Da lavra de Arsénio Mota, recebi há dias o Dicionário de Autores da Bairrada. Sorte a minha, o ter sido contemplado com um dos poucos exemplares impressos para oferecer aos amigos mais chegados. Estamos a falar de uma obra que o autor considera mais útil e manuseável, elaborada a partir de uma segunda edição digital do Dicionário. Aliás, com link em “página especial” do seu blogue, é possível encontrar, para além deste Dicionário, mais uma boa dúzia de trabalhos em e-book.
A obra resulta de pesquisas que o autor empreendeu após publicar o seu primeiro trabalho, intitulado Figuras das Letras e Artes na Bairrada, que organizou e viu a luz do dia em Setembro de 2001, há precisamente dezassete anos, colocando assim ao nosso dispor mais um valioso contributo para o conhecimento e as investigações anteriormente desenvolvidas em prol da cultura da região dos pâmpanos, em tempos mais recentes conhecida por “Terra verde”. Obra importante para a época, pois não havia nada que se lhe assemelhasse, embora produzida em contexto muito próprio e circunstâncias especiais de tempo e acontecimentos. Com este Dicionário, estamos a falar de uma ferramenta de trabalho indispensável para quem estiver disposto a abalançar-se na investigação cultural (histórica, literária, musical, patrimonial ou outra) da Bairrada. Só nos resta agradecer o fruto sumarento que de forma tão generosa o autor decidiu colocar ao nosso dispor. Ao fazê-lo, poupa-nos a morosas pesquisas bibliográficas, condensadas agora neste utilíssimo instrumento de apoio.
Arsénio Mota optou por um critério de organização que abarca apenas autores já desaparecidos. É um critério pessoal, que nos cumpre respeitar. Apenas abre uma excepção, que aliás justifica: a de Manuel Calado, a roçar já o batente dos 93 anos, jornalista luso-americano natural de Soza (concelho de Vagos), com colaborações dispersas em jornais, rádios e televisões “orientadas para as comunidades portuguesas nos Estados Unidos (e também nos Açores e na Bairrada).[1]Em relação à primeira obra impressa, esta inclui 28 novos autores. Alguns de reconhecida dimensão nacional, como são os casos de Eça de Queirós ou Fernando Assis Pacheco, e outros sobejamente conhecidos no meio local ou regional.
Vêem agora a luz da publicidade, entre outros – e para citar apenas os da Bairrada ou mais próximos dela – nomes como os de Manuel Simões Alberto, natural de Nariz (concelho de Aveiro), militar, homem com paixão pelo teatro e pela música, autor de estudos antropológicos sobre Moçambique e também autor da primeira monografia histórica da freguesia da Palhaça (concelho de Oliveira do Bairro); professor Américo Urbano, colaborador da imprensa (Soberania do Povo, Jornal da Bairradae Correio do Vouga), regente da Banda Marcial de Fermentelos; José Marques de Castilho, padre, professor e patrono de uma das Escolas de Águeda; António Gomes da Rocha Madail, fundador do Museu Marítimo e Regional de Ílhavo, bem como fundador e colaborador do Arquivo do Distrito de Aveiro; Manuel da Costa e Melo, político (foi Governador Civil de Aveiro a seguir à revolução de 25 de Abril de 1974) e autor literário com várias obras publicadas, além de assíduo colaborador em vários órgãos da imprensa regional. Merecido destaque, também, para Mário da Rocha, natural de Vagos, jornalista, professor e escritor, director de O Ilhavense e de Companha, que manteve com Mário Sacramento um célebre diálogo entre crentes e não crentes nas páginas do semanário aveirense Litoral. Eis uma pequena amostra do vasto material que Arsénio Mota coloca à nossa disposição.
Trabalhos desta natureza – podemos dar, como exemplo, os catálogos da imprensa periódica – dificilmente escapam a uma ou outra falha ou lacuna. No caso deste Dicionário, estamos a falar de um repositório exaustivo de dados biográficos e bibliográficos de autores da Bairrada, ou que, tendo nascido fora dela, aí passaram a residir e se deixaram contaminar pela sua ambiência e por tudo aquilo que a define e distingue das demais regiões ou sub-regiões circundantes. Ao empreender, nos últimos anos do século XX, uma pesquisa no terreno orientada para a restauração dos valores culturais da região – e animado com a possibilidade de assim poder surgir uma segunda plêiade bairradina – Arsénio Mota amontoou na sua mesa de trabalho um arquivo de dados e anotações precioso, que não podia desperdiçar ou sepultar no pó do esquecimento. Para lá das notas biográficas e das histórias de vida dos autores recenseados, dos dados coligidos e sempre que possível interpretados e contextualizados, o trabalho é enriquecido com alusões à imprensa local e regional onde muitas vezes tais personalidades colaboraram e exerceram o seu dever de cidadania.
Logo a abrir, antes mesmo dos 173 autores recenseados, Arsénio Mota brinda-nos com um estimulante e não menos instrutivo estudo sobre o topónimo Bairrada. Depois de sintetizar os vários contributos sobre o tema, que incluem interpretações filológicas, geográficas e etnográficas, o autor reconhece que os estudos já conhecidos podem não trazer conclusões definitivas. Isso não o impede, porém, de tomar posição sobre o assunto, enfileirando ao lado dos que sustentam que o topónimo Bairrada provém de “bairros” e não de “barro”, aqui entendido como matéria-prima. E não deixa de anotar aquilo que considera ser a inconsistência argumentativa de autores e livros que, na própria região, “influenciados por um vulgar empirismo (…) retomam com afoiteza a ideia simplista”.[2]Como que a dizer-nos que os trabalhos desta natureza requerem de quem investiga um elevado grau de humildade, evitando euforias desmedidas que levam os mais incautos e apressados a considerar como explicações definitivas e inabaláveis aquilo que, tantas vezes, não passa de meras hipóteses exploratórias.
A consulta deste Dicionário ajuda a confirmar o que já há muito se pressentia: que a Bairrada tem “presença” efectiva não apenas na literatura, mas também na cultura em sentido mais amplo. Uma cultura que parece ter entrado em hibernação, à espera que alguém a resgate e assuma de uma vez por todas e de forma permanente, em quantidade e qualidade, num tempo em que cada vez mais tendemos a olhar para os produtos que a cultura de massas introduz na região e um pouco por todo o lado. Cabe aos bairradinos preservar e valorizar o seu património cultural, que nas palavras sábias e avisadas de Arsénio Mota é uma “herança não assumida por causa de uma geral frieza, como se pudéssemos ficar mais ricos deitando fora o que mais nos distingue e enobrece”.[3]
[1]Arsénio Mota, Dicionário de Autores da Bairrada, edição de autor, Dezembro de 2017, p. 34.
[3]Idem, “Bairrada Cultural o que tem?”, Jornal da Bairrada, 28.01.2009, p. 2.
Esta apreciação que Carlos Braga faz do Dicionário de Autores da Bairrada é bastante de agradecer. Um dicionário, pela sua natureza (obra de consulta), parece não merecer leitura, serve apenas, no melhor dos casos, para ter ao alcance da mão na estante. Daí a (des)atenção geral que costumam ter. Logo, a apreciação aqui publicada serve para divulgar a edição (2ª, agora digital) e compensa os esforços do autor. Muito obrigado, amigo Carlos Braga.