. Isso mesmo nos diz, por outras palavras, o filósofo Byung-Chul Han: “Não é unicamente a violência do outro que se revela destrutiva. A expulsão do outro põe em marcha um processo destrutivo totalmente diferente: a autodestruição”.[6]Para o escritor israelita agora desaparecido, a construção da paz exige concessões dos dois lados, o que significa que ambos se vão sentir amputados. Por isso fala num “compromisso territorial onde ambas as partes estão condenadas à desilusão”.[7]

Podemos discordar de Amos Oz, mas dificilmente podemos ignorar as propostas de paz de alguém com um percurso de vida ligado a Israel antes e depois da fundação do Estado judaico. Alguém que denuncia todos os tipos de fanatismo e que sabe que o fanatismo religioso foi sempre, e continuará a ser, um entrave à paz. Em Uma História de Amor e Trevas oferece-nos relatos inesquecíveis. Como este, quando um amigo mais velho mostra compreensão pela atitude dos árabes a quem foi retirada a terra e a quem o escritor desafia a mudar-se para o outro lado: “Mas eles não me querem lá. Não me querem em lado nenhum do mundo. O problema é esse”.[8]

Como as guerras não são eternas, um dia haverá paz, nem que seja por exaustão. Uma paz que não pode ser apenas ausência de guerra, mas bem mais do que isso. Por agora, o estado binacional com que sonhou Edward Said e a fórmula de “dois estados” preconizada por Amos Oz não passam de uma miragem e parecem cada vez mais distantes. Não sabemos quando termina este conflito sangrento, nem qual o preço a pagar. Sabemos é que há cada vez menos Palestina, embora Israel fale sempre em guerra defensiva, invocando o seu direito de sobrevivência.

Até lá, enquanto a paz não assentar arraiais e a brutalidade impune persistir – disfarce dos fracos e não uma qualidade dos fortes – vão continuar a martelar-nos a consciência poemas lancinantes como este do poeta e prosador palestiniano Mahmoud Darwich, intitulado “Confissão de um terrorista”, que um dia perdeu o direito de regressar à sua aldeia, entretanto integrada em Israel, mas jamais deixou fenecer a paixão por uma sua amada judia[9]:

Ocuparam a minha pátria
Expulsaram o meu povo
Anularam a minha identidade
E chamaram-me terrorista.

Confiscaram a minha propriedade
Arrancaram o meu pomar
Demoliram a minha casa
E chamaram-me terrorista.

Legislaram leis fascistas
Praticaram o odiado apartheid
Destruíram, dividiram, humilharam
E chamaram-me terrorista

Assassinaram as minhas alegrias,
Sequestraram as minhas esperanças,
Algemaram os meus sonhos,
Quando recusei todas as barbáries
Eles… mataram um terrorista!


[1] Ver Ana Fonseca Pereira, Público, 17.02.2017, p. 24; Margarida Mota, Expresso, 18.02.2017, p. 30.

[2] Amos Oz, Caros Fanáticos. Fé, fanatismo e convivência no século XXI, Publicações D. Quixote, 2018, p. 113.

[3] Edward. W. Said, Cultura e Resistência (entrevista de David Barsamian). Porto, Campo das Letras, 3003, pp. 16-17.

[4] Idem, p. 17.

[5] Amos Oz, obra citada, pp. 117-118.

[6] Byung-Chul Han, A Expulsão do Outro, Lisboa, Relógio D’Água, 2018, p. 9.

[7] Luís M. Faria, “Filho da Terra”, Actual (revista do Expresso), 21.04.2017.

[8] Amos Oz, Uma História de Amor e Trevas, edições Asa, 2007, (Luís M. Faria, artigo citado).

[9] Margarida Santos Lopes, “A amada judia do poeta da Palestina”, Actual (revista do Expresso), 21.06.2014.