Assim vai o Brasil: discursos de ódio recíproco e incitamento à violência. Notícias falsas a baralhar os dados e a serena reflexão. Um país polarizado, com laços de sangue que se desatam, relações extremadas entre famílias desavindas e amigos divididos. Grandes universidades ocupadas por forças policiais para confiscar material eleitoral contra Bolsonaro. Baixíssimos índices de educação. Um cenário deprimente.
Não vale a pena iludir o que está à frente dos olhos de todos: no Brasil alastra a nódoa negra da criminalidade, da insegurança – com várias cidades entre as mais violentas do mundo – e da corrupção, que manchando o PT não deixa de ser transversal a toda a classe política. Os brasileiros sentem medo: de sair à rua, de viajar nos transportes públicos, de parar nos semáforos, quase medo de existir, para citar o título de um livro do filósofo José Gil. E agora muitos receiam um regresso da ditadura, de que os mais novos apenas ouviram vagamente falar, mas sem lhe sentir as consequências.
O medo invade o povo brasileiro e condiciona os seus comportamentos. Por isso hesita entre a liberdade, a autoridade e a segurança. Se para uns, normalmente conotados com a esquerda política, a liberdade é um valor acima de todos os outros, para a direita política há uma prioridade da ordem e da autoridade sobre o conceito de liberdade. Ao que tudo indica, há hoje um número considerável de brasileiros dispostos a abdicar de umas tantas rações de liberdade a favor de outras tantas da segurança que lhes tem faltado.
À beira do abismo, o PT não foi capaz de abdicar da lógica partidária e clientelar na luta pelo poder. Não conseguiu estabelecer pontes de entendimento com outros partidos políticos para tentar barrar um candidato com tiques autoritários, que bolsa as alarvidades que se conhecem, não aceita debates (um desrespeito notório pelo cidadão eleitor, intolerável em democracia) e só comunica pelas redes sociais. Nestas eleições o PT não foi capaz de desarmadilhar o ódio que a corrupção e a insegurança nunca estancadas em 14 anos de governação concitam contra si próprio. O distanciamento de Fernando Henrique Cardoso, de Marina Silva e de Ciro Gomes, entre outros, tem um significado político preciso: eles detestam Bolsonaro, mas não acreditam em Haddad nem na regeneração política do PT. Para utilizar uma expressão do ex-Presidente da República, recusam-se a vender a alma ao diabo. Ciro Gomes, com o país a arder, preferiu mesmo ir respirar os ares de Paris. Grande estadista!
A neutralidade de alguns políticos – há quem lhe chame cobardia – e o silêncio dos intelectuais brasileiros perante alguém que mostra fascínio pela ditadura, dá que pensar. Vale a pena recordar o que sobre estes comportamentos escreveu Miguel Torga, no já longínquo ano de 1944: “O que é contra todas as leis da vida é [o homem] ficar ao lado da contenda como espectador (…). Assim é que nada se salva. Fica-se homem sem qualquer sentido, manequim vestido de gente, coisa que não tem personalidade. Porque nem se representa a inteligência, nem o instinto, nem qualquer das forças que nos fazem viver. É-se, mas apenas estátua de carne petrificada no meio dum mundo onde sempre é preciso tomar posição, optar, para merecer o equilíbrio final que a própria catástrofe implica.[1]
Quanto à estratégia de silêncio adoptada por muitos intelectuais, ela não é nova e espelha as transformações operadas ao longo do tempo entre poder e saber, teoria e prática, utopia e realidade. O lugar que hoje ocupam nos media é aproveitado mais para desancarem uns nos outros do que para denunciar as iniquidades e atropelos das democracias ou das ditaduras. Há muito que deixaram de ser irreverentes e indisciplinados, de utilizar a sua notoriedade para intervir no espaço público. Já pouco exercitam o intelecto, são mais dados à acomodação ao poder do momento – que garante prebendas e sinecuras – do que à interrogação permanente. António Tabucchi definiu-os bem, numa crónica de imprensa: “todas as santas manhãs desfiam num ou vários jornais as suas ideiazinhas sobre cada coisa, acabadas de fazer, como os bolos”.[2] Eis a “Trahison des Clercs”, como lhe chamou um dia Julien Benda.
O que sabemos é que se Bolsonaro, como tudo indica, vencer esta batalha e logo a seguir virar tudo do avesso à revelia dos direitos e liberdades fundamentais – e não é seguro que assim aconteça, embora os indícios sejam preocupantes – não seria a primeira vez que alguém chega democraticamente ao poder para depois destruir a democracia. E convém não esquecer que, em Portugal, a insegurança resultante da enorme bagunça político-ideológica da I República acabou mal e deu no que deu: 48 anos de ditadura.
Escrevo estas linhas com preocupação, porque amo o Brasil e o colorido das palavras forjadas na olaria tropical. Também porque penso que, ganhe quem ganhar, o Brasil não vai ficar bonito: na próxima segunda-feira vamos ter um país mais radicalizado e mais violento. Tenho por lá amigos e neste momento penso neles e sangro por eles. Desejo-lhes o melhor, sem saber se o que eles desejam para si próprios é o mesmo que eu lhes desejo e que se pode resumir nestas palavras do nosso liberal Alexandre Herculano: em dois grandes escolhos se perde a liberdade: na tibieza com que se defende, ou na demasia com que dela se goza.
[1] Miguel Torga, Diário III ( 3.ª edição), Coimbra, 1973, pp. 55-56.
[2] António Tabucchi, “A última fronteira dos intelectuais”, Pública, 07.03.1999.